Em meados de 1962, Stan Lee e Jack Kirby já haviam criado o Quarteto Fantástico (novembro de 1961) e O Incrível Hulk (maio de 1962) e reintroduzido Namor, o Príncipe Submarino (maio de 1962), clássico personagem da Era de Ouro criado por Bill Everett, nas páginas do quarteto de super-heróis. Uma nova era de histórias em quadrinhos povoadas por personagens disfuncionais, humanizados e complexos já havia encontrado o seu início e o sucesso dessas criações refletia-se no número de vendas e no surto de cartas de leitores que chegavam na caixa de correios da editora. As revistas em quadrinhos da Magazine Management Company (o nome da editora que futuramente seria renomeada como Marvel Comics) eram antologias (Amazing Adult Fantasy, Journey Into Mistery, Strange Tales, Tales to Astonish…) de histórias de fantasia, ficção científica, monstros, horror e western, sempre auto-contidas, sem continuações e muitas vezes com personagens que apareciam uma única vez e nunca mais. O fenômeno provocado por Quarteto Fantástico e O Incrível Hulk começou a mudar esse status.

Naquele período, Stan Lee era o editor-chefe e principal escritor da Magazine Management Company, sendo constantemente cobrado por Martin Goodman (chefe e marido da sua prima) para que criasse o próximo hit da Casa das Ideias. Com o auxílio de Jack Kirby, seu parceiro e principal desenhista da editora, surgiriam Thor e Homem-Formiga nos meses seguintes. E ainda um terceiro personagem, um certo aracnídeo adolescente e cheio de problemas. A jornada para o seu nascimento foi conturbada – e um novo criador entrou na jogada: Steve Ditko.

Uma mosca voando até a janela foi a inspiração inicial para a criação de um novo herói que seria capaz de subir pelas paredes – como Stan Lee sempre conta em inúmeras entrevistas. De uma lista de nomes que tinha Homem-Mosca, Homem-Mosquito e Homem-Inseto, Lee terminou em Homem-Aranha – e gostou de como aquele nome soava. A outra inspiração veio do personagem The Spider, um famoso herói de revistas pulps que Lee havia lido durante a infância – além do nome aracnídeo, o violento The Spider não partilha nenhuma outra semelhança com o Cabeça de Teia. Jack Kirby foi o primeiro artista encarregado da criação visual do novo personagem. Kirby lembrou-se de um personagem que seu antigo parceiro, Joe Simon, havia criado na década de 1950, em parceria com os criadores do Capitão Marvel (Shazam): o Silver Spider. Em 1959 os dois criadores do Capitão América haviam transformado o personagem no Homem-Mosca, publicado pela Archie Comics. Desses personagens ele trouxe a sua ideia para o Homem-Aranha: um órfão adolescente que se transformava em um super-herói adulto graças a um anel mágico. Além disso, o herói utilizava uma arma de teia na cintura e era vizinho de um cientista maluco que teria sido o responsável pelo surgimento dos seus poderes.

Stan Lee ficou muito insatisfeito com o visual criado por Jack Kirby (que mais lembrava o Capitão América do que um adolescente franzino) e resolveu chamar Steve Ditko para redesenhar a sua história, já com os prazos de produção bem apertados. Lee deixou as demais histórias a serem lançadas (Thor e Homem-Formiga) a cargo do seu irmão mais novo, Larry Lieber, e dedicou toda a sua atenção ao novo personagem. Ditko refez do zero tudo o que Kirby havia produzido. O anel como fonte dos poderes foi substituído pela mordida de uma aranha radioativa e o personagem musculoso deu lugar ao adolescente franzino. Desapareceram as botas de bucaneiro e a pistola de teias e surgiram o uniforme collant, os disparadores de teias no pulso e a máscara cobrindo todo o rosto de Peter Parker. O incrível uniforme foi criado e o toque definitivo foi dado pelo colorista Stan Goldberg, que escolheu uma combinação de vermelho e cobalto-escuro – a última cor em contraste ao azul mais brilhante do Quarteto Fantástico.

A ideia de Stan Lee era criar um adolescente comum que se transformava em super-herói – subvertendo uma conduta primordial das HQs, que sempre colocavam adolescentes como parceiros dos heróis principais, nunca como protagonistas. Martin Goodman detestou a ideia. Mas esse não foi o único problema que Lee enfrentou. Na visão de Goodman, o conceito de um herói baseado em uma aranha era o mais estúpido possível por um motivo simples: a maioria das pessoas tinha medo de aranhas! O Homem-Aranha estava destinado a jamais ser publicado, mas a revista Amazing Adult Fantasy, prestes a ser cancelada por causa do baixo número de vendas, surgiu como a tábua de salvação. A famosa lábia de Lee convenceu Goodman a permitir que a história fosse publicada na edição número 15 da revista, rebatizada Amazing Fantasy por conta do enredo voltado para o público infantil e adolescente. A edição foi lançada, a revista cancelada e todos se esqueceram dela, até que meses depois os espantosos números de vendas (Amazing Fantasy #15 foi a revista mais vendida da editora em 1962) levaram Goodman a encarregar Lee e Ditko da criação de um título próprio do personagem, intitulado Amazing Spider-Man. O resto é história.

