Parábola é uma narrativa alegórica construída a partir de paralelos e analogias. Em uma parábola, uma lição é, ao mesmo tempo, ensinada e escondida – nas palavras do filósofo britânico Francis Bacon: “As parábolas são úteis como máscara e véu e também para elucidação e ilustração“. Sendo um recurso muito comum entre os antigos hebreus, as parábolas utilizavam-se de elementos da esfera terrestre, sensível, para evocar ensinamentos de uma natureza superior, celestial. As parábolas mais famosas da história (como a do bom samaritano [Lucas 10, 30-37] e a do filho pródigo [Lucas 15, 11-32]) foram contadas por Jesus Cristo e podem ser encontradas nos três evangelhos sinópticos – termo que designa a unidade entre os livros de São Mateus, São Marcos e São Lucas por conta do paralelismo de suas narrativas.

Existirá nas comics um personagem mais parabólico que o Surfista Prateado? Possivelmente não. Muitos consideram-no esquisito, estranho… Um homem nu e prateado que mais parece uma estatueta de premiação cinematográfica singrando a vastidão silenciosa do espaço sideral em cima de uma… prancha! Sim, ele é estranho, ele é esquisito, mas é justamente em sua figura única que reside parte do seu magnetismo. E foi o acaso (quantas vezes ele!) o grande responsável pelo nascimento de um dos mais icônicos personagens do universo dos super-heróis.

“…em algum lugar lá fora, além da mais longínqua estrela, o Surfista Prateado dispara…”

Uma das criações mais espetaculares da dupla Stan Lee e Jack Kirby, o Surfista Prateado surgiu pela primeira vez em março de 1966, em uma história do Quarteto Fantástico (The Fantastic Four #48), simplesmente uma das mais clássicas sci-fi das histórias em quadrinhos. A intenção de Stan Lee era introduzir uma ameaça à altura do supergrupo cuja revista aproximava-se do comemorativo número 50. Seguindo o famoso “método Marvel”, ele criou Galactus, o Devorador de Mundos, e passou a história para que Jack Kirby desenhasse a narrativa ao seu modo. Quando os desenhos voltaram, havia uma figura que não constava na sua história original: um alien careca e prateado. Questionado por Lee, Kirby argumentou que Galactus necessitava de um arauto, alguém que pudesse ir à frente e conferir se o planeta valia a pena ou não ser consumido. E acrescentou: “cansei de desenhar nave, então coloquei ele em uma prancha“. Lee aprovou a ideia e, fascinado com a postura nobre que o personagem emitia, passou a desenvolvê-lo nesse sentido. O resto é história: o personagem fez um sucesso imediato entre o público, ganhou revista própria em 1968 e tornou-se objeto de culto entre os estudantes universitários dos EUA durante a década de 1970, sendo reverenciado até mesmo no cinema na década de 1980.

O prateado navegante dos mares galácticos sempre diferenciou-se dos demais super-heróis por seu estilo, pelo tom filosófico de suas histórias, o lirismo de seus diálogos, a tristeza evocada por sua figura solitária, singrando a vastidão do espaço acompanhado de uma prancha simbiótica à sua figura, em cor e espectro. Norrin Radd é espiritual, possui um senso de nobreza latente e profundo e um fervor religioso em atitudes e condutas irrepreensíveis. É ingênuo, confiante e misterioso. Idílico. O personagem de quadrinhos norte-americanos que não parece um personagem de quadrinhos norte-americanos, nem mesmo aparenta ser propriamente um super-herói, mas sim um trovador, uma figura de utopia, o cavaleiro voador brilhante que, “em algum lugar lá fora, além da mais longínqua estrela, dispara” [Stan Lee].

O encontro de dois gigantes

A graphic novel Surfista Prateado: Parábola (publicada originalmente como uma minissérie em duas partes) surgiu por mero acaso (novamente ele). Os lendários Stan Lee e Jean “Moebius” Giraud encontraram-se em uma feira de livros na Califórnia, em 1988. Conversaram e almoçaram juntos, trocando gentilezas e elogios até que o amigo e representante de Moebius, Jean-Marc Lofficier, voltou-se para ele e perguntou: “Por que você e Stan não fazem uma história juntos?“. Um entusiasmado aperto de mão selou a parceria.

Mas qual seria o personagem? Foi o próprio Moebius a mencionar durante a conversa que achava o Surfista Prateado um personagem muito fascinante. Era justamente o que Stan Lee esperava ouvir. Excessivamente tentadora era a ideia de imaginar o espetacular artista francês, de traços tão pungentes e líricos, emprestando todo o seu talento para desenhar o cruzado estelar, o mais poético e contemplativo dos personagens das comics. Faltava o tema.

