Uma das mais famosas histórias de horror de Stephen King, It: A Coisa narra a incrível jornada de sete amigos em uma luta desleal que atravessa as décadas, da infância à vida adulta, contra uma criatura sobrenatural e maligna que explora os medos de suas vítimas para se alimentar de carne humana – especialmente de crianças. No verão de 1958, durante as férias escolares, esse grupo de crianças inseparáveis tem o seu primeiro encontro com a Coisa, um ser de muitos nomes e muitas formas, que oito meses antes iniciara uma série de brutais assassinatos na pequena e fictícia cidade de Derry, no Maine, extremo nordeste dos EUA. Em 1985, quase trinta anos depois, os amigos voltam a se unir para enfrentar a Coisa e tentar derrotá-la definitivamente.
Foram as crianças que viram – e sentiram –, a criatura à espreita, nas águas pluviais dos esgotos, nas casas abandonadas, nos porões, na solidão dos lagos afastados do centro da cidade, nas ruínas da Siderúrgica Kitchener… em todos os recônditos mais sombrios de Derry. Para os adultos, um psicopata rondava a cidade, que estranhamente sempre se via às voltas com assassinatos nunca solucionados a cada geração, histórias e medos que sempre se perdiam no inconsciente coletivo – eles não sabiam de nada. Mas as crianças sabiam da existência daquilo que fazia Derry horrivelmente diferente de qualquer outro lugar. Elas sabiam da criatura que assumia a forma de cada pesadelo, medo, pavor e fobia presentes nas profundezas inescrutáveis das consciências, e que alcançava, rasgava, matava e comia os pedaços de suas vítimas. E sabiam que deviam detê-la.
Pennywise
“O nome dele era Robert Gray, mais conhecido como Bob Gray, mais conhecido como Pennywise, o Palhaço Dançarino. Embora esse também não fosse o nome dele.”
A “Coisa” é uma entidade misteriosa e maligna que aterroriza Derry em ciclos que se repetem a cada 25 e 30 anos. Derry é o seu abatedouro, as pessoas de Derry são as suas ovelhas. Auto-denominada “O Devorador de Mundos e de crianças“, está intimamente conectada à cidade, de um modo que não é possível explicar sem revelar demais sobre a sua história. A Coisa comumente se revela aos outros como Pennywise, o Parcimonioso, o Palhaço Dançarino, sua forma favorita e seu principal disfarce, sempre carregando balões (“E um balão? Tenho vermelho e verde e amarelo e azul…“) e caçando crianças. Descrito por Stephen King como um cruzamento entre Bozo e Clarabell, dois famosos palhaços das TVs norte-americanas, e parecido com Ronald McDonald, o seu rosto “era branco, havia tufos engraçados de cabelo vermelho de cada lado da cabeça careca e havia um grande sorriso de palhaço pintado sobre a boca. (..) [usava] uma roupa de seda larga com grandes botões laranja. Uma gravata berrante, azul-elétrica, caía pela frente do peito, e havia grandes luvas brancas em suas mãos, do tipo que Mickey Mouse e o Pato Donald sempre usavam.“
Entre as suas inúmeras habilidades estão a capacidade de se transformar ilusoriamente em qualquer espécie de medo que exista na mente de sua vítima (um lobisomem, uma múmia, um pássaro gigante, um homem leproso, a forma de todas as pessoas que matou… a Coisa pode parecer ser o que quiser), ler mentes e se comunicar telepaticamente, controlar mentes e apagar memórias; teletransporte, regeneração, invisibilidade e ainda a capacidade de manipular objetos inanimados e afetar o clima. A Coisa já se alimentou de muitos adultos ao longo dos anos, mas tem um gosto particular por crianças – para a criatura, as glândulas invadidas pelas reações químicas provocadas pelo medo deixam a carne infantil muito mais saborosa e suculenta. E os medos infantis são mais simples e poderosos, invocados com um único rosto, atraídos por uma simples isca, por um esquisito palhaço qualquer.
No outono de 1957 chovia sem parar havia uma semana e o pequeno George Denbrough, de seis anos de idade, saiu para brincar na chuva com um barco de papel parafinado feito pelo seu irmão Bill. Seu corpo foi encontrado pouco tempo depois por Dave Gardener em um bueiro da rua Witcham. O despertar da Coisa deixou terríveis marcas de sangue em Derry, mas seu novo ciclo de assassinatos acabou durando um período menor do que o habitual. Tudo por causa da intromissão de sete “perdedores“.
