Publicada em duas partes no ano de 1986 nas revistas Superman nº 423 e Action Comics nº 583, O Que Aconteceu ao Homem de Aço? [Whatever Happened to the Man of Tomorrow?] é uma clássica aventura do Superman que representa muita coisa, não só na trajetória do maior super-herói de todos como também na carreira de vários profissionais de suma importância na indústria das histórias em quadrinhos.
Crise nas Infinitas Terras foi a grande responsável pela publicação de O Que Aconteceu ao Homem de Aço?. A grande saga que marcou os quadrinhos na década de 1980 simplificou décadas de continuidade muitas vezes contraditória no universo da DC Comics. Eliminou personagens redundantes, uniformizou origens icônicas e facilitou o acesso de leitores novos a um universo que já contava naquele momento com cinco décadas de histórias.
No esteio dessa nova fase, John Byrne, consagrado por seu trabalho na Marvel Comics com X-Men e Quarteto Fantástico, foi contratado pela DC Comics para assumir a nova versão do Superman no pós-Crise. Tal situação deu a Julius Schwartz, histórico editor da Era de Prata dos quadrinhos que trabalhava na editora desde a década de 1940, a oportunidade de criar um grande final para suas duas últimas edições no comando das revistas Superman e Action Comics.
“Portanto, cabia a mim dar um fechamento a todas as coisas que haviam ocorrido nos anos anteriores. Por exemplo, Lois Lane chegou a descobrir que Clark Kent era o Superman? Eles chegaram a se casar? O que aconteceu com Jimmy Olsen, Perry White e todos aqueles vilões? Eu precisava concluir tudo isso.”
Com uma direção clara do que queria para essa história, sua ideia inicial era trazer o próprio criador do personagem para escrevê-la. Se Jerry Siegel escreveu a primeira, que escrevesse também a última. Mas problemas legais e de agenda impediram que isso acontecesse.
Um café no dia seguinte e uma conversa sobre as dificuldades que estava enfrentando trouxe o roteirista que Schwartz precisava. Já reconhecido como um dos maiores escritores das HQs – naquela altura já havia trabalhado em Miracleman, escrevia Monstro do Pântano e Watchmen estava em andamento –, coube a Alan Moore escrever o roteiro da “última história” do Homem de Aço – o que ele “exigiu” na conversa com Schwartz. Ele receberia pouco depois uma carta do editor dando o aval para que criasse a história. O pedido? Que incluísse todos os coadjuvantes e vilões do Azulão que conseguisse.
Para desenhar a primeira parte da história não poderia haver outra pessoa: Curt Swan, o desenhista definitivo do Superman, que o ilustrara por mais de três décadas e que assim como Schwartz também se despediria definitivamente nessa edição. Na arte-final da primeira parte, George Pérez, co-criador dos Novos Titãs e um dos responsáveis por Crise nas Infinitas Terras; na arte-final da segunda parte, Kurt Schaffenberger, conhecido pelo seu trabalho com Shazam e Superman.
A derradeira aventura do Superman foi um marco. Fechou décadas de histórias de um personagem clássico com maestria e preparou a estrada para uma nova fase que viria.
No fantástico texto que precede a história, Alan Moore termina dizendo:
“Esta é uma história imaginária. E não são todas?”
E não são todas?
O Que Aconteceu ao Homem de Aço?
A narrativa começa com Tim Crane do Planeta Diário entrevistando Lois Lane, agora Lois Elliot, casada com Jordan e cuidando do seu filho Jonathan, para uma matéria intitulada Os últimos dias do Superman. Lois Lane relembra o passado para narrar estranhos acontecimentos.
Após anos de tolices inofensivas, Bizarro transforma-se em um monstro genocida até suicidar-se na frente do Superman. Bonecos com lasers e o corpo torturado de Pete Ross, enviados para a redação do Planeta Diário pela dupla Homem dos Brinquedos e Galhofeiro, revelam ao mundo que Clark Kent é o Superman. Enquanto isso Lex Luthor procura no Ártico pelos pedaços do corpo destruído de Brainiac e termina encontrando a sua cabeça. Brainiac acaba tomando posse do seu corpo e sequestra o Homem de Kryptonita para executar sua vingança contra o Superman.
Ao mesmo tempo, inúmeros Metallos invadem o Planeta Diário pretendendo assassinar Lois Lane. Superman derrota os inimigos e decide levar todos os seus amigos mais íntimos (Lois Lane, Lana Lang, Perry White, Alice White e Jimmy Olsen) para a Fortaleza da Solidão, onde poderia defendê-los de uma melhor forma. Krypto, o supercão, ressurge depois de anos no espaço.
Na fortaleza da Solidão o Superman recebe a visita da Legião dos Super-Heróis, acompanhados da Supergirl em uma versão mais jovem (ela havia morrido em Crise nas Infinitas Terras). O grupo do futuro entrega uma pequena estátua de presente ao Superman, como se estivessem prestando as suas últimas homenagens. Mais tarde em seu quarto, com Krypto ao seu lado, o Superman chora.
Luthor-Brainiac ergue um campo de força ao redor da Fortaleza da Solidão e recebe o auxílio da Legião de Supervilões, que veio do futuro para garantir o predestinado fim do Homem de Aço. Os heróis da Terra tentam de todas as formas atravessar o campo de força. Mulher-Maravilha, Batman, Robin, Shazam… todas as suas tentativas são infrutíferas.
