A Segunda Guerra Mundial teve início oficialmente em 1 de setembro de 1939, com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista de Adolf Hitler. O encerramento do conflito mais mortífero da história da humanidade deu-se com a vitória dos Aliados e a assinatura da rendição dos japoneses em 2 de setembro de 1945. Nesse intervalo de seis longos e tenebrosos anos, tivemos entre 50 a 70 milhões de mortes (civis, em sua maioria) e o genocídio de judeus através de um programa sistemático de extermínio implementado pelo estado alemão; o espectro nazista insinuava-se sobre toda a Europa Ocidental, ameaçando também o resto do mundo – que escapou por um triz de um destino que não ousamos nem imaginar.

Esse “prestes a acontecer”, esse “quase”, se deu em um exíguo período de três semanas entre maio e junho de 1940, quando as forças alemãs haviam acuado os soldados ingleses, franceses e belgas nas praias de Dunquerque, na França – episódio retratado recentemente no último trabalho de Christopher Nolan, Dunkirk (clique aqui para conferir a crítica). A derrota era certa e significaria a aniquilação de todo o exército britânico, a queda das forças aliadas e a vitória de Hitler na Europa menos de um ano após ter iniciado a Guerra. Só que nada disso aconteceu, graças a persistência inabalável de um homem de quase 70 anos de idade que mudou completamente os rumos daquele conflito e cravou seu nome na história como a personalidade política mais importante do século XX: Winston Churchill.

Era um momento de crise extrema. Em 1938, o então primeiro-ministro Neville Chamberlain havia retornado de uma reunião com Hitler com um documento que garantia a paz na Europa. Dois anos depois, o cenário era o descrito no parágrafo anterior: o líder alemão já havia invadido vários países da continente, tomava conta de quase toda a França e crescia os olhos para o Reino Unido. Ainda assim, Chamberlain (e muitos outros) seguia acreditando ser possível negociar a paz com o genocida alemão através de uma política externa de apaziguamento, cedendo territórios à Alemanha – terminou sendo obrigado a tentar resistir ao poderio nazista. O Parlamento e o rei George VI já não aceitavam mais a sua manutenção no cargo.

Em meio às intrigas e articulações políticas, o nome que emergiu para substitui-lo foi o de Winston Churchill. O experiente político não tinha confiança plena nem do seu próprio partido, o conversador. Era considerado manipulador, autoritário, arrogante e alcoólatra – tomava uísque até no café da manhã. Várias opções estratégicas do seu passado como militar, diplomata e político (como o desastre da campanha militar de Gallipoli), cujos fracassos eram maiores que as conquistas, eram trazidas à tona para assombrá-lo. Só que naquelas três semanas de “horas escuras”, Churchill não pensou em sua sobrevivência política ou pessoal, mas sim no destino do seu país. E O Destino de Uma Nação conta essa história.

A direção de Joe Wright é competente e cheia de exuberância: seus travelings constantes e a câmera rodeando os personagens introduzem o espectador a um rico universo de bastidores políticos, por onde acompanhamos as disputas de poder, as tensas e frágeis relações entre os pares políticos, e a estúpida política de apaziguamento que tentava convencer o novo primeiro-ministro a aceitar um pacto de paz com a Alemanha nazista – que Churchill sabia ser impossível acontecer; anos antes de todo mundo, o célebre estadista já sustentava que Hitler era um mal absoluto com o qual jamais se poderia negociar e que devia ser combatido firmemente. Sem mostrar diretamente a ação de uma guerra, que só aparece ocasionalmente em cenas curtas e aéreas de bombardeios, o cineasta consegue compôr um plano primoroso e potente, quando percorre um campo francês castigado pelos ataques alemães, e aos poucos o campo vai se transformando no rosto de um soldado morto. Quando a sua câmera passeia pelas ruas, invariavelmente mostra as pessoas em câmera lenta, como a indicar o quanto estavam vivendo à parte dos horrores que pareciam prestes a tomar forma naquele solo, mas que eram escondidos da opinião pública pelo governo.

Antes de mostrar Winston Churchill pela primeira vez, o diretor focaliza apenas o seu chapéu no assento da Câmara dos Comuns. Em seguida, acompanha a trajetória da secretária interpretada por Lily James até que ela adentre pelo quarto escuro do político. Na penumbra, Churchill acende o seu característico charuto e uma iluminação avermelhada toma conta da sua face. Outro empregado abre a janela e a luz do dia derrama-se sobre o ambiente, enquanto o político fala com a secretária e a câmera vai se aproximando do seu rosto. Em questão de segundos, toda a composição de cena reflete a construção de um mito e Gary Oldman já toma o filme todo para si.

Embora o notável trabalho do maquiador de efeitos especiais japonês Kazuhiro Tsuji – que saiu da aposentadoria dos cinemas a pedido de Gary Oldman – transforme o físico e o visual do ator de 59 anos na figura rotunda do lendário estadista britânico, é muito mais o desempenho fenomenal do ator o principal responsável pelo estupendo resultado. O britânico é famoso por sua habilidade de “desaparecer” sob a persona dos personagens que interpreta – às vezes é difícil acreditar ter sido a mesma pessoa a encarnar Sid Vicious, Drácula, Stansfield, Comissário Gordon, Lee Harvey Oswald, entre tantos outros personagens marcantes. E dessa vez não é diferente. Para além da aparência, Oldman captura todo o aspecto documental da atuação: a postura, os gestos, os tiques, o modo de falar, a dicção, até mesmo o timbre e o jeito característico de resmungar; a postura sempre alerta, elétrica, de um homem que parece o tempo inteiro pronto para o ataque (como o rei George VI [Ben Mendelsohn] diz em determinando momento, “nunca sei o que sairá da sua boca, se um elogio ou um ataque“). Em seus olhos é perceptível uma vivacidade ímpar e uma centelha de humor que constantemente evidencia o típico humor inglês do politico, sempre com tiradas mordazes e hilárias.

