Duas pessoas podem sonhar a mesma coisa? Elas podem se encontrar em seus sonhos? Essa premissa com contornos de fábula é o ponto de partida para a experiente cineasta húngara Ildikó Enyedi escrever com sua câmera a mais pura poesia, após quase duas décadas de ausência – seu último trabalho havia sido em 1999. Corpo e Alma é o nome do poema, vencedor do 67º Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2017. Enyedi levou uma década inteira para tirá-lo do papel, por causa de uma grave crise na indústria cinematográfica da Hungria. Mas a espera valeu a pena. Realidade e fantasia entrelaçam-se em uma obra-prima onírica, que mais parece literatura em fotogramas.
Estamos em uma floresta encoberta pela neve, magistralmente capturada pela câmera de Enyedi. Dois cervos caminham sinuosamente por um riacho. O macho para e observa a fêmea. Fareja-a. Os dois fitam-se; tocam os focinhos, perseguem-se. Corta a cena. Estamos em um matadouro nos arredores de Budapeste, na Hungria. A câmera da cineasta captura detalhes das patas e cabeças dos bois presos nas jaulas, seus olhares perdidos por entre as grades, na direção da câmera. Homens uniformizados estão ao redor. A higienização é industrial nesse espaço de vísceras, tripas e sangue, mas profundamente asséptico e opaco, sem vida.
Endre (Géza Morcsányi) é o diretor financeiro do matadouro, um homem de meia-idade, desencantado da vida, que tem o braço esquerdo paralisado e vive sozinho. Mária (Alexandra Borbély) é a nova funcionária responsável pelo controle de qualidade das carnes do matadouro, uma jovem mulher na casa dos 30 anos, com uma beleza enigmática e uma timidez excruciante, fruto de algum transtorno (nunca revelado pelo roteiro de Enyedi, assim como a causa do braço paralisado de Endre) que a torna excessivamente sensível ao contato físico e impede que estabeleça relações sociais com as pessoas.
Uma situação de roubo no ambiente de trabalho acaba levando à contratação de uma psicóloga (Réka Tenki) para investigar todos os funcionários. Durante as sessões, descobre-se que Endre e Mária sonham a mesma coisa todas as noites: ambos são o casal de cervos na floresta. Em pouco tempo, os dois tentarão encontrar um modo de transformar esses sonhos em realidade.
A direção e o roteiro de Ildikó Enyedi são incríveis, investindo sobremaneira em uma das coisas mais essenciais do cinema, que é a arte do não dito, no estímulo que se cria com aquilo que não é mostrado. Suas composições são sublinhadas por longos períodos de silêncio, em uma construção lenta e ritmada, onde o que mais importa perceber são os olhares distantes (especialmente close-ups dos olhos imperturbáveis da incrível Alexandra Borbély) e planos-detalhes de gestos e movimentos que revelam muito sobre as personalidades da sua dupla de protagonistas, além de ser através deles que, ao mesmo tempo, se impõe tanto os obstáculos quanto o desejo entre o futuro casal, cada um com suas próprias limitações.
A sua narrativa articula-se em fragmentos, estilhaços, deixando que o espectador seja capaz de abrir sua imaginação para preencher as lacunas que o roteiro intencionalmente não expõe. Talvez Endre e Mária gostem um do outro. Talvez estejam apaixonados. Talvez dê certo um relacionamento entre os dois. Talvez dê errado. Em meio a dissabores, alegrias, descobertas e desilusões, a conexão única que compartilham fará com que ambos revejam conceitos e certezas e experimentem juntos a jornada do amor.
É uma Hungria pós-comunista, industrial, acinzentada e danificada, a surgir na bela fotografia de Máté Herbai, carregada de tons frios, que apresenta o ambiente estéril do matadouro (que a câmera de Enyedi faz questão de explorar em toda a sua automação que normatiza e padroniza a morte), a alvura extrema da floresta dos sonhos e a solidão dos apartamentos dos protagonistas. Uma frieza que aos poucos vai experimentando texturas mais quentes, conforme o relacionamento entre Mária e Endre começa a dar seus primeiros passos, além de aproximar em ambientes únicos a beleza mais sideral e a feiura mais sanguinolenta da morte.