Após dias de pesquisa, Stan Lee lembrou-se que, ao longo dos anos, inúmeras eram as cartas de fãs que elogiavam e admiravam o tom quase que religioso das histórias do Surfista Prateado. Nascia então a história, que reintroduz Galactus sob uma nova ótica, narra um conto repleto de múltiplos significados e reimagina a Terra e o seu povo daqui a alguns anos, em um futuro não necessariamente específico, todos os elementos ideais para o estilo etéreo da arte de Moebius, que distinguiu-se em sua carreira por quase sempre desenhar mundos futuros – e que trabalhou pela primeira vez com o chamado “método Marvel”, recebendo de Stan Lee um enredo detalhado de seis páginas, mas sem diálogos.

Jean Henri Gaston “Moebius” Giraud, falecido em 2012 aos 73 anos, foi um talento raro. O lendário francês foi um dos ilustradores mais prestigiados da Europa e criou obras clássicas dos quadrinhos, como o western Blueberry e a ficção-científica Métal Hurlant, além de ter sido responsável pelo design, arte ou concepção visual de vários filmes clássicos como Alien, O Quinto Elemento, TRON, O Segredo do Abismo, Willow e o storyboard do mais influente dos filmes que nunca saíram do papel: Duna, de Alejandro Jodorowsky, que influenciou direta ou indiretamente praticamente todos os filmes de ficção científica que vieram depois, de Star Wars a Blade Runner. Sua arte intrigava e fascinava, sendo muitas vezes classificada como esquizofrênica.

“Não existe desonra no fracasso. Existe só uma grande vergonha. A covardia de não ter tentado.”

Surfista Prateado: Parábola é simples, como são as parábolas, mas sob o véu da sua pretensa simplicidade escondem-se camadas de subtextos morais e filosóficos. Em uma época indefinida no futuro, quando a humanidade não conhece mais os super-heróis, Galactus retorna à Terra. Em um passado agora distante, o Devorador de Mundos havia jurado não consumir o planeta. Livre dos sentimentos humanos, a terrível força cósmica nunca quebra uma promessa, mas, consumido pela fome, rebaixa-se a um ardil: permitir que a humanidade destrua a si mesma.

“Eu sou Galactus! O momento é meu! O poder é meu! A majestade é minha! Por tempo demais vocês chafurdaram na guerra, suportaram a pobreza e foram acossados pelo crime. Em troca de sua adoração, trago-lhes uma nova era. (…) Vim aqui para libertá-los! Libertá-los da culpa e das inúteis leis dos homens! Se quiserem ser salvos, façam o que quiserem, tomem o que quiserem. Não existe nada errado, não existe pecado, prazer é tudo! Assim falou Galactus!”

Um culto rapidamente surge em torno da pretensa divindade cósmica e um oportunista charlatão religioso, Colton Candell, ansioso por poder, aproveita-se disso para apresentar-se diante do mundo como o profeta responsável pela vinda de Galactus. O materialismo pregado pelo Devorador de Mundos leva a humanidade ao caos em pouco tempo, com perseguições sendo empreendidas contra todos aqueles que ousam discordar da sua palavra suprema.

Norrin Radd, o ex-arauto de Galactus, vive há muito tempo aprisionado na Terra, castigado por seu ex-mestre. Ele vagueia pela cidade como um mendigo, desencantado da humanidade que um dia tentou entender e que tanto amou. Ciente do destino cruel que será empreendido contra a raça humana, o Surfista Prateado resolve lutar uma batalha que ele sabe que não tem como vencer e desafia seu antigo mestre, ao mesmo tempo em que tenta clarear a mente das pessoas iludidas por suas promessas. A morte de Elyna, irmã de Colton Candell, faz com que as pessoas percebam o quanto Galactus não se importa com a humanidade, e todos voltam-se contra ele. Fiel ao seu juramento, e ciente de que não alcançaria mais o intento desejado, Galactus liberta seu ex-arauto do aprisionamento na Terra e parte para os confins do universo em sua interminável busca por saciar sua fome. Enquanto isso, o Surfista Prateado discursa na ONU, saudado como herói. Salvador. Deus. Em pouco tempo as pessoas começam a adorá-lo do mesmo modo que fizeram com Galactus. O cavaleiro prateado toma uma medida extremada em seu discurso, atrai a ira das pessoas e parte para a vastidão do espaço sideral.

“O pior destino de todos, em meio a inúmeros mundos e incontáveis estrelas, é ser eternamente solitário.”

Excelsior!

