Lucky é o canto do cisne de uma lenda do cinema independente norte-americano: Harry Dean Stanton. O ator faleceu em setembro de 2017, aos 91 anos, duas semanas antes do lançamento em circuito comercial do filme, dirigido por John Carroll Lynch. Oficialmente definido como “uma carta de amor à vida e à carreira de Harry Dean Stanton”, Lucky acompanha a história do personagem homônimo, um veterano da Marinha dos EUA – e as semelhanças entre Stanton e personagem se entrelaçam fortemente: ambos serviram na Marinha durante a Segunda Guerra Mundial e nunca se casaram nem tiveram filhos. Lucky é um ateu convicto, calado, turrão, briguento e fumante inveterado (suas tosses o denunciam constantemente) com uma inexplicável saúde de touro. Ele vaga pela pequena cidadezinha em que vive papeando com amigos e conhecidos, fazendo palavras cruzadas, seguindo uma rotina, até que um colapso súbito em casa, sem explicação fisiológica aparente, faz com que comece a temer a morte. Por mais saudável que ele seja, o médico recorda-o de uma verdade dura: o declínio natural da velhice chega para todos. A morte é inevitável.
Além de ser um tributo à carreira de Harry Dean Stanton, um dos mais notáveis character actors do cinema (atores coadjuvantes que interpretam personagens incomuns), famoso pelos inúmeros tipos excêntricos que desempenhou ao longo de seis décadas, o filme marca a estreia como diretor do ator John Carroll Lynch, que também tem uma carreira marcada por personagens característicos. Lucky é ainda uma intimista reflexão existencialista sobre mortalidade e velhice. As metáforas sobre a finitude são abundantes e circulares: o corpo envelhecido de Lucky (que Stanton não se incomoda em expôr) dialoga diretamente com a paisagem deteriorada da pequena cidade; suas ações diárias, lentas mas contínuas, invariáveis, encontram eco na belíssima sequência de abertura com o cágado Presidente Roosevelt locomovendo-se da direita para a esquerda no árido ambiente repleto de cactos (e se repete ao final, com o animal surgindo da esquerda para a direita). Entretanto, inexiste a forte melancolia tão esperada a obras do tipo: ao contrário, há muita diversão e celebração. A lembrança de uma vida que foi vivida com muito gosto é o que há para ser celebrado.
A direção certeira de John Carroll Lynch, com seus ângulos incomuns, constrói uma obra que transparece a sensação de acompanharmos o nonagenário Lucky por semanas ou meses – e não por apenas alguns dias. O roteiro de Logan Sparks e Drago Sumonja e a edição de Robert Gajic vão revelando as coisas em um ritmo muito particular: não há pressa aqui. Lucky é mais um daqueles filmes independentes norte-americanos erguidos sobre vazios. É o cotidiano de Lucky descortinando-se cena a cena, quadro a quadro: os cinco exercícios de yoga que Lucky executa ao acordar são apresentados em uma ótima montagem de takes curtos; os cafés diários na lanchonete de Joe (Barry Shabaka Henley), enquanto resolve palavras-cruzadas, a sua obsessão; as caminhadas para comprar leite e cigarros na lojinha de Bibi (Bertila Damas), mãe do pequeno Juan “Wayne” (Ulysses Olmedo); os game shows a que assiste sem muito interesse na TV e o telefone vermelho; o bloody mary de todas as noites no bar de Elaine (Beth Grant) e as conversas com Howard (David Lynch), Paulie (James Darren) e Vincent (Hugo Armstrong) – Lynch é responsável por um monólogo memorável sobre a sentida ausência do Presidente Roosevelt, que escapou de sua casa; os desentendimentos com Bobby (Ron Livingston), o advogado de Howard; e as eventualidades, como uma tocante conversa com o veterano fuzileiro Fred (Tom Skerritt). Em um primeiro momento, algumas sequências parecem soltas, descoladas, sem utilidade definida, como o “danem-se!” esbravejado por Lucky sempre que passa em um lugar específico, mas no quadro final terão adquirido a sua devida importância.
Lucky é um testamento. À certa altura, o personagem sente que necessita compartilhar a sua independência (ser sozinho é diferente de ser solitário, ele faz questão de ressaltar) com o convívio ao lado de vizinhos, amigos e colegas, que se importam muito com ele – o emocionante número com uma canção mariachi na festa de aniversário de Juan “Wayne” ilustra bem esse ponto e explora outra faceta do lendário ator: o cantor. No crepúsculo da vida, o arredio Lucky fortalece os laços com as pessoas que fazem parte do seu cotidiano. Parece alcançar uma paz diferente, uma completude que talvez não existisse anteriormente, até seu súbito desmaio. Nada é permanente. Essa é a realidade indelével das coisas – e o significado da palavra “realismo” acompanha toda a narrativa. Diante do nada, da inevitabilidade do fim, de que tudo vai desaparecer e acabar, o que podemos fazer é sorrir, celebrar e viver, enquanto há vida para ser vivida – e um sorriso dado por Harry Dean Stanton diretamente para a câmera é uma das últimas cenas do filme, um belíssimo adeus a encerrar uma obra que versa sobre o fim da vida ensinando muito mais sobre a necessidade de se viver.
Lucky (Lucky) – EUA, cor, 88 minutos.
Direção: John Carroll Lynch. Roteiro: Logan Sparks e Drago Sumonja. Música: Elvis Kuehn. Cinematografia: Tim Suhrstedt. Edição: Robert Gajic. Elenco: Harry Dean Stanton, David Lynch, Ron Livingston, Ed Begley Jr., Tom Skerritt, Beth Grant, James Darren, Barry Shabaka, Yvonne Huff, Hugo Armstrong, Bertila Damas, Ana Mercedes, Amy Claire e Ulysses Olmedo.