Ao mesmo tempo em que acompanhamos os idílicos sonhos no ambiente nevado, Enyedi traça um paralelo entre o imaginário sonhar e a realidade das vidas solitárias dos dois, apresentando ao espectador as rotinas monótonas e melancólicas que ambos levam todas as noites até adormecerem; Endre em seu apartamento escuro e claustrofóbico, Mária em seu alvo apartamento, quase um ambiente hospitalar.
O excelente Géza Morcsányi compõe um Endre desiludo, que mesmo tendo alguns poucos amigos (com os quais conversa monossilabicamente), uma vida social e uma boa posição profissional, optou conscientemente pela reclusão em vez do envolvimento emocional – Mária será a responsável por uma mudança de rumo em sua decisão.
Uma soberba Alexandra Borbély, antiga aluna de Enyedi, encanta e emociona na pele de uma jovem a quem todo o universo de relações interpessoais, uma das bases da vida em sociedade, ressoa com hostilidade e aspereza. Com expressões faciais quase sempre impassíveis (é um primor a primeira vez em que, timidamente, esboça um sorriso) e uma rotina rígida em todos os aspectos, a atriz compõe uma personagem única e cativante.
No almoço na empresa, Mária sempre escolhe a mesa mais isolada e permanece em silêncio – na hora do lanche, nem sai de sua sala. Segue estritamente todas as regras e tem uma memória eidética absurda que a permite lembrar-se até mesmo da décima-sétima coisa que Endre lhe disse depois que se conheceram.
A possibilidade de um relacionamento com Endre leva Mária a tentar de todas as formas vencer as suas limitações, levando o roteiro de Enyedi a algumas das cenas mais curiosas e engraçadas do longa-metragem, como os ensaios que Mária tenta fazer das conversas que terá no dia seguinte com Endre, usando bonecos de LEGO e imaginando tudo o que dirá e tudo o que irá ouvir – e que obviamente nunca funcionam, já que Endre nunca responde o que ela imaginou durante seu “treinamento” de socialização.
A partir das conversas com o seu terapeuta (infantil, o mesmo que a acompanhava quando criança, e que ela se recusa a trocar), tentará outras formas de vencer sua incapacidade de estabelecer interações com as pessoas: como comprar um urso de pelúcia e acariciá-lo nas noites frias, fazer carinho em uma das vacas do matadouro (para zombaria dos demais funcionários), tentar escutar música e se deixar emocionar por suas melodias e letras, ou deitar na relva de um parque ao entardecer, enquanto sente as gotas de água tocarem-lhe por todos os poros.
Corpo e Alma é uma história de amor entre um homem que já desistiu das relações românticas e uma mulher que nunca pôde viver uma. Um conto-fábula bonito e quase trágico – a sequência da tentativa de suicídio na banheira é potente e profundamente incômoda. Sua superfície enganosa de aparente simplicidade esconde uma obra sofisticada, pertencente àquela rara categoria de filmes que permanecem reverberando significados nas mentes dos espectadores muito tempo depois que terminam.
Nas palavras da própria Enyedi: “Há fogo sob o gelo, paixão sob a superfície, e foi isso que nos inspirou em Corpo e Alma.” Somos espectadores de um jornada sobre amor e descobertas, testemunhas oculares de uma conexão improvável que nasce a partir do material do qual são feitos os sonhos – o efeito mágico que a canção What He Wrote, de Laura Marling, provoca, é a prova inconteste do talento de Enyedi para encantar e seduzir através da arte. Dotado de uma originalidade ímpar e um estilo completamente incomum, Corpo e Alma é uma obra fabulosa que transita entre realidade e fantasia, a cada cena um convite sobre a comunicação que é a arte de amar, o abrir-se de corpo e alma ao outro, mesmo que tudo pareça desafiar a lógica e as impossibilidades. Um filme raro, de uma cineasta rara, emoldurado por contornos de fábula literária.
Corpo e Alma (Testről és lélekről) – Hungria, 2017, cor, 116 minutos.
Direção: Ildikó Enyedi. Roteiro: Ildikó Enyedi. Música: Adam Balazs. Cinematografia: Máté Herbai. Edição: Károly Szalai. Elenco: Géza Morcsányi, Alexandra Borbély, Zoltán Schneider, Ervin Nagy, Itala Békés, Júlia Nyakó, Réka Tenki, Zsuzsa Járó, Tamás Jordán.