“A cada poucos anos, uma sociedade secreta na Nova Zelândia reúne-se para um evento: O Baile de Máscaras Profano. Nos meses que antecederam o baile, uma equipe de filmagem teve acesso total a um pequeno grupo desta sociedade. Cada camera man usava um crucifixo e teve proteção garantida.”

Vampiros. Cadáveres sanguessugas erguidos de suas tumbas para o deleite da embriaguez eterna no sangue dos vivos. Mortos-vivos. Espíritos demoníacos. Monstros infernais. Caçadores noturnos. Predadores eróticos. Morcegos e névoas. Filhos de Caim, o primeiro dentre eles. Os imortais. Bebedores de sangue nas noites de incontáveis eras. Que permanecem imutáveis por todo o tempo, enquanto tudo ao redor converte-se em pó. Somente o sol e as emoções que ele engendra permanecem alheias aos vampiros. E os crucifixos. E as estacas no peito. Criaturas saídas dos mais terríveis contos de terror.

Os vampiros são tudo isso? Sim, sem dúvida. Os vampiros são apenas isso? Não, não são. Os vampiros são o que além disso? Bem, são muitas coisas… especialmente quando dividem uma mesma residência e precisam se adaptar ao mundo moderno. E o que os documentaristas de O Que Fazemos nas Sombras fazem é mostrar a outra faceta (mais cotidiana e “humana”, por assim dizer) dessas criaturas imortais de dentes afiados que se alimentam de sangue humano.

Viago, Vladislav, Deacon e Petyr são quatro vampiros vivendo em um casarão suburbano em Wellington, na Nova Zelândia. Vampiros de formações distintas – e de épocas históricas distintas –, mas todos eles partícipes dos triviais dilemas do cotidiano, das rusgas inevitáveis que a convivência prolongada provoca e das inaptidões – e restrições – sociais impostas por suas condições de imortais que não podem ver a luz do sol.

Quem começa falando para a câmera é Viago (Taika Waititi), um vampiro dândi de 379 anos de idade que serve de guia para a equipe de filmagem. Criatura de refinado senso estético e bom gosto, Viago é educado, pedante, fresco e germofóbico. Tenta impôr uma ordenação doméstica na residência, já que seus amigos insistem em deixar (por algumas décadas…) a louça suja de sangue. Viago gosta de transformar as derradeiras noites de suas vítimas em ocasiões especiais, colocando uma boa música e oferecendo um bom vinho, além de forrar o chão com jornal para tentar não fazer muita sujeira. O seu grande amor do passado hoje é uma idosa vivendo em uma casa de repouso – e a ironia do cordão de prata que ele recebeu de presente é uma das melhores do filme.

Vladislav (Jemaine Clement) é o empalador. Velho vampiro romeno de 862 anos que cresceu na era medieval. Torturava pessoas – e ainda tortura pessoas, em sua câmara pessoal de tortura. Adoraria ter escravos. Gosta de (tentar) hipnotizar os outros, e é fissurado em perversões sexuais. Deacon (Jonathan Brugh) é o mais jovem, um morto-vivo de 183 anos que era camponês durante a mortalidade e não possui muito refinamento, além de ser um tanto quanto rebelde. Dorme de cabeça para baixo em um armário e faz tricô. Foi abraçado (transformado em vampiro) por Petyr (Ben Fransham), o “nosso doce” Petyr (nas palavras de Viago), um nosferatu decrépito de 8.000 anos de idade que vive recluso em uma horrenda masmorra no porão – e apesar de não pronunciar uma única palavra, é muito bem encaixado na história e rouba completamente a cena sempre que aparece.

É Petyr que abraça Nick (Cori Gonzales-Macuer), ex-namorado de Jackie (Jackie van Beek), lacaia humana de Deacon, que sonha ser transformada em vampira antes que envelheça mais, mas é sempre ignorada. O neo-vampiro Nick, antenado e extremamente popular entre seus amigos humanos, logo converte-se em um novo colega de quarto do trio, fazendo com que eles passem a se sentir menos deslocados e solitários na vida noturna neozelandesa.