O Clube dos Perdedores
“Ele não sabia se eles ainda eram perdedores ou não,
mas sabia que estavam juntos. Eram amigos. Muito amigos.”
Em 1958, sete crianças se tornaram amigos inseparáveis. Sozinhos eles são débeis e frágeis, mas juntos são poderosos e inquebrantáveis: são o “Clube dos Perdedores“. Cada um deles é vítima de alguma coisa: preconceito racial, social, xenofobia, bullyng de todos os tipos, abusos e indiferenças familiares. A miserabilidade de suas existências encontra seu primeiro abrigo na amizade em grupo que nasce por conta da perseguição violenta empreendida pelo sádico e psicopata valentão do colégio Henry Bowers, acompanhado de sua gangue formada por Victor “Vic” Criss, Reginald “Arroto” Huggins e Patrick Hockstetter. Enquanto descobrem e aprofundam a amizade, os sete se verão obrigados a confrontar um mal que eles não podem compreender totalmente, mas contra o qual devem lutar com todas as suas forças.
O líder do grupo é William “Bill” Denbrough, ou “Bill Gago“, apelido recebido por conta de uma insistente gagueira de origem psicossomática que o acompanha desde os três anos de idade e que o faz ser perseguido por Henry e sua gangue. Irmão mais velho de Georgie, o garotinho que foi assassinado por Pennywise no outono de 1957, Bill se sente culpado pela sua morte por tê-lo deixado ir brincar naquele dia e deseja vingá-la a todo custo. Seus pais tornaram-se distantes após a morte de Georgie e quase não se importam com ele. Sempre em sua enorme bicicleta Silver (Hi-yo Silver, VAMOOOS!), Bill é engenhoso e determinado, um líder nato, o cara das ideias, aquele que pensa nas coisas, a quem todos admiram e que transmite para os outros seis “uma sensação reconfortantemente adulta, (…) um sentimento de que assumiria a responsabilidade se fosse preciso.” Na vida adulta se transforma em um escritor de enorme sucesso e se casa com Audra Phillips, uma estrela de cinema de Hollywood que possui uma incrível semelhança com Beverly.
Richard “Richie” Tozier, ou “Boca de Lixo“, é o mais engraçado e hiperativo dos perdedores. Suas piadas, vozes e imitações (seu repertório é variado e a sua criatividade é infinita: o Comandante Alemão, Toodles, o Mordomo Inglês, o Senador do Sul, Narrador de Cinejornal, a Vovó Grunt…) divertem seus amigos, mas também o coloca em problemas, especialmente com Henry e seus comparsas. Richie tem uma visão ruim, usa óculos, e luta para manter a unidade do Clube dos Perdedores. Na vida adulta ele se transforma em um DJ de sucesso em Los Angeles, fazendo de suas vozes e imitações uma de suas principais atrações.
Benjamin “Ben” Hanscom, ou “Monte de Feno“, apelido dado por Richie, é o mais inteligente do grupo dos perdedores. Uma criança obesa, que passa a maior parte do seu tempo livre devorando livros na biblioteca pública, Ben é um dos alvos preferenciais de Henry e seus parceiros. Apaixonado por Beverly, para quem escreve poemas secretos, suas habilidades de construtor são extremamente úteis para o grupo. Foi de Bill a ideia de construir uma represa no Barrens, mas foi Ben quem mostrou aos garotos como ela podia ser construída com tábuas, pedra e areia. E construíram, em um daqueles dias perfeitos de verão dos quais nenhum deles jamais se esqueceria e que estreitou para sempre os laços entre Bill, Ben, Richie, Stan e Eddie. Na vida adulta o seu excesso de peso desaparece e Ben se torna um arquiteto de renome internacional.
Beverly “Bev” Mash é a única garota do Clube dos Perdedores. Uma bela ruiva por quem todos os outros garotos do grupo nutrem algum tipo de sentimento romântico ou sexual em algum momento da história. Apaixonada por Bill, Bev vive na parte mais pobre de Derry, nos prédios da rua Lower Main, sofre preconceito das colegas ricas do colégio, especialmente Sally Mueller e Greta Bowie, e é espancada regularmente pelo pai enquanto a mãe trabalha por longos turnos no restaurante Green´s Farm. Bev é forte, sem papas na língua e dotada de um ótimo senso de humor. Na vida adulta acaba se transformando em uma bem-sucedida designer de moda em Chicago, mas continua a sofrer com relacionamentos abusivos.
