Uma das batalhas mais relevantes da Segunda Guerra Mundial se desenrolou em Dunquerque, na França, entre 25 de maio e de 4 de junho de 1940, poucos meses depois do início do conflito mais mortífero da história da humanidade. A França e o Reino Unido estavam oficialmente em guerra contra a Alemanha desde o começo de setembro de 1939, quando uma ofensiva alemã invadiu, partilhou e anexou a Polônia, valendo-se do blitzkrieg, a “guerra-relâmpago”, uma tática militar que combina infantaria, blindados e forte apoio aéreo em ataques rápidos e inesperados, de modo a impedir que as forças adversárias organizem suas defesas com celeridade.

Em 10 de maio de 1940, a Alemanha já havia invadido a Bélgica e os Países Baixos. O espectro nazista insinuava-se sobre toda a Europa e milhares de soldados das forças combinadas dos países aliados defendiam as fronteiras francesas. Só que apenas dois dias depois os mais de 800 mil soldados das divisões alemãs conquistavam Calais, na França, e cercavam cerca de 400 mil soldados aliados na cidade portuária de Dunquerque, distante apenas 76 quilômetros de Dover, o maior porto britânico do Canal da Mancha. Também em 10 de maio de 1940, Winston Churchill assumia como primeiro-ministro britânico no lugar de Neville Chamberlain, que pensou ser possível evitar uma nova guerra com uma política externa de apaziguamento, cedendo territórios à Alemanha, e terminou sendo obrigado a tentar resistir ao poderio nazista.

Nas mãos daquele que se tornaria a maior personalidade política do século XX ficou a responsabilidade de recuar as forças britânicas e salvar milhares de soldados diante da derrota certa. E o inimaginável se fez realidade, graças a uma soma de fatores que confluíram para uma espantosa operação de resgate (batizada de Operação Dínamo) conduzida por militares e civis. É sobre esse enredo triunfante sem precedentes (ou subsequentes) na história que Christopher Nolan se debruça em seu décimo longa-metragem.

O Molhe. O Mar. O Ar.

Um grupo de soldados caminha em silêncio pelas ruas desertas de Dunquerque. Dos céus caem a todo instante os panfletos despejados pelos alemães, oferecendo rendição ou morte. Repentinamente, o estampido dos tiros explode o ambiente sonoro que até aquele momento era preenchido apenas por passos secos. Desorientados, cada um daqueles soldados sem nome é abatido, enquanto a câmera de Christopher Nolan acompanha o único sobrevivente: o soldado britânico Tommy (Fionn Whitehead). Saltando desesperadamente através dos quintais das casas vazias ele consegue chegar a uma trincheira francesa – e dela, a uma praia.

A composição de cena expande seu escopo e o jovem Tommy se vê na areia lotada com dezenas de milhares de soldados dispostos em filas. Alvos fáceis para os constantes ataques dos aviões alemães, que nem se ocupam mais no trabalho de escolher seus alvos – simplesmente despejam as bombas ao longo da praia. Ao longe, um molhe – uma longa e estreita estrutura que se estende da terra em direção ao mar – avança mar adentro, por onde o comandante Bolton (Kenneth Branagh) tenta organizar o embarque dos soldados. Ao círculo de Tommy, juntar-se-ão os soldados Gibson (Aneurin Barnard) e Alex (Harry Styles), todos preocupados unicamente em salvar suas próprias vidas.

A Marinha Real Britânica requisita todos os barcos civis para a missão de evacuação (grandes navios não tinham como se aproximar da praia de Dunquerque, que era muito rasa) e o sr. Dawson (Mark Rylance) coopera sem questionamentos. Só que em vez de ceder a sua embarcação para os militares, parte ele próprio para o alto-mar, acompanhado por seu filho Peter (Tom Glynn-Carney), e de última hora pelo impulsivo adolescente George (Barry Keoghan). A caminho de Dunquerque resgatam o único sobrevivente (interpretado por Cillian Murphy) do ataque de um submarino alemão. No ar, um esquadrão de três pilotos da Força Aérea Real (RAF) sobrevoa todo o Canal da Mancha, dando suporte às tropas de Dunquerque – sem que os soldados na praia consigam vê-los. Collins (Jack Lowden) e Farrier (Tom Hardy) pilotam seus Spitfires contra os Me-109 da Luftwaffe alemã em um perigoso balé aéreo.

Essas são as três linhas narrativas sobre as quais Christopher Nolan tece o seu roteiro, manejando a noção de tempo dentro do seu já característico estilo. Uma semana no molhe. Um dia no mar. Uma hora no ar. Os três fios da história compreendem noções de tempo distintas em ambientes igualmente diversos – terra, mar e céu –, todos devidamente ilustrados em tela nos minutos iniciais. Enquanto a tensão cresce, com o medo da morte tomando as mentes de cada soldado e a salvação ainda longe de surgir, os eventos vividos por esses personagens se entrelaçam e se desdobram entre si, convergindo as experiências para o esperado final em comum – o resgate –, mas sem obedecer uma linearidade compartilhada – as três histórias submetem-se aos ditames dos seus próprios ciclos temporais. É uma estrutura incomum que a edição de Lee Smith consegue construir com eficácia em uma montagem contrastada, que mantém o suspense no topo, sem que ocorra uma confusão generalizada no espectador sobre o ordenamento fragmentado dos eventos.

