Ninguém tem muita certeza sobre as razões de Travers para resistir, durante tanto tempo, em vender os direitos para Disney. O que parece ter acontecido, e que tentamos mostrar em nosso filme, é que a trama em torno da personagem é muito próxima da biografia da própria Travers. Ela teria usado lembranças sombrias de sua infância e as transformado em algo positivo para as crianças. Acho que havia ali uma caixa de memórias, cheia de tragédias, que ela não queria abrir. Depois, o que aconteceu em 1961 foi que os livros de Travers passaram a vender menos, e ela se viu numa situação financeira ruim. Portanto, ela teria vendido os direitos para Disney porque precisava de dinheiro.
Quando citam a palavra “Disney”, a primeira coisa que nos lembramos é de animações como Branca de Neve e os Sete Anões (1937), A Bela Adormecida (1959), Dumbo (1941), etc…entretanto, não é só nelas que o estúdio se destacou. Na década de 60 e 70, muitos live-actions (Filmes com atores reais) foram lançados, e o que possibilitou essa leva foi The Shaggy Dog (1959) de Charles Barton. Na época, se tornou o filme mais rentável da Walt Disney Pictures, e influenciou os longas seguintes a serem produzidos de forma mais econômica dentro do estúdio, tendo como seu resultado final (Na maioria das vezes) um sucesso de bilheteria. Entretanto, existia um projeto muito mais antigo, que durou 20 anos para sair do papel. Esse projeto é o clássico musical Mary Poppins, considerado por muitos o melhor live-action da Disney e um dos melhores filmes já feitos. O amor que as filhas do gênio Walt Disney tinham pela história lhe motivou a tentar adaptar a história, mas não foi uma jornada fácil.
O problema era a autora P.L Travers, que não queria ver sua obra sendo transformada em “mais um de seus desenhos bobos”. Se o filme fosse feito por ela com total liberdade, Julie Andrews e Dick Van Dyke nem pensariam em serem escalados para o elenco, as cenas misturando atores reais com animação não existiriam, e músicas marcantes como A Spoonful of Sugar, Supercalifragilisticexpialidocious, Chim Chim Cher-ee e Feed The Birds sequer seriam ideias passando na mente dos Irmãos Sherman, já que Travers não queria um musical. Resumindo, se Pamela Travers não estivesse em uma grave situação financeira, Walt poderia tirar o cavalinho da chuva porque nunca conseguiria os direitos. E é justamente da relação entre o visionário e a exigente escritora que Walt nos Bastidores de Mary Poppins (Saving Mr. Banks) trata.
O filme começa em 1961, ano em que Travers estava precisando de dinheiro e decide ceder os direitos, porém tendo condições, como a história não ser transformada em um filme animado. Ela viaja para os Estados Unidos e e começa a trabalhar com a equipe escolhida por Disney (Don DaGradi e os Irmãos Sherman) para que a adaptação de Mary Poppins saia como ela deseja. Pamela encontra, em sua visão, “inúmeros” problemas no roteiro, visual dos personagens e nas músicas. Como o contrato lhe possibilita cancelar a cessão dos direitos caso não esteja satisfeita, Walt e a equipe precisam aceitar boa parte de suas ideias para que a babá mágica finalmente voe das páginas dos livros aos cinemas.
Além dos bastidores, a trama mostra o passado de Travers e as duas inspirações para Mary Poppins e o Senhor Banks: Sua tia, Helen Morehead (Rachel Griffiths), e seu pai, Travers Robert Goff (Colin Farrell). Eis a explicação para ela ser tão exigente com os escritores sobre os dois personagens, chegando a reclamar do bigode de David Tomlinson. Então, o filme alterna entre a infância de Pamela e sua relação com o pai (Que era alcoólatra) e no presente, mostrando as diversas discussões e dores de cabeça que ela causava para o grupo de Disney. Emma Thompson traz muito bem a negatividade e a exigência que Travers transmitia, e o diálogo com Don DaGradi sobre as primeiras partes do roteiro é sua melhor cena. Tom Hanks não é muito parecido fisicamente com Disney, mas entrega a mesma personalidade demonstrada em público. Sei que estamos falando de uma produção do estúdio a qual ele foi o criador, mas seria interessante apresentar um pouco mais da verdadeira personalidade de Walt e não a mesma imagem a qual estamos acostumados. Outras partes da trajetória de Travers que poderiam ter sido explorados, como sua bissexualidade, a relação com o filho adotivo e outras brigas um pouco mais interessantes durante as filmagens, acabaram sendo ignorados por John Lee Hancock. O diretor Robert Stevenson e o roteirista/produtor Bill Walsh sequer apareceram.
Há um salto de 3 anos, chegando em 1964 na premiere do filme. Os que conhecem o verdadeiro final sabem que Pamela odiou a versão cinematográfica com todas as forças, chegando a chorar de raiva. É meio óbvio que não iriam mostrar isto claramente em Walt nos Bastidores de Mary Poppins, e no lugar fizeram uma boa sacada ao meu ver. Não quero revelar muito, pois posso acabar estragando o final.
Após assistir, podemos perceber que a cinebiografia decidiu criar mais uma história interessante baseada no que aconteceu de verdade do que algo chegando quase 100% na realidade dos fatos. Por isso, não o veja pensando ser algo extremamente fiel. E se você é uma pessoa um pouco mais exigente quanto aos filmes biográficos, sugiro que no lugar veja algum documentário relacionado à Mary Poppins. E não se engane pelo título brasileiro, pois esse filme pertence à já falecida Pamela Travers, e não ao criador do camundongo mais famoso do mundo.
Observação: Para quem quiser saber mais, recomendo ler a matéria “A relação fantástica e conflituosa entre Walt Disney e P.L Travers”, do O Globo. Foi por ela que realizei minhas pesquisas para a crítica.
Walt nos Bastidores de Mary Poppins (Saving Mr. Banks) – EUA, 2013, cor, 125 minutos.
Direção: John Lee Hancock. Roteiro: Kelly Marcel, Sue Smith. Música: Thomas Newman. Cinematografia: John Schwartzman. Edição: Mark Livolsi. Elenco: Emma Thompson, Tom Hanks, Paul Giamatti, Jason Schwartzman, Bradley Whitford, Colin Farrell, Ruth Wilson, Bradley Whitford, BJ Novak, Jason Schwartzman, Kathy Baker, Rachel Griffiths, Kristopher Kyer, Victoria Summer.