Dirigido e roteirizado pela dupla de amigos Jemaine Clement e Taika Waititi, O Que Fazemos nas Sombras é um mocumentário, uma espécie de pseudo-documentário com intenções satíricas, gravado como se fosse real. Nessa divertida comédia, os dois neozelandeses exploram de maneira criativa todos os clichês relacionados aos vampiros, brincando com as transformações de que são capazes, a ausência de reflexos no espelho (um desenha como o outro está vestido para que possam saber como estão seus looks) e a conhecida (e talvez nem tão bem-sucedida…) hipnose. Como não podem entrar em um ambiente sem convites, os três também dependem da boa vontade (ou da inocência) de desavisados que lhes convidem – o que acaba relegando os amigos a irem sempre no The Big Kumara, uma “balada” mantida por vampiros, mais morta que eles mesmos. Durante os passeios noturnos pela cidade, ainda precisam conviver com a rixa histórica que possuem com os lobisomens (“Nós somos lobisomens, não trogloditas!“) e também tomar cuidado com os caçadores de vampiros.

A inventiva dupla de diretores-roteiristas subverte tudo que se poderia esperar de uma abordagem sobre essas criaturas da noite. Imortais e imutáveis, os bebedores de sangue são observados em choque direto com o cotidiano atual da humanidade, sempre em constante mudança. É a partir dessa ideia simples que o roteiro se guia, e por onde fluem algumas das melhores sacadas da obra. Stu (Stuart Rutherford), analista de software e amigo humano de Nick, ensina o básico do básico do básico da tecnologia para o trio de amigos. Viago, Vladislav e Deacon aprendem a tirar selfies e a usar o google e o skype, assistem ao pôr do sol pela tela de um PC (sem riscos de uma morte rápida e quente!) e tentam dar uma de DJs em gramofones, além de finalmente, graças à popularidade de Nick, conseguirem adentrar baladas melhores que aquelas que estão acostumados a frequentar.

Além de toda a hilaridade das conversas e situações, o visual do mocumentário é muito bem cuidado. A direção de arte do casarão é um espetáculo à parte, criando uma interessante ambientação de séculos passados que é complementada pela fotografia de pouca iluminação e muitas sombras. Clement e Waititi investem em planos médios nos enquadramentos e conseguem estabelecer um olhar sobre o universo dessa turma de amigos vampiros que causa interesse.

Repleto de referências cinematográficas e históricas sobre os mitos vampíricos de diferentes épocas (quem conhece Vampiro: A Máscara identificará muita coisa e ficará tentado, do início ao fim, a classificar o clã de cada vampiro que surge em cena), além de espaço para inserção de outras criaturas das histórias de horror, como bruxas e zumbis (a participação dos comedores de cérebro é hilária, e seria muito interessante um mocumentário apenas sobre eles), O Que Fazemos nas Sombras é uma comédia de terror sobre o imperdível contato de criaturas seculares com os desafios da modernidade e os temores de envelhecer enquanto todos ao redor viram pó. Uma bobagem pura. Divertidíssima e da melhor qualidade.

O Que Fazemos nas Sombras (What We Do in the Shadows) – Nova Zelândia, 2014, cor, 85 minutos.
Direção: Jemaine Clement e Taika Waititi. Roteiro: Jemaine Clement e Taika Waititi. Música: Plan 9. Cinematografia: Richard Bluck e D.J. Stipsen. Edição: Jonathan Woodford-Robinson, Yana Gorskaya e Tom Eagles. Elenco: Taika Waititi, Jemaine Clement, Jonathan Brugh, Ben Fransham, Jackie Van Beek, Cori Gonzalez-Macuer, Stu Rutherford, Rhys Darby, Ethel Robinson, Elena Stejko, Karen O’Leary e Mike Minogue.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.