O trabalho de composição de Oldman é primoroso e toda sua capacidade dramática floresce em variadas situações: na interessante relação que se desenvolve com a secretária Layton (Lily James), que vai de mais uma novata (a última entre as dezenas que não conseguiram se adaptar ao estilo explosivo de Churchill) que se esquece de datilografar em espaço duplo e irrita profundamente o político para uma profissional dedicada e alguém em quem ele confia plenamente; nas brigas e momentos ternos com a esposa Clemmie (Kristin Scott Thomas); nas vociferações e discussões intermináveis com Chamberlain (Ronald Pickup) e Halifax (Stephen Dillane) no gabinete de guerra; mas em especial nos inúmeros – e longos – discursos que são colocados na boca do ator, especialmente na Câmara dos Comuns, quando Oldman aparenta ser possuído pelo espírito do líder inglês, um brilhante orador, dando vida às suas palavras com uma potência visceral, como se fosse um dínamo – em uma das atuações mais impressionantes do cinema na última década.

O Destino de Uma Nação não tem ação física (embora as tensões das acaloradas discussões sobre os rumos do país na guerra sejam substitutos de primeira linha), mas é envolvente e muito bem ritmado pela edição de Valerio Bonelli. O trabalho de edição sonora é requintado e alcança seu clímax na sequência em que Churchill, ao telefone em uma saleta minúscula, tem uma conversa humilhante com Frankin Roosevelt, ainda muito distante de tomar a crucial decisão de entrar na Guerra contra as forças do Eixo.

A fotografia soturna e acinzentada de Bruno Delbonnel potencializa uma claustrofobia intrínseca a alguns dos cenários por onde a história se concentra (como a Câmara dos Comuns e as subterrâneas instalações do gabinete de guerra, reconstruídas com rara beleza pelo design de produção, em trabalho impecável de Sarah Greenwood), como a sinalizar que um horror se avizinha, sufocando pouco a pouco a vida de todos na ilha, muitas vezes emoldurando Churchill em cena como se estivesse sendo encurralado e reforçando a ideia de isolamento que cerca o político, que estaria lutando praticamente sozinho contra uma facção pacifista que tentava de todas as formas demovê-lo do cargo e negociar diretamente com o nazismo.

Ao mesmo tempo, quando temos os primeiros encontros entre Churchill e o rei George VI, o diretor opta por planos abertos, afastando-se dos personagens (e também posicionando-os a muitos metros um do outro), como a mostrar o distanciamento entre o político e o monarca, relação que aos poucos vai se metamorfoseando em proximidade, culminando em um plano fechado de uma decisiva conversa entre os dois antes de Churchill rechaçar de vez a pressão de Chamberlain e Halifax pelo acordo com os nazistas.

Joe Wright, ao lado do expositivo roteiro de Anthony McCarten, cede às imprecisões e exageros, como tange a filmes sobre personalidades históricas – como na sequência em que Churchill supostamente anda de metrô pela primeira vez na vida, para saber o que o povo de Londres pensa sobre a guerra, e que, apesar de tudo, é interessante e bem filmada, ainda que piegas em excesso –, mas essa idealização é até compreensível. O senso de responsabilidade de Churchill era único. Em um momento extremo de crise, sob uma pressão insuportável, a sua lucidez, a sua visão e a sua coragem foram capazes de transformar o medo, e uma iminente e devastadora derrota, em orgulho, mudança de ânimo, e virada de sorte no destino da guerra – tudo isso em apenas três semanas. Seu ousado e arriscado plano de usar pequenos barcos civis para o resgate dos soldados encurralados em Dunquerque salvou 300 mil vidas e converteu a fragorosa derrota que uma retirada de combate representa em uma vitória triunfante e motivadora.

Nunca ceder (“Lutaremos nos mares e oceanos, (…) lutaremos nos campos e nas ruas“), nunca render-se (“lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos“), nunca desistir, lutar até o fim (“Iremos até ao fim“), mesmo que essa escolha ocasionasse dor e sofrimento, mas jamais curvar-se diante do mal absoluto. Sem as decisões de Churchill naqueles dias históricos de 1940 é difícil imaginar o que a sombra tenebrosa do nazismo teria sido capaz de provocar ao mundo. O Destino de Uma Nação evidencia o caráter forte, por vezes autoritário, mas profundamente sensato, de Winston Churchill – com uma atuação monstruosa de Gary Oldman que faz toda justiça possível a um vulto histórico do nosso tempo.

O Destino de Uma Nação (Darkest Hour) – Reino Unido, 2017, cor, 125 minutos.
Direção: Joe Wright. Roteiro: Anthony McCarten. Música: Dario Marianelli. Cinematografia: Bruno Delbonnel. Edição: Valerio Bonelli. Elenco: Gary Oldman, Ben Mendelsohn, Kristin Scott Thomas, Lily James, Ronald Pickup e Stephen Dillane.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.