Pedi eu, ó meu criador, que do barro
Me fizesses homem? Pedi para que
Me arrancasses das trevas?

(O paraíso perdido, X, 743-45)

Os versos da famosa obra do poeta britânico sobre a história cristã da Queda do Homem são a epígrafe do livro. E diferente não poderia ser. O questionamento feito pelo homem a Deus na obra-prima de John Milton é o mesmo que o monstro, criatura, faz constantemente a Victor Frankenstein, seu criador.

Popularmente conhecida apenas como Frankenstein, a magnum opus da escritora britânica Mary Shelley (1797-1851), nasceu de uma aposta. Isso mesmo, de uma aposta. Confinados à beira do Lago Léman, na Suiça, no verão que não existiu em 1816 por conta da erupção do vulcão Tambora na Indonésia no ano anterior, estavam Mary Shelley, seu futuro marido Percy Bysshe Shelley – um dos grandes poetas românticos britânicos –, John Polidori – também escritor –, e Lord Byron – um dos maiores poetas britânicos –, que, eventualmente, propôs que os quatro escrevessem histórias de terror: “Cada um de nós vai escrever uma história de fantasmas“, como diz a própria Mary Shelley na introdução do livro.

Ela demorou a encontrar a sua história. Aquela incapacidade de invenção que é a maior desgraça de um escritor a acometia dia após dia. Uma conversa entre Lord Byron e Percy sobre a natureza do princípio da vida e a hipótese de se reanimar um cadáver acionaria o gatilho da sua criatividade. Sem conseguir dormir depois disso, Mary adentrou a noite vendo nitidamente em seus pensamentos uma odiosa tentativa humana de imitar o estupendo mecanismo do Criador do mundo. Na manhã seguinte anunciou que havia encontrando a sua história e começou a escrevê-la com as seguintes palavras: “Era uma sombria noite de novembro”.

O que inicialmente seria um conto curto, e escrito como fonte de diversão, tornou-se, por insistência de Percy, um romance que se transformaria em um marco da literatura de horror e seria considerada a primeira obra de ficção científica da literatura ocidental. Aquela noite sombria de novembro não terminaria jamais. Na memória de tantos e tantos leitores atingidos pela genialidade da criação de Mary Shelley, e na vida de Victor Frankenstein, que se transformaria em uma eterna noite sombria.

“Pedi eu, ó meu criador, que do barro me fizesses homem?”

A narrativa começa do final e é feita através de cartas. O capitão Robert Walton está no comando de uma expedição náutica em busca de uma passagem para o Pólo Norte quando seu navio fica preso no gelo. A tripulação avista uma criatura gigantesca viajando em um trenó puxado por cães a meia milha de distância. Na manhã seguinte encontram um moribundo Victor em um trenó à deriva em um pedaço de gelo ao lado da embarcação. Resgatado pela tripulação, Victor conta sua história ao capitão, e, posteriormente, a reproduz em cartas que envia para a sua irmã. Alternando momentos de insanidade, melancolia e tristeza, Victor conta uma história estranha e fascinante.

”Este manuscrito vai, sem dúvida, causar-lhe muito prazer; mas, para mim – que conheço o homem e cuja narrativa ouvi de seus próprios lábios –, que interesse e simpatia não despertarão quando eu o ler no futuro! Mesmo agora ao começar minha tarefa, sua voz cheia ecoa em meus ouvidos; seus olhos brilhantes me envolvem com melancólica suavidade; vejo sua mão fina agitar-se animada, enquanto suas feições irradiam, transparecendo a alma que ele encerra. Estranha e angustiante deve ser sua história, terrível a tempestade que envolveu o seu navio heroico e o fez soçobrar – assim!”

Na tradição judaico-cristã, Adão perde o Paraíso por comer do fruto da árvore do conhecimento. Na tradição greco-romana, Prometeu é condenado ao tormento por roubar o fogo de Héstia e dá-lo aos homens. Victor Frankenstein emula o titã (não à toa a obra foi nomeada por Mary Shelley como O Moderno Prometeu) em sua trágica jornada de ousadia e horror. Traz para si dor, privação e exílio – tudo aquilo que infligiu à sua monstruosa criação.

Como um moderno Prometeu, Victor Frankenstein, encantado pelos escritos dos grandes mestres alquimistas, desvenda os mistérios que separam a morte da vida e, após dois anos de estudos febris, desafia a ordem natural das coisas concedendo vida a um corpo inanimado. Movido por orgulho, o jovem Victor sacrifica o contato com a sua família e a própria saúde até conseguir o que deseja. Mas enoja-se da sua odienta criação no exato instante em que ela desperta, fugindo e abandonando-a à própria sorte, vivendo os dois anos seguintes longe de sua família, quase entregue à loucura, sob os cuidados de um amigo seu.

”Oh! Nenhum mortal seria capaz de suportar o horror daquele rosto. Uma múmia revivida não seria tão horrorosa quanto aquele destroço. Eu o contemplara antes de terminar meu trabalho; ele era feio, porém, quando aqueles músculos e articulações passaram a se mover, ele se tornou uma coisa que nem Dante poderia ter concebido.”

