“Et descendit ignis de caelo et devoravit eos; et Diabolus, qui seducebat eos, missus est in stagnum ignis et sulphuris, ubi et bestia et pseudopropheta, et cruciabuntur die ac nocte in saecula saeculorum.” (Ap 20, 9-10)

“O Demônio, sedutor delas, foi lançado num lago de fogo e de enxofre.”

Brimstone (enxofre em inglês) é o nome do mais recente filme do diretor holandês Martin Koolhoven, estrelado por Dakota Fanning e Guy Pearce, e um dos filmes selecionados para competição no Leão de Ouro de 2016, premiação máxima do Festival de Veneza. A citação a um versículo do Apocalipse no início do texto não foi feita à revelia, porque a história do filme bebe diretamente da história narrada por São João. O último livro do cânon bíblico é uma palavra grega que significa “revelação” e passou a designar relatos escritos de revelações divinas feitas a um profeta escolhido por Deus. A narrativa de Amaldiçoada (o título em português do filme) é dividida em quatro atos não lineares – três deles nomeados com títulos de livros das Escrituras – que acompanham a trajetória de violência que une umbilicalmente a vida dos seus dois protagonistas.


Capítulo 1: Revelação

A jovem Liz (Dakota Fanning) vive com seu marido Elli (William Houston) e os dois filhos (o garoto Matthew [Jack Hollington], fruto do casamento anterior de Elli, e a pequena Sam [Ivy George]) nas fronteiras da América do século XIX. Liz é a parteira da região, mas é muda (teve a língua cortada por algum motivo que ainda será revelado), comunicando-se por linguagem de sinais. Um novo Reverendo (Guy Pearce) assume a igreja local e apenas a sua voz é suficiente para causar um terror inominável e paralisante em Liz. O falecimento durante o parto do filho de Nathan (Bill Tangradi)  trará o ódio e a indiferença das pessoas e a presença do Reverendo colocará em risco a vida de Liz e de sua família.

Capítulo 2: Êxodo

Uma jovem adolescente descalça, vestindo apenas uma camisola, vaga cambaleante por uma região árida e isolada, até desabar para a morte que parece certa. Seu nome é Joanna (Emilia Jones). Salva por uma família de chineses, acaba sendo vendida como prostituta para o “Frank´s Inferno”, bordel gerenciado por Frank (Paul Anderson) na cidade mineradora de Bismuth. Alguns anos se passam e descobrimos que Joanna e a futura Liz são a mesma pessoa. Sua amiga Elizabeth (Carla Juri) teve a língua cortada por Frank depois de morder um cliente abusivo. Auxiliada por Joanna, a jovem planeja escapar do local para se casar com um viúvo em um arranjo feito através de um corretor de casamentos. Quando o Reverendo surge no bordel pagando para ter todas as prostitutas de uma só vez, o terror na expressão facial de Joanna é literalmente a prefiguração do que ela sentirá anos depois dentro da igreja.

Capítulo 3: Gênesis

A câmera se movimenta próxima ao chão, revelando um cenário de carnificina no deserto, com homens e cavalos mortos. Dois homens sobrevivem à disputa pelo ouro roubado, mas encontram-se gravemente feridos: Samuel (Kit Harington) e Wolf (Jack Roth). Os dois bandidos terminam acolhidos e cuidados secretamente por Joanna no local de criação dos porcos da fazenda onde ela vive com sua mãe Anna (Carice van Houten) e seu pai. Descobrimos que a família de Joanna é de origem holandesa e partiu para a América com uma comunidade que tem o intuito de estabelecer uma forma “pura” de cristianismo naquela que consideram ser a “Terra Prometida”. Anna é humilhada diante dos congregados locais e espancada constantemente pelo marido por se negar a ter relações sexuais frequentes. Quando Joanna menstrua pela primeira vez, os olhares do seu pai começam a encontrá-la com doentios interesses sexuais.

Capítulo 4: Retribuição

A narrativa retorna para o final do primeiro capítulo. Liz parte em fuga com Sam e Matthew para a casa do pai (Adrian Sparks) de Elli, enfrentando o rigoroso inverno das regiões montanhosas. Durante a difícil travessia de um lago congelado, a caçada empreendida pelo Reverendo levará a jovem muda a fazer o impossível para detê-lo e salvar a filha e a si própria.


Amaldiçoada é um interessante thriller de suspense ambientado em um Velho Oeste entregue à barbárie, habitado por homens cruéis e misóginos, por onde toda a sorte de injustiças se avizinha sobre as mulheres, traficadas sexualmente pelos seus próprios parentes ou por desconhecidos como se fossem produtos nas prateleiras (nada muito diferente do que ainda ocorre em muitos lugares), sem que ninguém mova uma palha para que isso acabe – e os poucos heróis que tentam quebrar os grilhões dessa corrente de exploração e violência não experimentam o glamour da ficção: são facilmente mortos e esquecidos. Amaldiçoada é um conto sobre sobrevivência e uma ode à resistência feita por uma incomum protagonista feminina que não aceita ter sua vontade subjugada reiteradas vezes diante da crueldade infindável de um perseguidor fanático e sádico. A violência é brutal, incessante e exagerada, deixando o espectador desconfortável o tempo inteiro, mas é um recurso que serve à história, em vez de ser usado apenas com a intenção de provocar o choque.