Jimmy Olsen e Lana Lang fazem uso de artefatos da “Sala de Troféus” e adquirem superpoderes, com a intenção de enfrentar os supervilões e auxiliar o Superman. Lana mata o corpo de Luthor a pedido do próprio, em um breve momento livre da influência de Brainiac e termina desintegrada por Lorde Trovão. Jimmy Olsen avança sobre a Legião mas é morto por Brainiac que consegue continuar a controlar o cadáver de Luthor.
Gavião Negro, Arqueiro Verde, Caçador de Marte… os heróis ainda tentam atravessar o campo de força. Em vão. Os vilões finalmente conseguem invadir a Fortaleza da Solidão e Krypto sacrifica-se derrotando o Homem de Kryptonita. Devastado pelas mortes de Lana Lang e Jimmy Olsen, Superman irrompe contra a Legião dos Supervilões que foge de volta para o futuro. Luthor-Brainiac é desativado quando o rigor cadavérico atinge o corpo de Luthor e tudo parece ter um fim, mas o Superman desconfia que o responsável por aquilo tudo ainda não aparecera.
Depois de um tempo conclui que apenas um vilão ainda não havia se mostrado: Mxyzptlk. O feiticeiro surge e revela que sua aparência “engraçada” é apenas uma fachada. Ele estava entediado depois de dois mil anos realizando somente travessuras e resolveu passar os próximos dois milênios agindo com maldade e sordidez. Para começar pretendia eliminar de vez o Superman. Mxyzptlk revela então a sua verdadeira forma e o Superman tenta derrotá-lo usando o projetor da zona fantasma. O vilão profere seu nome ao contrário, o único modo de retornar para a quinta dimensão, no exato instante em que é atingido pelo raio do projetor, sendo imediatamente desintegrado.
O último diálogo entre Superman e Lois Lane é mais do que representativo:
“Superman: Eu o matei, Lois! Eu tive intenção de matá-lo. Eu não poderia permitir que alguma coisa tão poderosa e maligna sobrevivesse. Então, me decidi e tomei a atitude. Desrespeitei meu juramento. Eu o matei.
Lois Lane: M-Mas você não teve escolha! Não fez nada de errado…
Superman: Fiz sim. Ninguém tem o direito de matar. Nem Mxyzptlk, nem você, nem o Superman… Principalmente o Superman.”
Dirigindo-se ao compartimento que guardava as amostras de kryptonita dourada, a única capaz de retirar permanentemente os poderes de um kryptoniano, o Superman desaparece para sempre.
O repórter se despede de Lois e vai embora. O bebê Jonathan brinca com um carvão, jogando-o fora como diamante logo depois. Lois e Jordan conversam sobre o quanto ele gosta de viver uma vida normal e Jordan, piscando para o leitor, fecha a porta do quarto.
É impressionante como Alan Moore consegue construir uma narrativa muito bem amarrada mostrando todos os principais personagens do universo do Superman em menos de 100 páginas. Os personagens são levados aos seus extremos e os principais elementos de décadas de histórias são colocados nos quadrinhos sem que fiquem parecendo meras referências aleatórias. Tudo tem o seu significado nessa história curta e concisa. Que é abrilhantada ainda mais pela qualidade dos desenhos.
Curt Swan é o desenhista definitivo do Superman. Estabeleceu os traços que tornaram o personagem icônico e não poderia ser outro a desenhar essa história. A arte de O Que Aconteceu ao Homem de Aço? não está presa ao passado, como tantas outras acabaram ficando. Mesmo os leitores atuais, acostumados a desenhos absurdamente detalhados e coloridos de todos os modos possíveis e imagináveis, não terão problemas com a arte de Swan. Além disso, vários enquadramentos são absolutamente geniais, como o Superman chorando em seu quarto na Fortaleza da Solidão, enquanto Krypto deitado o observa, e um dos quadros finais, quando ele avança em direção à luz dourada, olhando por sobre os ombros e sorrindo para Lois.
O Que Aconteceu ao Homem de Aço? é um tributo genial, escrito por alguém que conhecia o personagem profundamente como leitor e uma aula de como “encerrar” uma continuidade, um dos clássicos incontestes das histórias em quadrinhos e uma das histórias mais representativas do Superman. De modo simples e eficiente, trabalha à perfeição com os principais conceitos de um personagem emblemático (característica visível em todos os seus trabalhos, bastando ver como soube reinventar com absurda excelência todos os personagens já existentes com os quais trabalhou), encerrando de modo pungente e cristalino elementos clássicos do Azulão que podem soar ridículos demais ao público atual (como Krypto, o supercão) e ensinando a todos que um dia trabalhariam com o personagem que apenas a quebra do seu mais precioso código de conduta (nunca matar) seria o gatilho capaz de encerrá-lo. Somente o Superman poderia dar um fim à história do Superman. Alan Moore soube compreender isso como ninguém.
O Que Aconteceu Ao Homem de Aço? (Whatever Happened to the Man of Tomorrow?, publicada em duas partes em Superman Vol.1 #423 e Action Comics Vol.1 #583 – EUA, 1986, DC Comics)
Roteiro: Alan Moore. Arte: Curt Swan. Arte-final: George Pérez e Kurt Schaffenberger. Cores: Gene D’Angelo. Editor: Julius Schwartz.