A Mulher-Maravilha foi criada por William Moulton Marston (sob o pseudônimo de Charles Moulton) e Harry G. Peter, aparecendo pela primeira vez na edição nº 8 de All Star Comics, em dezembro de 1941, o mês do ataque japonês a Pearl Harbor e que marcou a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, a virada decisiva para o histórico conflito. Crescendo rapidamente em popularidade, a personagem ganhou a sua própria revista em 1942, convertendo-se em um dos ícones femininos mais importantes da cultura pop. Apesar do impacto imediato, a Mulher-Maravilha não seguiu o caminho bem-sucedido de Batman e Superman em outras mídias, personagens que ainda nas décadas de 1940 e 1950 foram adaptados em filmes seriados e programas de rádio e firmaram-se de vez nos cinemas nos finais das décadas de 1970 e 1980 com obras de enorme sucesso.
A Princesa das Amazonas recebeu sua primeira tentativa de adaptação live action em 1967, com um piloto de série nunca exibido, e uma segunda tentativa fracassada em 1974. Em 1975, a ABC investiria em uma série com Lynda Carter no papel principal que duraria até 1979. O sucesso foi grande, mas a personagem entrou em novo hiato. Novas tentativas não faltaram: Ivan Reitman, Jon Cohen, Joss Whedon e David E. Kelley estiveram ligados a três possíveis filmes e a uma série de TV, mas todas as tentativas estagnaram e não foram adiante: a Warner Bros. nunca demonstrou entusiasmo pelo projeto. Não até recentemente, quando a personagem, interpretada pela israelense Gal Gadot, fez sua estreia no universo estendido da DC com uma participação curta e certeira em Batman Vs Superman, aumentando exponencialmente a expectativa para o seu filme solo. E pode-se afirmar sem medo de errar que a expectativa foi plenamente cumprida (com sobras) por Patty Jenkins, Gal Gadot, Chris Pine e companhia.
Um prólogo fugaz na Paris dos dias atuais introduz a vereda por onde a memória nostálgica de Diana Prince (Gal Gadot) viajará. Somos levados para a ilha de Themyscira, o paraíso escondido nas brumas do oceano, criado por Zeus para abrigar uma sociedade de mulheres guerreiras que um dia lutaram ao lado dos deuses contra Ares, o deus da guerra. A ilha é um santuário para as Amazonas, que diante do possível retorno de Ares dedicam-se às artes do combate sob a liderança da indomável General Antiope (Robin Wright), enquanto enchem de mimos a única criança do lugar: a pequena e decidida Diana (a graciosa Lilly Aspell), filha da Rainha Hipólita (Connie Nielsen).
Inicialmente protegida dos treinamentos de combate por sua mãe, eventualmente Antiope convence Hipólita da necessidade de ensinar Diana a lutar. Na idade adulta ela logo se revela a mais habilidosa de todas as amazonas, ainda sem saber toda a verdade por trás da sua concepção diferenciada. A paz e o isolamento de Themyscira desaparecem quando um avião cai em suas águas. Salvo do afogamento por Diana, Steve Trevor (Chris Pine) acaba inadvertidamente trazendo o horror da guerra ao lar das amazonas, na figura dos seus perseguidores alemães. Sob a influência do laço da verdade, Trevor revela ser um soldado americano disfarçado entre os alemães para coletar informações de inteligência sobre um poderoso gás venenoso desenvolvido pela Doutora Veneno (Elena Anaya) sob as ordens do sádico General Ludendorff (Danny Huston). Quando escuta a descrição que Trevor faz da “guerra para acabar com todas as guerras”, Diana se convence de que Ares retornou exercendo sua influência maligna sobre os homens e resolve partir para confrontá-lo.
Mulher-Maravilha é uma clássica história de origem. O roteiro escrito por Allan Heinberg, roteirista de sucesso na Marvel Comics, na DC Comics e em séries de TV norte-americanas, a partir de história criada por Zack Snyder, Jason Fuchs e o próprio Heinberg, é eficiente em estabelecer Diana Prince e o seu universo para o grande público. Sua origem é contada em poucos minutos e mesmo na figura infantil de Lilly Aspell já é possível perceber que Diana Prince será uma mulher decidida, corajosa e impetuosa na vida adulta.
Quando Gal Gadot finalmente entra em cena temos a certeza de estarmos diante de uma genuína super-heroína. A inexperiência da atriz israelense não impede que Patty Jenkins extraia dela uma atuação sólida, enquanto o seu carisma completa o que poderia faltar na mistura. Ingênua, extremamente idealista, brava, corajosa e intensa, a personagem de Gal Gadot não abre espaço em suas ações para indecisões ou questionamentos sobre sua missão e seu dever. Não há cinismo em nenhuma suas atitudes: ela deseja, do fundo do seu coração, derrotar Ares, acabar com a guerra e salvar os seres humanos. No front de batalha distrai-se a todo instante com o sofrimento dos civis, dos soldados e até mesmo dos animais, contraditando o pragmatismo de Steve Trevor, sabedor de que em uma guerra é impossível salvar a todos.
