Lumière é a palavra francesa para “luz”. E outro não poderia ser o sobrenome dos irmãos franceses Auguste e Louis, inventores do cinematógrafo e cognominados pais do cinema – o destino, esse ente intangível, tal qual um roteirista ruim de novela, não permitiria que uma palavra com outro significado nomeasse os dois homens. Afinal, a história da sétima arte é também a história da luz. É a luz o que move o cinema; “forma primordial, a partir da qual os sonhos cinematográficos se constituem“, afirmou certa vez algum crítico. Por quase trinta anos o cinema subsistiu sem som. Mas sem luz jamais teríamos projeções, exibições ou a enorme tela iluminada em uma sala escura… jamais teríamos o cinema.

Antepassado das modernas câmeras atuais, o cinematógrafo é um aparelho à manivela portátil que registra uma série de fotogramas fixos, criando uma ilusão de movimento, que depois é projetado sobre uma tela. Foi patenteado pelos irmãos Lumière em 13 de fevereiro de 1895, mas teria sido inventado em 1892 pelo francês Léon Bouly, que perdeu a patente. O aparelho é considerado um aperfeiçoamento do cinetoscópio, criado pelo norte-americano Thomas Edison em 1891. Controvérsias sobre a real paternidade do cinematógrafo à parte, o legado revolucionário dos irmãos franceses para a criação da sétima arte é inegável e inquestionável – várias máquinas existiram antes do cinematógrafo, nenhuma depois dele. A contribuição de Louis e Auguste foi muito além de um aparelho capaz de capturar imagens e projetá-las em movimento, mas espalhou-se pelo estabelecimento de técnicas que fundaram as bases do cinema. Os irmãos Lumière simplesmente criaram a arte cinematográfica. Foram inventores e os primeiros cineastas.

Com seus mais de 1.400 filmezinhos de 50 segundos cada, os dois irmãos registraram a realidade do seu tempo, diretamente ou através de encenação, e derramaram muita diversão e humor sobre todas as coisas. A partir da lendária sessão pública de 28 de dezembro de 1895, em Paris, que exibiu dez filmes silenciosos para um público maravilhado que não fazia ideia do que aquilo um dia se tornaria, eles construíram um negócio gigantesco, com exibições globais, e gravações ao redor do mundo – o cinema torna-se para eles, também um instrumento para se conhecer (e registrar) o mundo.

Lumière! A Aventura Começa é uma compilação de 114 filmes feitos pelos irmãos e por seus operadores do cinematógrafo na França e em várias partes do planeta, entre 1895 e 1905, alguns conhecidos (como A Saída dos Operários da Fábrica Lumière (1895), o primeiro filme da história do cinema, O Jardineiro Regando (1895), uma comédia que contém a primeira gag da história do cinema, e A chegada do trem na estação (1895), talvez o primeiro filme de terror da história do cinema, que fez os espectadores de Paris fugirem apavorados, temendo que o enorme trem rompesse a tela e os atropelasse), outros não, todos devidamente restaurados em 4K e selecionados, organizados e comentados por Thierry Frémaux, diretor do Instituto Lumière de Lyon e delegado-geral do Festival de Cannes.

A estrutura desse fabuloso documentário é extremamente simples: os filmezinhos de 50 segundos passam na tela em seu formato original, com bordas arredondadas, durante 90 minutos que são divididos tematicamente e embalados pela fenomenal trilha sonora de Camille Saint-Saëns, composta por sabores doces de épocas passadas, enquanto Frémaux tece comentários extremamente enriquecedores, deliciosos e cômicos (muitos, aliás!) sobre as origens e curiosidades das filmagens, aponta seu olhar para uma França e um mundo já desaparecidos, dá explicações sensacionais sobre a então nascente linguagem cinematográfica, e traça paralelos entre as primeiras obras dos Lumière com clássicos de grandes diretores como D. W. Griffith, Elia Kazan, John Ford, Jean Renoir, Akira Kurosawa, James Cameron, Charles Chaplin e Raoul Walsh, capturando semelhanças inacreditáveis entre elas – como tomadas similares entre filmes dos irmãos e cenas icônicas de clássicos como O Grande Ditador (1940), Os Sete Samurais (1954) e Titanic (1997).

A noção de mise-en-scène, de composição, de movimento, de tempo; o primeiro traveling, a primeira vez em que uma câmera foi movimentada dentro de um filme, o primeiro plano-sequência, os primeiro efeitos especiais, o contracampo, a profundidade de campo; a encenação dentro da encenação… os irmãos inventaram até mesmo o “remake“, já que há três versões de A Saída dos Operários da Fábrica Lumière e regravações de O Jardineiro Regando, um dos prediletos do público da época. Tudo isso é explicado com uma didática impressionante nos comentários de Frémaux.

A curiosidade dos irmãos Lumière em relação ao mundo moveu o cinema. A sede de registrar todas as coisas era inesgotável: situações domésticas e familiares, o trabalho do povo, o caminhar da multidão, a diversão das horas de lazer, os soldados dançarinos, os carrinhos de bebês em procissão, as corridas de bicicletas, os monumentos históricos da França, o colonialismo da época, a suntuosidade dos monarcas, as sequências pictóricas em países até então desconhecidos, o deslumbramento das grandes construções das metrópoles mundiais…

E o último filme exibido pelo documentário é aquele que talvez seja um dos mais belos daquele período, produzido pelo operador Gabriel Veyre: A Vila de Namo (1900). O cinematógrafo posicionado na parte de trás de uma liteira em movimento inicia uma sequência panorâmica que captura as pessoas de um vilarejo no sul da Ásia que viam aquela máquina pela primeira vez. As crianças correm alegremente atrás do aparelho, até que sobra apenas uma garotinha, devidamente enquadrada na composição, sorrindo e correndo na direção da máquina, até findarem os 50 segundos de gravação que a tecnologia permitia naquela época.

Lumière! A Aventura Começa é uma comovente celebração do legado revolucionário de dois artistas franceses que fizeram história e uma verdadeira ode ao cinema, transportando os espectadores em uma sensacional viagem no tempo diretamente para as origens da recém-nascida arte cinematográfica. Uma experiência única e essencial para quem é apaixonado pela sétima arte e também pela história. No último plano, Martin Scorsese aparece no mesmo lugar de onde saíram os operários da fábrica Lumière em 1895, no filme que inaugurou o cinema, fazendo a ponte entre o século XIX e o XXI: 122 anos de histórias e sonhos. Um documentário simples e curto, mas de valor inestimável – como foram todas as primeiras obras dos irmãos Lumière.

Lumière! A Aventura Começa (Lumière!) – França, 2017, p&b, 90 minutos.
Direção: Thierry Frémaux. Roteiro: Thierry Frémaux. Música: Camille Saint-Saëns. Edição: Thierry Frémaux e Thomas Valette. Elenco: Thierry Frémaux, Martin Scorsese, Louis Lumière, Auguste Lumière, Mrs. Auguste Lumiere, Andrée Lumière, François Clerc, Benoît Duval, Leopoldo Fregoli, Loie Fuller e Madeleine Koehler.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.