Surfista Prateado: Parábola é indispensável por vários motivos. É uma das melhores HQs do Surfista Prateado, uma das melhores da Marvel Comics e o encontro único entre duas das maiores lendas das histórias em quadrinhos, de duas escolas completamente distintas: o norte-americano Stan Lee e o francês Moebius.

A arte de Moebius é deslumbrante – e diferente não poderia ser. O artista francês está no panteão dos mestres dos quadrinhos, ao lado – não abaixo – de lendas como Jack Kirby e Steve Ditko. O Surfista Prateado é um personagem que encaixaria-se perfeitamente nos mundos criados pelo francês e o resultado visto em Surfista Prateado: Parábola é a prova disso. O Surfista Prateado de Moebius é elegante, gracioso, parece flutuar em todos os quadros – uma das melhores versões já feitas do personagem, talvez a melhor. Sua arte fluída, quase como um storyboard sofisticado, é desenhada levemente, sem preencher os quadros com traços excessivos e desnecessários, acrescida de uma paleta de cores propositadamente limitada, fria, que evoca uma tristeza inerente ao universo do personagem. O Galactus de Moebius parece realmente uma divindade, e não somente um alienígena gigante. O artista francês desenha o Devorador de Mundos com um senso de escala único, e o personagem surge monumental, majestoso e imponente em todos os quadros da graphic novel, minimizando todos os personagens que com ele contracenam. Ainda sobra espaço para um nível de detalhamento incrível de personagens que aparecem em apenas um quadro, além dos extraordinários arranha-céus da cidade – até mesmo o letreiramento foi feito por Moebius, prática comum na Europa, mas incomum nas comics norte-americanas. O resultado final é uma obra de arte visual, com uma estética única dentro das histórias em quadrinhos norte-americanas – você nunca viu nada igual a isso e provavelmente nunca mais verá.

Stan Lee encontrou no Surfista Prateado o porta-voz perfeito para escrever o que ele queria sobre a existência, a humanidade e suas contradições e as belezas do mundo. O Surfista Prateado testemunhou a extinção de civilizações inteiras, a maioria delas levadas até Galactus por ele próprio. Sua vida é uma expiação eterna sobre suas próprias culpas. O personagem sempre trouxe o melhor de Stan Lee. Surfista Prateado: Parábola é um comentário crítico extremamente contundente sobre o fanatismo religioso – e não somente sobre ele, mas sobre tudo que divide a raça humana em polos de violência desmedida. É um conto também, como nota o próprio Moebius, sobre a solidão, a falta de compreensão e a luta pela verdade.

Se por um lado é notável o talento publicitário de Stan Lee e a sua capacidade única para imaginar personagens fantásticos, por outro lado não é pequena a quantidade de pessoas que não enxergam nele um grande escritor. Estão profundamente enganadas. Nunca leram as suas histórias e precisam ler Surfista Prateado: Parábola. Prestigiada com o Eisner de Melhor Série Limitada em 1989 e indicada como Melhor Álbum Gráfico (prêmio vencido por A Piada Mortal de Alan Moore e Brian Bolland), a graphic novel é a prova do talento de Stan Lee, que desenvolve aqui uma das suas melhores histórias. Produzida em uma época de transição nas comics norte-americanas, que alcançavam um nível maior de sofisticação, já experimentando o impacto de obras como Demolidor e Batman de Frank Miller e Watchmen de Alan Moore, o estilo característico de Stan Lee, oriundo da Era de Prata, faz-se presente, com seus diálogos rebuscados e quase teatrais mais inspirados do que nunca, mas ao mesmo tempo amalgamado ao espírito sombrio e desencantado que a era das HQs adultas iniciara na década de 1980.

No fim, talvez a maior lição dessa parábola criada por Stan Lee e Moebius é deixar-nos um questionamento: o que mais nos atrai nos super-heróis? Os seus imensos poderes ou os valores que eles representam? A persona do Surfista Prateado grita a cada quadro e a cada balão de fala para que a segunda opção seja a resposta escolhida. Infelizmente essa pequena obra-prima não exerceu a devida influência no universo das comics que vieram a seguir. Surfista Prateado: Parábola permanece escondida, sob um véu, deixando-se revelar apenas para aqueles que destrincham suas páginas que parecem tão alienígenas ao estilo das comics norte-americanas quanto o alienígena Norrin Radd diante da humanidade.

Surfista Prateado: Parábola (The Silver Surfer: Parable #1 e #2 – EUA – 1988/1989, Epic Comics, Marvel Comics)
Roteiro: Stan Lee Arte, arte-final e letras: Moebius Cores: Mark Chiarello e John Wellington (sobre o trabalho-base de Moebius)

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.