A câmera do diretor holandês Martin Koolhoven é sinuosa, sempre à espreita, observando os acontecimentos através das janelas, frestas e portas entreabertas. A sua estética é de filme de suspense – e a versatilidade do western se amalgama ao gênero com naturalidade. Os passos lentos e sonoros nas soleiras de madeira são reprisados durante todo o longa-metragem; as composições que se iniciam mostrando os personagens a partir do chão também, bem como os olhares de esguelhas e os silêncios tortuosos. O uso do traveling é constante, mas imperceptível: os movimentos de aproximação e fechamento dos planos são sutis. Entradas silenciosas em segundo plano – sempre com pouca profundidade de campo – são recorrentes e estabelecem com competência uma ambientação de mistério e tensão que mantêm o espectador atento a todos os detalhes. A trilha sonora de Tom Holkenborg, repleta de corais e cordas – com destaque para a gravidade característica dos violoncelos –, cria uma sonoridade gótica e cautelosa que eleva a lentidão da construção cinematográfica do filme aos estertores.

O roteiro assinado pelo próprio Martin Koolhoven é essencial na criação da atmosfera de thriller. A ideia de contar a história em quatro atos não lineares joga ao lado da narrativa, essencialmente alegórica, e os detalhes sobre Liz e o Reverendo se descortinam com lentidão. Dakota Fanning aterroriza-se quando a voz de Guy Pearce ecoa pela igreja logo nos primeiros minutos da obra. Ela está de costas para o púlpito, arrumando a roupa de sua filha, e a câmera gira lentamente ao redor do seu rosto. Seu desespero é palpável, mas o mistério sobre o real motivo do seu medo primal não será revelado tão cedo. A Liz que observa assustada pelas frestas das portas a presença intimidatória do Reverendo em sua sala é a mesma Joanna que aos 12 anos de idade observa temerosa a violência que a sua mãe sofre. O paralelismo é frequente na composição dos capítulos, e a força de alguns gestos e movimentos só serão compreendidos em sua totalidade ao fim, olhando em retrospecto.

O diretor ainda faz reverência a alguns elementos clássicos do western em sequências isoladas, como o duelo filmado com a câmera no contracampo e finalizado com um plano aberto que mostra a vítima caindo morta diante do seu executor, e a chegada do personagem de Kit Harington na igreja. O assassino honrado e de princípios abre a porta do local para tentar impedir o inominável, enquanto a luz envolve a sua figura e preenche todo o ambiente, destacando-o como se fosse uma figura angelical. Aliás, a belíssima fotografia soturna de Rogier Stoffers é um destaque por si só, aproveitando-se da beleza dos cenários naturais europeus – a longa sequência de perseguição na atmosfera brumosa da neve é um primor – e investindo no jogo entre luz e sombra quando encontra-se dentro dos planos fechados e claustrofóbicos das casas de madeira iluminadas por velas.

Amaldiçoada é perturbador e extremamente violento. Suas sequências são incômodas e causam aflição. Explicita determinadas sequências com muito grafismo, mas insinua, muito mais do que exibe, outras ainda mais atrozes. Enforcamentos, torturas, suicídios, intestinos amarrados em pescoços de vítimas semimortas, línguas cortadas (quando descobrimos o que aconteceu para que Liz perdesse a sua língua, a sequência é chocante, mas nublada: é uma cena que inquieta, mas que não é mostrada em detalhes), corpos despedaçados dados como alimento aos porcos, agressões sexuais contra crianças… há todo tipo de malignidade na terra sem lei por onde Liz tenta escapar da perseguição do seu implacável algoz. E algoz no mais perfeito significado etimológico da palavra.

Guy Pearce toma o filme para si na construção de um tipo absolutamente detestável e maléfico, de conduta psicótica e motivação diabólica. O Reverendo tem uma visão extremamente deturpada e pervertida do cristianismo, na qual busca validar (para si mesmo) até mesmo o sexo com uma criança, e a monstruosidade dos seus atos leva o personagem a um ciclo infinito de pecado e violência. A sua persona parece representar um mal ancestral que caminha pela Terra como se fosse o Demônio encarnado que não pode ser parado por ninguém. A atuação de Pearce é precisa, com sua voz rouca e expressões que transitam da aparente calma e benevolência para o ódio e a iniquidade. O Reverendo é um lobo em pele de cordeiro – e o ator chega mesmo a uivar insanamente enquanto persegue Liz e Sam.

Um encerramento apoteótico e exagerado, carregado nas tintas da metáfora, antecipa a verdadeira conclusão da obra. Uma ramificação de um evento passado termina por desaguar no futuro da protagonista, após o longo duelo – físico e mental – contra o Reverendo. Injusto e desesperador, resolutamente triste, mas inexorável. Ao mesmo tempo, sinaliza esperançoso quando as luzes iluminam o casebre do pai de Elli tantos anos no futuro. A narração dos primeiros segundos de Amaldiçoada é a mesma dos instantes derradeiros. Finalmente entendemos a insondável cena inicial que acontece sob as águas de um lago. E o ciclo civilizatório segue incólume, indiferente às vicissitudes daquele ambiente. A violência não impede que a vida continue em frente, e um suposto atavismo maléfico não encontra lugar na descendência daquelas pessoas. Elas podem viver sem o peso do passado, marchando inabaláveis em direção ao futuro, guardando na memória apenas os exemplos de força e perseverança intensas de uma mulher guerreira, que jamais se curvou diante de um destino cruel que parecia manifesto – preferiu a liberdade, e lutou por ela incansavelmente, arcando com quaisquer custos que fossem necessários nessa jornada de dor e sofrimento.

Amaldiçoada (Brimstone) – Holanda/França/Alemanha/Bélgica/Suécia/Reino Unido/EUA, 2017, cor, 148 minutos.
Direção: Martin Koolhoven. Roteiro: Martin Koolhoven. Cinematografia: Rogier Stoffers. Música: Tom Holkenborg. Elenco: Dakota Fanning, Guy Pearce, Kit Harington, Carice van Houten, Emilia Jones, Jack Roth, Jack Hollington, Paul Anderson, Carla Juri, Vera Vitali, William Houston, Bill Tangradi.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.