Edward “Eddie” Kaspbrak é um menino asmático, sempre com a sua bombinha ao alcance das mãos, pequeno e fisicamente frágil. Eddie nutre uma admiração profunda por Bill, sofre perseguição de Henry e é constantemente chamado de bicha e debochado pelas crianças do colégio. Seu pai morreu quando ele era muito pequeno e sua mãe extremamente dominadora tenta afastá-lo dos seus amigos, usando a preocupação com a sua saúde como uma forma de manipulá-lo a estar sempre do seu lado. Na vida adulta dirige um bem-sucedido negócio de limusines em Nova York, é hipocondríaco e termina casando-se com uma mulher semelhante – em aparência e personalidade – à sua própria mãe.
Stanley “Stan” Uris, ou “Stan, o Cara“, é o membro judeu, cético e escoteiro do grupo. Uma criatura de hábitos e convenções, Stan é sistemático e meticuloso, e se recusa a aceitar que a Coisa realmente existe, preferindo confiar na lógica mais do que em qualquer outra coisa. Seu principal hobbie é a observação de pássaros, e ele sempre anda por aí com seu caderno de pássaros e um binóculo Zeiss-Ikon. É perseguido por Henry por ser judeu. Na vida adulta ele se casa com Patricia Uris e vira sócio de uma grande empresa de contabilidade em Atlanta.
Michael “Mike” Hanlon foi o último a se juntar ao Clube dos Perdedores. Possivelmente a única criança negra em Derry e vivendo em uma fazenda afastada, Mike não estudava na Derry Elementary, como os outros, mas sim em uma escola batista na rua Neibolt. Assim como Bill, Stan, Eddie, Ben, Bev e Richie, é perseguido por Henry Bowers, cujo pai, Oscar “Butch” Bowers, odeia a família Hanlon, a quem culpa por todos os seus problemas simplesmente por serem negros. O pai de Mike mantém um álbum de fotografias de momentos importantes da história de Derry que auxiliam a revelar detalhes da trajetória de Pennywise no percurso dos séculos.
Na vida adulta, Mike é o único dos perdedores a ficar para trás e permanecer em Derry, tornando-se bibliotecário da cidade. É também o único a reter em sua memória os acontecimentos de 1958. Cada um dos outros seis seguiram suas vidas sem incluir uns aos outros nelas e obtiveram sucesso profissional em suas respectivas áreas. O horror provocado pela Coisa estava profundamente enterrado nas profundezas do esquecimento em suas mentes. Quando uma nova onda de assassinatos teve início em 1986, Mike começou a investigar e reuniu provas do retorno da Coisa. Em uma noite, seis ligações foram feitas. Bill, Ben, Bev, Richie, Eddie e Stan foram recordados do juramento que fizeram quase trinta anos antes e tiveram que retornar a Derry, onde tudo começou, para, ao lado de Mike, lembrarem do que aconteceu no passado e derrotarem a Coisa de uma vez por todas.
Uma Obra-Prima do Medo
“Crianças, a ficção é a verdade dentro da mentira,
e a verdade desta ficção é bem simples: a magia existe.” – S. K
Escrito durante um período de quatro anos, entre 9 de setembro de 1981 e 28 de dezembro de 1985, It: A Coisa é um dos maiores sucessos de Stephen King. Vencedor do British Fantasy Award de 1987 e nomeado para o Locus Awards e o World Fantasy Awards no mesmo ano, foi o livro mais vendido nos EUA em 1986. O subtítulo que o terrível (no mau sentido) telefilme de It: A Coisa produzido em 1990 recebeu no mercado de home video brasileiro não poderia ser mais apropriado para definir o livro: uma obra-prima do medo.
