1984. Nova Zelândia. Boy (James Rolleston) é um maori (o maior povo nativo do país da Oceania) de onze anos que estuda na Raukokore School. Suas matérias favoritas são Arte, Estudos Sociais e Michael Jackson – que também é a sua pessoa favorita. Michael Jackson lançou o disco “Thriller” no mês passado. Boy mora em uma casa branca com a sua avó materna Nan (Mavis Paenga) e seus primos Hucks (Hoanihuhi Takotohiwi), Kiko (Tainui Callaghan), Miria (Manaia Callaghan), Chay (Ngaru-toa Puru) e Kelly (Cherilee Martin). Ele tem uma cabra de estimação chamada Leaf, é apaixonado (e ignorado) pela adolescente Chardonay (RickyLee Waipuka-Russell) e tem um irmão de seis anos chamado Rocky (Te Aho Eketone-Whitu). Rocky acha que tem poderes – ele não tem. Seus amigos são Dallas (Haze Reweti) e sua irmã Dynasty (Moerangi Tihore), que possuem uma irmã menor chamada Falcon Crest (Montana Te Kani-Williams). Tia Gracey (Rachel House) é a irmã da mãe de Boy e tem muitos empregos: treinadora de tênis, carteira, motorista de ônibus da escola e dona de um comércio local.

O verdadeiro nome de Boy é Alamein – o mesmo do seu pai (Taika Waititi). Para Boy, seu pai ausente é um homem muito ocupado, e ele preenche a lacuna deixada pelo abandono com a imaginação: Alamein seria escultor, mergulhador, caçador de tesouros, capitão do time de rugby, mestre samurai, recordista de socos com uma só mão no maior número de pessoas, irmão do Michael Jackson e da Líbia e ainda teria lutado com um batalhão maori durante a Segunda Guerra Mundial. Quando sua avó viaja para um funeral, Boy fica no comando da casa por uma semana. Sua vida muda repentinamente quando seu pai reaparece e a versão idealizada e heroica que ele sempre imaginou durante sua ausência confronta-se com a versão real: seu pai é um bandido incompetente e trapalhão, fundador de uma gangue de três pessoas (Crazy Horses) que acabou de sair da prisão, e voltou apenas para encontrar uma bolsa com muito dinheiro que enterrou anos atrás em um campo próximo – sem lembrar-se do local exato.

Quase todas essas informações são despejadas na tela em pouco menos de cinco minutos. Boy está diante da classe no retorno às aulas contando sobre a sua vida, e a câmera de Taika Waititi se posiciona como se o garoto falasse diretamente para o espectador. Suas palavras surgem no ecrã em composições bizarras, auxiliadas pela montagem acelerada e dinâmica de Chris Plummer, cravejadas de contornos surrealistas e nonsenses – como tudo que Waititi faz. As fantasias mais loucas que nascem das mentes de Boy e Rocky materializam-se fabulosamente em cena. Um exemplo é quando Alamein e seus comparsas entram em confronto com uma gangue em um pub por causa de maconha e, enquanto espera em um carro com Rocky, Boy vê seu pai vencendo a todos em um bizarro combate musical. Essa pequena sequência de crianças esperando pelo pai em um carro na frente de um bar é o enredo do curta-metragem Dois Carros, Uma Noite, dirigido e roteirizado pelo próprio neozelandês e nomeado para o Oscar de melhor curta-metragem em live-action em 2005. A partir dessa ideia simples, o cineasta desenvolveu a história de Boy – indo muito além em seu escopo.

Taika Waititi fotografa o seu Alamein como um pai inicialmente atrativo aos filhos, mas cuja casca delirante de motociclista perigoso e influente, que se gaba de seus feitos e narra histórias alucinadas que mudam a cada vez que são contadas, rapidamente se desfaz na convivência com os garotos. Aos poucos ele se revela como realmente é: um perdedor ridículo e alienado, com um espírito de criança brincalhona e sonhadora e menos disposição para assumir responsabilidades do que os próprios filhos pequenos que ele covardemente abandonou após a morte da esposa.

Adultos desajustados que se comportam como crianças são uma constante na filmografia do diretor e Alamein talvez seja o melhor exemplo desse arquétipo. Em determinado momento, ele se compara ao Incrível Hulk (“Às vezes fico com raiva, um pouco como o Hulk. Acho que você pode lidar com isso, ter um Incrível Hulk como pai.”) – uma espécie de premonição aleatória sobre um dos futuros filmes que Waititi iria dirigir – e em outra situação chega a pedir ao filho para que não o chame de pai, porque “soa estranho“. Em vez disso, quer ser chamado de “Shogun”, um mestre samurai que comanda a todos. O pai de Boy é uma pessoa patética e absorvida em seu próprio mundo particular de diversão, golpes e dinheiro pretensamente fácil.

A mãe de Boy e Rocky, interpretada por Ngapaki Emery, surge em lembranças idílicas dos meninos, momentos que evocam alegria e tristeza, sempre encharcados de melancolia. Os dois atores infantis, ambos inexperientes, entregam performances afetuosas e ternas. Te Aho Eketone-Whitu cativa como o pequeno Rocky. Tímido e silencioso, o garoto culpa-se pela morte da mãe durante o parto (ele acredita que os seus poderes foram responsáveis pela fatalidade), passando a maior parte do tempo desenhando ao lado de sua lápide e vivendo em um mundo solitário e imaginativo – que revela-se na tela em um sabor agridoce, como folhas de caderno desenhadas por ele mesmo, em uma incrível e criativa saída visual e poética. A única pessoa com quem ele conversa, e que não duvida dos seus poderes, é um louco que mora debaixo de uma ponte, que ouve suas histórias e lhe dá conselhos (“Você tem que usá-los [seus poderes]para fazer o bem. Como nas histórias em quadrinhos.”).

