Don Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho) é um funcionário da Coroa espanhola na Argentina colonial do final do século XVIII. Alocado bem próximo do Paraguai, Zama não aguenta mais o seu trabalho de fiscalizador. Os dias passam lentamente, torturantes, em meio às disputas entre colonos, índios e escravos, intrigas políticas, boatos sobre bandidos míticos e as luxuriosas tentações da carne.

Zama quer voltar para a mulher e o filho na Espanha; deseja obter um cargo melhor, na “civilização”. O amálgama que a colônia apresenta entre a paisagem desconcertante, a quentura infernal e a vida miserável das pessoas, o desola. Na solidão de sua vida cotidiana, flerta com Luciana Piñares de Luenga (Lola Dueñas), a lasciva esposa do Governador (Daniel Veronese), e engravida uma índia (interpretada por Maria, filha de um pajé guarani da província argentina de Misiones). O isolamento o corrói. Sua vida se deteriora pouco a pouco.

Lucrecia Martel é uma diretora argentina que construiu uma cinematografia embrenhada no realismo em seus três primeiros filmes (O pântano, A menina santa e A mulher sem cabeça), todos com roteiros originais de sua autoria. Seu quarto projeto inicialmente seria a adaptação de uma clássica HQ de ficção científica argentina: O Eternauta, de Héctor Germán Oesterheld, publicada entre 1957 e 1959. Martel trabalhou dois anos em cima do projeto, e em busca de locações, percorreu o rio Paraná de barco, levando consigo um livro: Zama.

Clássico da literatura latino-americana, o romance de autoria de Antonio Di Benedetto absorveu a diretora. A história tornou-se a sua obsessão e nove anos transcorreram até que o filme finalmente fosse lançado no Festival de Veneza em setembro de 2017. Foi uma longa espera até que o trabalho fosse concluído e é justamente sobre isso que ele versa: espera.

Zama é inteiramente erguido em torno da expectativa de que algo aconteça. Do aguardar. Lucrecia Martel não apenas desenha a história (o roteiro também é seu) em torno desse elemento, como lança mão de todos os recursos cinematográficos possíveis para torná-lo mais do que uma parte da obra, mas a obra em si. Sua câmera se detém com frequência em determinados planos e seus enquadramentos deliberadamente deixam de fora muita coisa que facilitaria o entendimento imediato sobre o que a história está narrando.

Conscientemente tomando como norte a máxima de que o cinema é “a arte do não-dito“, a diretora argentina se vale do extracampo para construir uma obra que se completa com o que parece invisível de imediato: dos movimentos que surpreendem os próprios personagens em cena aos efeitos sonoros que surgem fora do quadro (como o tiro no cavalo), passando por personagens desfocados ao fundo do quadro, tudo encaminha a experiência para a excruciante espera do que há por vir.

Zama espera. Que o seu superior redija uma carta ao Rei para que ele possa voltar para a sua família. Enquanto espera, certifica-se de todos os modos para que nada atrapalhe sua possível realocação, vendo-se forçado a aceitar todas as tarefas que os governadores lhe confiam. E os anos escorrem pelos sulcos de seu rosto. O homem se transforma, perdendo pouco a pouco a conexão com a realidade.

A interpretação de Giménez Cacho captura todas as nuances dessa gradação, com sua passividade e expressividade caminhando com garbo no leque de emoções que o seu Zama experimenta, enquanto torna-se cada vez mais cônscio de sua condição de “animal” enjaulado em um lugar no qual não deseja estar. Quando a missiva finalmente é feita, somos lembrados (Zama, mais que todos) de em que época estamos, e dos anos que serão necessários ser transcorridos até que ela chegue ao seu destinatário e retorne com uma resposta – que não tem grandes chances de ser positiva.

Lucrecia Martel domina a sua obra de um modo que expõe quão excruciante e aflitiva a espera pode tornar-se. Isso é visível na transformação física e mental do protagonista, que vê sua vida gradativamente caminhar-se para o abismo, mas também no modo como tal construção atinge o próprio espectador, que atormenta-se de início – e que se não perceber a intenção da obra, irá rejeitá-la nos primeiros cinco minutos –, já com a sequência à beira do rio, enquanto crianças índias movem-se ao fundo.

Fotografado com extrema beleza naturalista pelo cinematografista português Rui Poças, Zama flerta com o realismo fantástico borgiano em muitos momentos, especialmente em seu onírico terceiro ato – absorto em uma atmosfera de horror com contornos sobrenaturais e místicos. Ao perceber que tudo está perdido e provavelmente jamais retornará para a Espanha, Zama se junta a um grupo de soldados na perseguição a um perigoso bandido que desafia a Colônia: Vicuña Porto (um excepcional Matheus Nachtergaele).

O bandoleiro interpretado pelo brasileiro é uma lenda. Diz-se que entrava nas casas e passava os dias a violentar as mulheres. Quase todos os crimes e infortúnios da região são atribuídos à sua figura mítica. Perdido em uma espiral de loucura em meio à selva, muito distante da Colônia, Zama descobre que Porto estava infiltrado com o seu bando no seu grupo de soldados.

Índios com máscaras bizarras, em uma sequência de um surrealismo embasbacante, recordam a todos que ali, onde se encontram, há ameaças maiores: e os homens então são derrubados um a um na relva alta, obrigados a passar por um ritual de sentido oculto em cavernas que parecem saídas de estranhos sonhos, largados sem nada no lugar de onde foram tirados. E ao fim, nas areias de uma praia, as discussões e a violência motivadas pelo anseio por riqueza (que revela-se tão falsa quanto metade das histórias atribuídas a Porto) encerram-se em um alquebrado Zama resgatado por índios em um barco que lentamente se insinua rio abaixo.

Lentamente. Assim termina Zama. Do mesmo modo como começou. E se construiu. Adaptando uma obra que já foi definida como “o grande romance americano“, Lucrecia Martel tece um universo de melancolia tão mítico e surreal quanto naturalista e real, evidenciando coisas tão absurdas no meio do processo que mais parecem brotar de uma ficção científica. Debruçando-se sobre a figura de um homem que degenera lentamente em meio a um ambiente que o acompanha taciturno, Zama oferece ao espectador um poderoso drama sobre o isolamento humano e um retrato único da colonização da América do Sul.

Zama (Zama) – Argentina/Brasil/Espanha/Portugal/México, 2017, cor, 115 minutos.
Direção: Lucrecia Martel. Roteiro: Lucrecia Martel (baseado no romance homônimo de Antonio Di Benedetto). Música: Gustavo Montenegro. Cinematografia: Rui Poças. Edição: Karen Harley e Miguel Schverdfinger. Elenco: Daniel Giménez Cacho, Matheus Nachtergaele, Lola Dueñas, Juan Minujín, Rafael Spregelburd, Daniel Veronese.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.