À criatura, abandonada pelo seu criador, o mundo reservara apenas as regiões inóspitas: as montanhas e os bosques. O exílio forçado. Impossível era viver entre os humanos; sua simples presença era motivo para os mais cruéis ataques. Sozinho em uma floresta, a criatura aprende a dominar o fogo e a viver do consumo de frutas e vegetais. Eventualmente esconde-se em um depósito de lenha anexo a uma cabana. Através das frestas na parede, afeiçoa-se à família local (um pai cego e um casal de irmãos), ajudando-os em segredo. Extremamente inteligente, dotado de uma alma gentil e apreciador da natureza e da poesia, a criatura vai adquirindo grande conhecimento através da observação, até que, ao criar coragem e estabelecer contato com o pai cego, é escorraçado do lugar quando seus filhos chegam. A amargura toma conta da sua alma e o ódio despejado pelos humanos desperta nele uma fúria irrefreável – característica, no fim, tão humana.

Tanto quanto Victor, a criatura desperta no leitor sentimentos diversos. Victor ora nos convence, ora nos comove, às vezes causa simpatia, noutras, revolta. O monstro desperta assombro, repugnância, ao mesmo tempo em que nos enche de melancolia e tristeza. É um tanto quanto irônico que a criatura tenha assumido para os leitores o nome do seu criador, passando a ser referida como Frankenstein: criador e criatura, qual dos dois é o verdadeiro monstro? É o questionamento que nos fazemos durante toda a leitura da obra.

”– Como poderei sensibilizar-te? Será que nenhuma súplica faz com que olhes com benevolência para a tua criatura, que implora tua bondade e compreensão? Acredita-me, Frankenstein, eu era bom; minha alma estava cheia de amor pela humanidade; mas não estou só, miseravelmente só? Tu, meu criador, me detestas; que posso, pois, esperar de teus semelhantes, que nada me devem? Eles me desprezam e me odeiam. As montanhas desérticas e as geleiras lúgubres são o meu refúgio. Vagueio por aqui há muito dias; as cavernas geladas, que eu não temo, me servem de abrigo, o único que o homem não me disputa. Eu saúdo esses céus desolados, pois eles são melhores para mim do que os teus semelhantes.”

A criatura assassina o irmão mais novo de Victor e incrimina a empregada, que acaba enforcada. Quando finalmente Victor retorna à casa, é confrontado pelo monstro, que exige que ele crie uma fêmea para si, prometendo assim deixar a humanidade em paz e ir viver isolado nas selvas. Caso Victor se recusasse, a criatura faria sofrê-lo mais do que já sofrera. Inicialmente Victor concorda, mas depois de dar início à criação, desiste, destruindo a criatura incompleta. O monstro assiste tudo e jura vingança. A partir daí, com a vida tão arruinada quanto a de sua criatura, Victor empreende uma jornada aos confins da Terra na tentativa de destruir a sua criação. O preço pela sua audácia já havia sido alto demais e nada mais restava. O final da obra é pungente.

”– Pela sagrada terra sobre a qual me ajoelho, pelas sombras que pairam à minha volta, pela profunda e eterna dor que eu sinto, eu juro; e juro pela noite, e pelos espíritos que a presidem, perseguir o demônio que causou esta desgraça, até que ele ou eu pereçamos numa luta de morte. Para isso pouparei minha vida. Para executar essa vingança é que eu continuarei a contemplar o sol e a pisar os verdes relvados da terra que, de outro modo, eu baniria para sempre de minha vista. E imploro aos espíritos dos mortos, e aos mensageiros da vingança, que me ajudem a cumprir a minha obra. Que o maldito e diabólico monstro mergulhe na agonia e experimente o desespero que agora me atormenta.”

O texto é primoroso. Frankenstein não é apenas um grande livro de terror, uma das maiores histórias de terror de todos os tempos. É um grande livro. Simplesmente. É literatura da melhor qualidade. Não à toa fincou seu nome entre as grandes obras que a literatura já produziu e a criatura que tomou para si o nome do criador, tornou-se imortal no hall das criaturas fantásticas. Quem não leu, leia. Quem leu, leia de novo. Grandes livros merecem ser lidos reiteradas vezes, em várias fases da vida, como ensinava Gabriel Garcia Márquez.

A influência na cultura pop

O monstro – nunca nomeado no livro –, assume o sobrenome do seu criador e torna-se, sem sombra de dúvidas, um ícone da cultura popular. Reinventado em inúmeras mídias, o monstro aparece no cinema (eternizado na figura do lendário Boris Karloff no clássico filme de 1931 e suas sequências), no teatro, no rádio, na televisão, nos quadrinhos (foi uma das influências – ao lado de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson – para a criação de um dos mais populares personagens das histórias em quadrinhos, O Incrível Hulk) e até mesmos nos desenhos animados (de Frankenstein Jr., de Hanna-Barbera ao Stein de A Turma do Arrepio, de César Sandoval, passando pelo Frank da Turma da Mônica, de Maurício de Souza).