James Rolleston foi escolhido para o papel principal dois dias antes do início das gravações – substituindo um outro ator depois que Taika Waititi deu-lhe uma audição e ficou impressionado com a sua atuação. Boy tem responsabilidade de adulto, mas sensibilidade de infante. Precisa tomar conta do seu irmão mais novo e dos seus vários primos pequenos, tenciona ser um membro da gangue do seu pai, sofre com as perseguições de Kingi (Manihera Rangiuaia), e conta com a ajuda do pai para virar o jogo, mas conversa com a sua cabra, dança Michael Jackson desajeitadamente para tentar impressionar Chardonay e sonha os mesmos sonhos infantis de todas as outras crianças do seu círculo de amizades, maravilhando-se nas coisas mais simples, como na belíssima sequência em que enxerga coisas mágicas nos movimentos que seu pai faz com fogos de artifício ou mesmo na doçura com que o tempo se encarrega de desenvolver um embrião de relacionamento entre ele e Dynasty.

Boy é um desses filmes que mesclam drama e comédia tão perfeitamente e sem artificialidades que você não sabe quando um começa e o outro termina – uma sequência envolvendo a cabra Leaf é o ápice desse amálgama. O riso converte-se em consternação tão velozmente quanto o peito apertado irrompe em um sorriso de contentamento – em mais uma prova da habilidade que o cineasta neozelandês tem no manuseio dessa característica tão marcante do seu estilo. Nessa incrível fábula maori com toques de absurdo, ainda sobra espaço para referências a E.T. – O Extraterrestre (1982), de Steven Spielberg (é uma famosa frase do clássico oitentista que abre o filme), e para uma cena pós-créditos surreal com a fantástica cabra Leaf e uma impagável reprodução do icônico clipe de Thriller, com todo o elenco (incluindo Michael Waititi, ou seria Taika Jackson?) mimetizando a famosa coreografia de Michael Jackson, mas ao som de Poi E, canção em língua maori do grupo Patea Maori Club, de 1984, que mistura ritmos do tradicional povo da Oceania com sintetizadores e hip-hop.

O filme foi rodado em uma aldeia maori na baía de Waihau (região onde o próprio Taika Waititi nasceu), cujo cenário pitoresco e peculiar (como quase todos os ambientes naturais da Nova Zelândia), muito bonito e ao mesmo tempo muito pobre, contribui – bastante – para a memorabilidade da obra e da história que é contada. A fotografia de Adam Clark é tão viva quanto nostálgica, com um sabor forte de infância e muitas panorâmicas da região costeira, e ao lado da trilha sonora habitual da The Phoenix Foundation complementa com talento o quadro geral do filme, rodado com estilo por Waititi, que posiciona sua câmera com consciência, contemplando um quadro quando necessário, mantendo-se normalmente distante em planos médios e gerais mas sabendo aproximar-se dos atores em closes quando preciso, capturando belíssimos planos pelo caminho. Além disso, em um elenco majoritariamente formado por crianças (e praticamente todas elas atuando pela primeira vez em suas vidas), o neozelandês demonstra imensa capacidade na direção de atores, extraindo boas atuações de todos, de modo que ninguém soa artificial em cena e todos agem com naturalidade – algumas das crianças muito pequenas parecem até mesmo capturadas pela câmera sem que soubessem que estavam sendo filmadas, tamanho o realismo que transmitem.

Boy é uma deliciosa aventura lúdica e emocional, um aprofundado – e apaixonado – olhar de Taika Waititi sobre o povo maori (o seu povo maori), a vida nas profundezas remotas de uma comunidade rural e a universalidade das relações entre pai e filho – além de uma homenagem afetuosa aos anos 1980 e a Michael Jackson. A sua capacidade ímpar para criar diálogos incríveis em conversas diretas e engraçadas desenvolve a humanidade dos seus protagonistas com singularidade. O relacionamento entre os dois Alameins passa pela idolatria, pela desatenção, pelo abandono, e finalmente por uma espécie de cura emocional ocasionada pela sombra restauradora que a memória da mãe e esposa falecida provoca. Os sabores da infância são evocados em uma dolorosa comédia sobre o crescimento, e todas as dores e alegrias que ele traz. Filmado com muita fantasia, inventividade, drama, humor e poesia, Boy ultrapassa os limites da sua remota ambientação maori, da excepcionalidade dos seus acentos locais, e torna-se capaz de dialogar com qualquer um de nós – em qualquer lugar do planeta – que, um dia, já fomos crianças.

Boy (Boy) – Nova Zelândia, 2010, cor, 88 minutos.
Direção: Taika Waititi. Roteiro: Taika Waititi. Música: The Phoenix Foundation. Cinematografia: Adam Clark. Edição: Chris Plummer. Elenco: James Rolleston, Te Aho Aho Eketone-Whitu, Taika Waititi, Moerangi Tihore, Cherilee Martin, RickyLee Waipuka-Russell, Haze Reweti, Maakariini Butler, Rajvinder Eria, Manihera Rangiuaia, Darcy Ray Flavell-Hudson, Rachel House, Craig Hall, Waihoroi Shortland, Cohen Holloway, Pana Hema Taylor, Mavis Paenga.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.