Sua atuação é adorável e graciosa – a câmera de Patty Jenkins destaca com talento as suas expressões e reações, seus olhos determinados e bondosos e sua indignação autêntica diante das iniquidades dos seres humanos – e a incursão de Gal Gadot no humor prova-se certeira. Suas interações no mundo dos homens são hilárias. Das mais de duzentas roupas que ela experimenta – sem entender como as mulheres podem lutar vestidas daquele modo – ao prazer inenarrável de provar um sorvete pela primeira vez, passando pela tentativa de cruzar uma porta giratória empunhando escudo e espada, pela sua indiferença diante dos ambientes e costumes que coíbem as mulheres e na feminilidade que exala por todos os seus poros quando vê um bebê nas ruas de Londres e sai correndo querendo pegá-lo no colo, todas as confusões que a personagem vivencia arrancam um sorriso do rosto que não é provocado apenas pelo humor, mas também pelo prazer de observar a vivacidade emocional que a personagem transmite.
O encontro entre Diana Prince e Steve Trevor (Chris Pine, na melhor atuação do longa-metragem) em Themyscira apresenta duas almas gêmeas já nos close-ups do sorriso curioso de Diana vendo um homem pela primeira vez e da expressão de incredulidade de Trevor diante da impressionante mulher que o observa. O romance e a tensão sexual (explorada ao máximo em inúmeras situações cômicas) sugerem-se imediatamente e são desenvolvidos ternamente na narrativa, com direito a momentos de leveza ímpar como a dança de Diana e Trevor nas ruas de um povoado enquanto a neve cai e a Princesa das Amazonas encanta-se docemente com o espetáculo mágico dos cristais de gelo desprendendo-se do céu.
Quando Diana Prince finalmente é levada por Steve Trevor ao front de batalha, o que a super-heroína testemunha é o horror e a devastação da guerra: crianças sem pais, famílias destruídas e soldados mutilados. Da ilha de Themyscira para a Europa devastada pela Grande Guerra na década de 1910, dois universos tão díspares são contrapostos pela competente fotografia de Matthew Jensen, que ilumina, escurece, colore e acinzenta os ambientes de acordo com o estado de suas escolhas. Na trincheira pestilenta em que soldados lutam por meses sem conseguir avançar um centímetro sequer, Diana impõe-se a Trevor e seus amigos mercenários Sameer (Said Taghmaoui), Charlie (Ewen Bremner) e Chefe (Eugene Brave Rock), que desejam seguir na missão, mais importante que o horror daquele cenário em particular – mas não para a Mulher-Maravilha. Guiada por suas emoções e convicções, Gal Gadot salta para o campo de batalha em uma extraordinária sequência de ação: alvejada por metralhadoras, rebate as balas com seus braceletes; com seu escudo avança em minutos por todos os espaços que os soldados não conseguiram conquistar em meses de batalha.
Sendo apenas o seu segundo longa-metragem depois de estrear em 2003 com Monster – Desejo Assassino e permanecer longos anos dirigindo episódios de séries televisivas, Patty Jenkins entrega uma direção luminosa em Mulher-Maravilha. Desenvolvendo com talento a relação da sua dupla principal, a diretora combina aventura, humor, romance e ação com competência ao construir um filme ambientado na guerra sob os olhos humanos de uma protagonista sem vícios que transpira um ar de inocência raro em filmes de super-heróis atuais. As sequências de ação são repletas de slow motion (ao estilo Matrix [1999] das irmãs Wachowski, com suas acelerações repentinas nas composições) e os braceletes e o laço da verdade são usados de maneira dinâmica em combate.
Mulher-Maravilha é um enorme acerto. Um filme com um espírito de aventura inspirado por Indiana Jones e Os Caçadores da Arca Perdida (1981) e uma aura de encantamento pela figura clássica do super-herói que remete diretamente a Superman: O Filme (1978) – com direito a uma fantástica e providencial homenagem à cena do beco com Diana Prince e Steve Trevor assumindo os papéis de Clark Kent e Lois Lane. O semblante é de filme antigo, como se fosse uma releitura charmosa dos clássicos de matinês de muitas décadas atrás, feitos para toda a família. O roteiro simples, que não se ocupa com discursos vazios, não perde tempo em estabelecer múltiplas ligações para eventos futuros e vai do ponto “A” ao ponto “B” sem gorduras ou incoerências, ganha vida e frescor com uma protagonista carismática, um coprotagonista de talento, coadjuvantes com participações curtas mas eficientes, fartas doses de ação e humor e uma atmosfera cativante. Mulher-Maravilha é divertido, encantador e inspirador, apresentando ao mundo uma heroína determinada que luta pela verdade e pela justiça sem titubear em um só instante. Um filme com alma e coração cravejados de esperança legítima no melhor que a humanidade pode oferecer – como todo super-herói deve ser.
Mulher-Maravilha (Wonder-Woman) – EUA, 2017, cor, 141 minutos.
Direção: Patty Jenkins. Roteiro: Allan Heinberg. Música: Rupert Gregson-Williams. Cinematografia: Matthew Jensen. Edição: Martin Walsh. Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Robin Wright, Danny Huston, David Thewlis, Connie Nielsen, Elena Anaya, Lucy Davis, Said Taghmaoui, Ewen Bremner.