Dezembro, Rio de Janeiro de um mundo distante
Não inquira-me sobre este mundo. Me atenho dizendo que, excetuando-se alguns detalhes, é semelhante ao teu. Mesmo os mais diversos pontos do globo são nomeados da mesma maneira — temos uma América, uma Europa, uma Tóquio… todas únicas, e também similares ao que conheces. Acredito que seria algo próximo aos teus anos cinquenta, com algumas tecnologias mais avançadas, outras mais retrógradas.
Eu o observava pelas câmeras.
Tinha pele escura, uma estrutura física poderosa. O sangue golfava por seu queixo, chegando aos joelhos nus que tocavam o chão.
Daniel.
Tinha as mãos atadas às costas, os braços ao tronco. O mesmo se diz dos tornozelos. A mandíbula se projetava num ângulo incerto, bem como o nariz. Ainda assim, seu sorriso permanecia provocador — seu olhar, instigante.
Dois homens o cercavam. Trajavam ternos, fumando charutos.
O maior trazia consigo uma longa corrente e um grande bastão. Truculento, de raciocínio lento e cruel. Como um enorme e obediente pit-bull, aguardava as ordens de seu senhor, com a cabeça baixa. Seus lábios jamais permaneciam unidos, e seus olhos jamais evitavam os de sua vítima.
O outro mantinha uma postura ereta e um meio sorriso. Paletó branco, com listras grisalhas. A mão direita apoiava-se sobre uma bengala, cujo topo era enfeitado com a figura dum corvo de prata. Rapaz de natureza calma, muito embora fosse ainda mais cruel que o outro. O sorriso revelava um único dente de ouro.
— Eu vou perguntar apenas uma vez. — disse este segundo, ajoelhando-se levemente, segurando a arma entre suas pernas. — Quem de nós está comprometido?
Daniel olhou-o com alguma morosidade, muito embora sua face transparecesse humor.
— Todos. — respondeu, insinuando uma risada e tingindo os lábios de carmim.
O outro meneou a cabeça.
— Diga exatamente o que você comprometeu, e prometo que sairá daqui vivo.
Daniel olhou em volta. O galpão não tinha sequer janelas. A luz era poderosa, vinda das lâmpadas acinzentadas acima. Uma única mosca voava, abalroando o teto com seu corpo diminuto.
— Você acha que sou idiota? — indagou, passando o peso de um joelho para o outro. — Essa é minha profissão. Eu sei que vocês querem me matar. Sequer se deram ao trabalho de vendar-me. — seus olhos adentraram a alma dos sequestradores, com poder e audácia. — Podem tentar. — e soltou mais um riso doentio, fitando-os com intrepidez.
O inseto atravessou a sala com seu zumbido, pousando na face esquerda do ferido. Parecia provocá-lo.
O assovio seguinte não veio da mosca, mas também cruzou o ambiente com voracidade e coragem. A corrente. Atingiu-o em cheio. O pit-bull assumiu caráter selvagem, soltando nada mais que rosnados enquanto avançava. Daniel caíra no chão, metade da face feita escarlate.
— Querem saber o que eu comprometi? — soltou, enquanto se recolhia junto ao chão. — Eu comprometi a porra toda!
O chute alvejou-o no abdômen e o arremessou contra a parede. Num segundo, a mão envolvia seu rosto, batendo-o sucessivamente contra o piso. O impacto reverberava pela sala, como tremores tectônicos. Apenas um daqueles golpes já seria suficiente para desmaiar a maior parte dos homens.
O chefe sondava-os, analisando friamente os movimentos de seu comandado.
Após treze ou catorze golpes, Daniel caiu, sua face transformada em uma mistura grotesca de sangue e carne exposta, insinuando expressão humana. Ainda mostrava os dentes, provocativo. Olhava para o mandante, com seu olhar em chamas.
— Você, Amadeo. Atire. Bem no meio dos olhos.
O homem caminhou até ele devagar, com elegância. O semblante permanecia impassível.
— Não devia chegar a tal, Daniel. Me perdoe.
Um estrondo ecoou pela sala, mais baixo que o de costume. O projétil atravessou-o com precisão, criando-lhe um terceiro olho e abrindo um quarto em sua nuca.
Amadeo tragou o cigarro, assoprando a fumaça do revólver. O baque do cadáver indo ao chão ribombou. O mafioso deixou a arma cair. Sem dizer uma palavra, retirou-se, atravessando a porta entreaberta e ordenando ao pit-bull que se livrasse do corpo.
***
Passaram-se aproximadamente trinta minutos. Após isso, um vulto ergueu-se nas sombras.
Era ele. Sem cicatriz, trauma ou injúria, Daniel surgiu da treva, já livre de suas amarras. A face trazia um espectro de selvageria. Seu terno, amarrotado, retalhado em mil momentos. Boa parte de seu corpo trajava apenas o escarlate da própria seiva.
Com alguma quietude, pegou do chão um chapéu deformado, colocando-o sobre a cabeça. O revólver, marcado com sangue, estava entre seus pés.
Seu sorriso foi assustador. Curvou-se com velocidade impressionante. Com a arma nas mãos, olhou para a câmera. De alguma maneira, olhou para mim, no fundo de meus olhos.
Mostrou-me o dedo do meio e atirou, transformando minha visão em breu e minha vida em treva.