Na maior parte do tempo, a história de It: A Coisa é contada em terceira pessoa através de um narrador onisciente, e em determinados momentos um narrador personagem assume a história – Mike é quem normalmente recebe tal papel. A imersão psicológica estabelecida por Stephen King é total. As mais de mil páginas do volumoso romance entregam aquela que talvez seja a mais madura obra literária do “Mestre do Terror“. Em nenhum outro livro ele escreveu com tanta qualidade ou elaborou tão bem uma intrincada teia descritiva de sua história – fortemente influenciada pelos contos de H.P. Lovecraft. A narrativa é alternada e entrelaçada entre duas linhas temporais separadas por 27 anos de distância – e há uma explicação muito interessante para o motivo de as memórias dos fatos ocorridos no verão em que enfrentaram a Coisa surgirem fragmentadas na vida adulta – com uma prevalência maior para os fatos ocorridos na infância dos personagens, narrados ora em in loco, ora em flashbacks. Essa viagem ao – e no – passado é de fundamental importância para compreender a Coisa, a sua relação com cada um dos personagens e o relacionamento surgido entre os sete amigos.
Naquele verão de 1958, a Coisa assumiu diferentes formas para amedrontar cada um dos integrantes do Clube dos Perdedores. Seus medos mais irracionais materializaram-se: vieram à tona em cenas desesperadoras que estão entre as melhores e mais impactantes de todo o livro. O mergulho que o autor faz na mente e na personalidade de cada um deles é fundamental para essa imersão completa em seus medos. Tornamo-nos íntimos desses personagens porque as suas características únicas, seus traumas, medos, inseguranças, sonhos e expectativas, são completamente desnudados pela narrativa. O leitor adentra nas cabeças de Bill, Ben, Richie, Bev, Eddie, Mike e Stan e angustia-se com o suspense apavorante que vai sendo criado enquanto a Coisa parece estar sempre a um passo de conseguir devorá-los e não há nada que eles possam fazer para evitar isso a não ser fugir e torcer – torcer muito.
O clímax da história é feito simultaneamente entre as duas linhas temporais. De algum modo, Bill, Ben, Richie, Bev, Eddie, Mike e Stan enfrentaram a Coisa quando não tinham mais que onze anos de idade e conseguiram detê-la. Durante aquelas eternas férias escolares, as sete crianças vivenciaram a amizade, o amor e a confiança em plenitude. Mas também o medo. Quase trinta anos depois, elas precisam unir forças, cumprir uma promessa da qual nem se recordam direito, enfrentar o irracional e tentar extirpar definitivamente o mal encarnado das entranhas de Derry.
Enquanto a narrativa no tempo presente da vida adulta vai sendo delineada, Stephen King remete o leitor ao passado em cada pequeno detalhe dos despedaçados flashbacks que surgem à medida em que os seis “perdedores” retornam a Derry para encontrar Mike. Há sempre um aspecto a ser explorado, um pedaço perdido de memória a lançar luz sobre algum evento do passado, a fazer o leitor compreender o destino que os sete amigos seguiram depois daqueles eventos traumáticos de suas infâncias e também a ampliar o alcance mitológico e aterrador da Coisa, que tem sua história apresentada, suas motivações expostas, seu modus operandi detalhado, além de descrições de inúmeros ciclos de terror em períodos do passado, o que só aumenta a aura de medo e horror irrefreável que exala do personagem.
Um dos maiores méritos que Stephen King alcança em It: A Coisa é conseguir manter aceso o interesse do leitor pela história por todas as mais de mil páginas, através de uma leitura extremamente prazerosa e fluída, em um texto competente e detalhista. A narrativa entrelaçada é fundamental para atingir esse resultado, trabalhando a complexidade e as visões de mundo de seus sete protagonistas com talento e movendo-se de um para o outro com absoluta organicidade – nós vemos os sete amigos crescerem: em muitos momentos da história nós somos capazes de especular com um alto grau de certeza a atitude que cada um deles irá tomar, porque os conhecemos tão intimamente quanto conhecemos um amigo.
Uma novela de horror psicológico, um thriller de suspense, uma história sobre traumas da infância e medos irracionais, mas, fundamentalmente, uma história sobre o poder da amizade, It: A Coisa permanecerá na mente do seu leitor por muito tempo, como uma história de terror muito bem contada em uma noite silenciosa e terrivelmente escura permanece, encantando e assombrando, como um balão… flutuando.
“Vá embora e tente continuar a sorrir. Ouça um pouco de rock-and-roll no rádio e vá em direção a toda vida que existe com toda coragem que você consegue reunir e toda a crença que tem. Seja verdadeiro, seja corajoso, enfrente.”
It: a coisa (It) – EUA, 1986.
Autor: Stephen King. Tradução: Regiane Winarski. Publicação no Brasil: Suma de Letras (Editora Objetiva). Formato: 16×23, 1104 páginas. Catalogação: Ficção americana.