Indo do terror a comédia, Frankenstein inspirou inúmeros filmes ao longo das décadas. Tentando ser fiel ao livro, alterando a sua história, inspirando-se livremente nela, ou mesmo usando sua estrutura para criar uma história original, muitos filmes foram produzidos. Abaixo uma listagem incompleta de filmes inspirados no livro de Mary Shelley:

  • Frankenstein, 1910, p&b. De J. Searle Dawley. (produzido pelo estúdio de Thomas Edison. Sim, ele mesmo, o inventor da lâmpada elétrica incandescente que, entre outras coisas, inventou também o cinematógrafo, a primeira máquina de filmar bem-sucedida.)
  • Frankenstein, 1931, p&b. De James Whale.
  • A Noiva de Frankenstein, 1935, p&b. De James Whale.
  • O Filho de Frankenstein, 1939, p&b. De Rowland V. Lee.
  • Frankenstein Encontra o Lobisomem, 1943. De Roy William Neill.
  • A Alma de Frankenstein, 1942. De Erle C. Kenton.
  • A Casa de Frankenstein, 1944. De Erle C. Kenton.
  • A Maldição de Frankenstein, 1957. De Terence Fisher.
  • I Was a Teenage Frankenstein, 1957. De Herbert L. Strock.
  • A Vingança de Frankenstein, 1958. De Terence Fisher.
  • Frankenstein Tem que Ser Destruído, 1969. De Terence Fisher.
  • O Horror de Frankenstein, 1970. De Jimmy Sangster.
  • Drácula Vs. Frankenstein, 1971. De Al Adamson.
  • Carne para Frankenstein, 1973. De Paul Morrissey e Antonio Margheriti.
  • Blackenstein, 1974. De William A. Levey.
  • O Jovem Frankenstein, 1974. De Mel Brooks.
  • A Prometida, 1985. De Franc Roddam.
  • Frankenhooker: Que Pedaço De Mulher!, 1990. De Frank Henenlotter.
  • Edward Mãos de Tesoura, 1990. Tim Burton.
  • Frankenstein – Terror das Trevas, 1990. De Roger Coman.
  • Frankenstein de Mary Shelley, 1994. De Kenneth Branagh.
  • Frankenstein, 2007. De Jed Mercurio (filme para televisão).
  • Frankenweenie, 2012. De Tim Burton.
  • Frankenstein: Entre Anjos e Demônios, 2014. De Stuart Beattie.
  • Victor Frankenstein, 2015. De Paul McGuigan.

Desmistificando a mitologia

Muita gente não sabe que muitos dos elementos amplamente divulgados como parte da mitologia do personagem não existem no livro. Os famosos parafusos no pescoço, a coloração verde da sua pele – nos livros sua pele é descrita da seguinte forma “Sua pele amarela mal cobria o relevo dos músculos e das artérias que jaziam por baixo“, nada disso confere com a descrição do monstro feita no livro. Ele também não é lento e desajeitado, sendo descrito como uma criatura extremamente ágil e veloz.

Não existe um castelo macabro em uma colina e muito menos um laboratório repleto de tubos, potes e tantos outros objetos. Não há correntes ligando o corpo odioso do monstro em uma maca a uma claraboia aberta que recebe a descarga elétrica de um relâmpago em uma noite tempestuosa. Não existe um ajudante corcunda chamado Igor. Victor Frankenstein não é um cientista louco e obcecado, ao contrário, é sonhador e ligado à sua família, vindo a arrepender-se gravemente da sua criação no exato instante em que, com incontido horror, vê, a uma hora da madrugada, a criatura abrir o olho e arfar.

O monstro, diferentemente do que é apresentado em praticamente todas as adaptações, é dotado de grande inteligência, sendo descrito como um apreciador da poesia e da beleza, e dono de uma alma gentil, que, diante do desprezo do seu criador e da maldade humana encontrada por todos os lugares por onde passa, termina por transformar-se em puro ódio e maldade.

Pedi para que me arrancasses das trevas?

Frankenstein passeia pelo sonho da imortalidade, imagina o homem com o poder de um deus. Questiona a ciência, discute ética e moralidade. Ensina sobre o preço que o conhecimento carrega consigo e como sempre haverá consequências para tudo que rompa os princípios éticos e morais da humanidade. Sua narrativa comove, emociona, constrange, faz sonhar e pensar. Inquieta. Obra-prima para ler e reler o quanto for possível.

Frankenstein ou o Moderno Prometeu (Frankenstein: or the Modern Prometheus) – Reino Unido, 1818. Autor: Mary Shelley. Tradução: Mécio Araujo Jorge. Publicação no Brasil: L&PM Pocket. Formato: 14 x 21, 280 páginas. Catalogação: Ficção inglesa-Romances.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.