Christopher Nolan faz uma opção deliberada por uma história multifacetada e sem muita contextualização. Não há uma figura central – e aquele que talvez mais se aproxime disso (interpretado por Fionn Whitehead) está preocupado unicamente em salvar a si próprio –, mas sim uma espécie de protagonismo “coletivo”, com o roteiro buscando múltiplos ângulos da jornada daqueles civis e militares que participaram do chamado “milagre de Dunquerque“. A escolha de elenco também se submete a essa visão, e o uso de atores estreantes ou pouco conhecidos nos papéis com maior tempo de tela não é sem motivação, servindo de realce ao anonimato dos soldados, que pouco ou quase nada falam, afogados em uma atmosfera de medo e tensão diante de uma ameaça real, mas invisível, que pode surgir de todos os lugares – os nazistas não aparecem, apenas seus instrumentos de morte.

A virtuose técnica do diretor britânico se escancara em Dunkirk. O filme foi todo rodado no panorâmico formato 70 milímetros, em IMAX, usando câmera de mão e com o mínimo possível de efeitos digitais. As sequências de ação são impressionantes (em terra, mar e céu) e a direção de Christopher Nolan coloca o espectador dentro delas, em todos os lugares: no cockpit ou na asa dos Spitfires, no caos da devastação do molhe ou da praia atingidos pelos bombardeios inimigos e no desespero da luta contra o afogamento no bojo dos navios inundados. O primor das cenas é amplificado pelo deleite que é a fotografia de Hoyte van Hoytema – soturna e deslumbrante –, com enquadramentos perfeitos e meticulosos, explorando a vastidão infinda das águas do oceano e das brumas do céu, além de uma escolha consciente por conceder um aspecto onírico à praia de Dunquerque, que em muitos momentos aparenta habitar uma realidade própria e particular.

Dunkirk é um filme muito sensorial e a imersão sonora desempenha um papel narrativo crucial. O filme tem poucos – e intensos – diálogos, apostando na força das imagens e da arquitetura de som. O agourento silêncio que antecede o perigo é sempre cortado repentinamente por uma explosão sonora que serpenteia por todos os cantos, atemorizando e desnorteando. Os disparos das metralhadoras e o ribombar das explosões submergem o espectador no caos. Um voo rasante de um avião alemão começa a assustar os soldados quando o barulho do motor ainda mal se faz ouvir ao longe, e os bombardeios trovejam imparáveis e incontornáveis, causando a destruição contra a qual não se pode lutar – e esse sentimento de desalento e impotência permeia toda a obra, consumindo a expectativa dos personagens. O espetacular trabalho sonoro é complementado pela trilha de Hans Zimmer, eficiente na construção do suspense, com seus movimentos agonizantes repetidos à exaustão – o tema principal (O Molhe) aparenta emular o tique-taque de uma bomba-relógio e o ressoar incessante de um alarme.

O inimaginável salvamento de centenas de milhares de soldados fez de uma fragorosa derrota uma vitória triunfante e motivadora. Ao lado da marinha mercante e da marinha de guerra, civis em barcos de pesca, iates, lanchas, rebocadores, botes, e vários outros tipos de embarcações, saíram corajosamente de suas casas e atravessaram o Canal da Mancha para ajudar no resgate de milhares de soldados, que não tinham mais para onde fugir ou recuar diante do poderio da Alemanha nazista. A Batalha de Dunquerque foi uma enorme catástrofe militar, que poderia ter sido ainda mais assombrosa se o exército do Reino Unido tivesse capitulado diante do III Reich. O objetivo inicial da Operação Dínamo era resgatar 44.000 soldados, mas no fim, cerca de 338.226 foram salvos, na maior operação de resgate já registrada na história.

Guerras não se vencem com evacuações“, enfatizou Winston Churchill, ao mesmo tempo em que delineou uma retórica imbatível: “Iremos até ao fim. Lutaremos na França. Lutaremos nos mares e oceanos, (…) lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos.” O lendário discurso do primeiro-ministro britânico é reproduzido em Dunkirk através de um jornal, lido por um dos personagens. Os ingleses continuaram resistindo pelos meses seguintes até que a grande virada de sorte acontecesse, com a entrada definitiva dos americanos na guerra ao lado dos aliados. No grande jogo de xadrez que é uma guerra, o “milagre de Dunquerque” renovou o espírito do povo e das tropas.

Christopher Nolan mergulha fundo na convincente reconstituição desse evento histórico, testando sua criatividade ao rodar um filme de guerra que subverte o gênero, com pouco sangue ou corpos despedaçados espalhados pelo chão. Trabalhando em cima de uma perspectiva alternada, o diretor e roteirista reconta um dos capítulos mais extraordinários da maior de todas as guerras em um filme de atmosfera de suspense reinante, íntimo e meditativo, através de personagens ordinários em ações e sequências diversificadas. Bravura, covardia, heroísmo, decência, medo, desespero e sobrevivência compõem a miríade de sentimentos explorados pelo fascinante retrato cinematográfico que Nolan expõe em Dunkirk, devidamente emoldurado por uma excelência técnica que não se vê a todo momento.

Dunkirk (Dunkirk) – Reino Unido/ Países Baixos/ França/EUA, 2017, cor, 106 minutos.
Direção: Christopher Nolan. Roteiro: Christopher Nolan. Música: Hans Zimmer. Cinematografia: Hoyte van Hoytema. Edição: Lee Smith. Elenco: Fionn Whitehead, Tom Glynn-Carney, Jack Lowden, Harry Styles, Aneurin Barnard, James D’Arcy, Barry Keoghan, Kenneth Branagh, Cillian Murphy, Mark Rylance e Tom Hardy.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.