À esquerda, a primeira versão da capa de Amazing Fantasy #15, desenhada por Steve Ditko. Stan Lee não gostou do resultado e encomendou uma outra arte para Jack Kirby, que também redesenhou a logo da revista. A versão definitiva, com arte-final de Ditko, pode ser vista à direita, uma das capas mais icônicas e famosas das histórias em quadrinhos, referenciada e imitada de inúmeras maneiras no decorrer dos anos

Homem-Aranha

A origem do Homem-Aranha é uma história em duas partes que ocupa 12 das 26 páginas de Amazing Fantasy #15, dividindo o espaço com outras duas narrativas curtas de Stan Lee e Steve Ditko: O Homem do Sino e O Homem do Sarcófago, histórias de fantasia e horror, respectivamente. Do mesmo jeito que havia feito em Quarteto Fantástico #01, Lee cria uma história que se distancia bastante das convenções super-heroicas daquela época.

Já na primeira página, o adolescente Peter Parker – cabelo escovado, gravata e óculos enormes – é rejeitado pelos seus colegas do Midtown High School, desprezado por Sally e zombado por Flash e seus amigos – longe, muito longe, de ser um dos alunos mais populares da escola. Seus únicos amigos são os tios idosos, May e Ben, que o mimam como se fosse uma criança. O seu refúgio é o estudo, e os professores elogiam constantemente sua inteligência e dedicação. Em uma feira de ciências com experimentos radioativos, a picada de uma aranha afetada acidentalmente pela radioatividade muda inteiramente o seu destino e Parker ganha força e agilidade muito acima do normal, além da incrível habilidade de escalar paredes.

Um menino órfão, criado pelos tios idosos, impopular, amargurado e vítima de constantes ataques verbais dos outros adolescentes que acaba de ganhar extraordinários poderes: se tornar um super-herói e combater o crime sequer passa pela cabeça do empolgado Peter Parker. O seu primeiro pensamento é testar seus poderes em um torneio de luta livre como um misterioso lutador mascarado e arranjar alguns trocados com isso. O sucesso no combate rende um convite para aparecer na televisão. Parker costura o seu próprio uniforme azul e vermelho, insígnia de aranha no peito e nas costas, máscara com enormes olhos brancos e teias sob os braços. Com o seu gênio científico, ele cria o fluído de teia e constrói os disparadores nos pulsos. Nasce o Homem-Aranha, mas ainda não o herói, e sim um alter-ego criado por um adolescente para ganhar dinheiro. Suas apresentações televisivas assombram o público, mas ao término de uma gravação, um criminoso perseguido por um policial passa na sua frente e o seu egoísmo o impede de detê-lo – “Estou por aqui de me preocupar com todo mundo. Agora eu só cuido da minha vida!“.

Uma certa noite, voltando para casa depois de um show, Peter descobre que um ladrão assassinou o seu tio Ben. Vestido de Homem-Aranha, parte à procura do marginal no antigo depósito Acme nas docas, apenas para descobrir que era o mesmo criminoso que ele havia deixado escapar nos estúdios de TV. A tragédia pessoal, causada indiretamente por sua própria omissão diante da fuga de um bandido que ele poderia ter facilmente impedido sem fazer esforço, termina por forjá-lo – na dor, na culpa e no arrependimento, sentimentos que o Aracnídeo carregaria nos ombros para o resto de sua vida – em um super-herói: “Arrasado, Peter desaparece na escuridão em silêncio, finalmente ciente de que, neste mundo, grandes poderes trazem… grandes responsabilidades!“.

O que Stan Lee e Steve Ditko fizeram em míseras 12 páginas de Amazing Fantasy #15 foi uma história de origem simples e concisa, mas absolutamente inovadora – não há vilões, apenas a jornada de transformação de um adolescente egoísta e desgostoso em um super-herói – e perfeita – tanto que, passados 55 anos da criação do personagem, sua narrativa permanece inalterada e até mesmo as aparências de Peter Parker, Tia May, Tio Ben e Flash Thompson seguem os mesmos traços estabelecidos pela arte de Ditko.

O melodrama trágico escrito por Stan Lee sobre as angústias de um adolescente melancólico e rejeitado – algo sem precedentes nas histórias em quadrinhos – encontrou o amálgama perfeito na arte dinâmica de Steve Ditko, que desenhou um herói jovial com o físico de um adolescente em cenas de ação acrobáticas. A genial dupla criou uma história de origem atemporal de um personagem engraçado, mas solitário; provocador, mas trágico; humanizado, complexo e facilmente relacionável, que rapidamente se transformou no maior sucesso da Marvel Comics e em um dos personagens ficcionais mais populares do planeta.

Homem-Aranha (Amazing Fantasy #15 – EUA – agosto de 1962, Magazine Management Company)
Roteiro: Stan Lee Arte e arte-final: Steve Ditko Cores: Stan Goldberg Capa: Jack Kirby (lápis) e Steve Ditko (arte-final)

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.