Uma hora você tem que decidir quem será. Nunca deixe que decidam por você“, diz Juan (Mahershala Ali) ao pequeno Chiron (Alex Hibbert) em um determinado momento da história. A busca por autoconhecimento, por assumir uma identidade própria, é um tema universal (“Conhece-te a ti mesmo“) e o coração de Moonlight: Sob a Luz do Luar, uma pequena joia intimista, segundo longa-metragem de Barry Jenkins, também seu roteirista.

Baseado em um projeto de faculdade nunca apresentado do ator e escritor Tarell Alvin McCraney, intitulado “In Moonlight Black Boys Look Blue“, Moonlight: Sob a Luz do Luar passeia por três momentos distintos da vida de Chiron, um jovem negro norte-americano na periferia de Miami. Com uma estrutura narrativa inspirada no filme taiwanês Três Tempos (2005), de Hou Hsiao-Hsien, a obra apresenta três atos cronologicamente distintos e narrativamente evolutivos.

i. little

Aos nove anos de idade, Chiron (Alex Hibbert), apelidado de “Little” por causa do seu tamanho e fragilidade, é um jovem tímido, calado e introspectivo em um bairro pobre e violento da periferia de Miami. Ao fugir dos valentões da escola, termina cruzando o caminho de Juan (Mahershala Ali), um cubano traficante de crack. Sua mãe, Paula (Naomie Harris), é uma enfermeira viciada em crack (que logo descobriremos ser vendido justamente por Juan), negligente com o filho e mais preocupada em satisfazer seus vícios e suas vontades carnais. Kevin (Jaden Piner) é o melhor amigo de Little.

Em uma montagem dinâmica e eficiente, vemos a aproximação contínua entre Little e Juan, que afeiçoa-se ao menino e ironicamente acaba tornando-se uma referência paterna para ele (e uma influência que irá perdurar diante de todos os percalços que a vida colocará em seu caminho), além do afeto e do carinho que Teresa (Janelle Monáe), a namorada de Juan, proporciona a Little.

ii.chiron

Aos dezesseis anos de idade, alto e ainda franzino, Chiron (Ashton Sanders) continua a vivenciar os mesmos problemas de antes, o vício em drogas de sua mãe e os problemas com os valentões da escola, ainda mais evidenciados e fortes agora que a sua homossexualidade começa a ter um papel preponderante em sua vida. Juan faleceu e Teresa continua sendo um porto seguro emocional em sua jornada. Com Kevin (Jharrel Jerome), seu amigo, experimenta o prazer sexual, e também um acontecimento decepcionante e assustador, que terá influência decisiva em seu futuro.

iii.black

Uma década depois, “Black“, o apelido que Kevin lhe deu na adolescência, é o nome que Chiron (Trevante Rhodes), agora um jovem adulto de vinte e seis anos, ostenta nas ruas. Emulando o visual de Juan, os brincos de pedras nas duas orelhas, o jeito de sorrir e falar, dentes acrescidos de um protetor bucal que lhe conferem um aspecto mais agressivo, o pequeno Chiron converteu-se em um traficante. Na intimidade, com a mãe, é o mesmo Chiron de antes, perdido em seus próprios pensamentos. Um telefonema de Kevin (André Holland) leva-o de volta a Miami, para um reencontro doloroso com o seu passado e com a sua identidade.

Sutileza e intimismo

Uma produção independente de US$ 5 milhões, Moonlight: Sob a Luz do Luar já começa impressionando pelo apuro técnico. A tomada inicial é um inventivo plano-sequência: Mahershala Ali chega em seu carro azul, câmera à frente, que o acompanha quando ele sai caminhando na direção de um subordinado que vende drogas na rua e está discutindo com um viciado, para então começar a girar ao redor deles por três ou quatro vezes até parar e se afastar um pouco, em um plano médio que coloca os dois personagens juntos, e se encerra com o personagem de Ali se despedindo e voltando para o carro, quando um grupo de crianças passa correndo, perseguindo um menino, na sua frente.

A câmera segura e precisa de Barry Jenkins é intrusiva, explorando os planos médios e fechados, com muitos close-ups, sempre próxima dos atores, rodeando seus movimentos e captando com maestria suas expressões. Em tantos momentos é simétrica, seguindo os personagens pelas costas como se estivesse caminhando com eles em suas trajetórias. A ideia do giro da câmera, que dialoga com o luar do título e com a própria montagem em três atos complementares, é explorada em várias outras ocasiões, como na sequência no pátio do colégio, quando Terrel (Patrick Decile) desafia Kevin a derrubar Chiron.

Barry Jenkins também sabe contar a história através da imagem, como no cinema clássico americano, e a extraordinária fotografia de James Laxton contribui imensamente com esse intento. Moonlight: Sob a Luz do Luar é repleto de sequências da mais pura poesia, especialmente nas tomadas noturnas, banhadas pela luz do luar que dá o título ao filme, estabelecendo uma atmosfera azulada constante em toda a história – e na transição de cada ato a tela escurece e pisca uma luz de tonalidade distinta. A excelente montagem é dinâmica. Não temos flashbacks, a vida não para, nunca voltamos para saber sobre algo que ocorreu no passado, a construção narrativa sempre segue adiante, incólume.

A simbólica sequência em que Juan ensina Little a flutuar no mar (e Mahershala Ali estava realmente ensinando Alex Hibbert, que até aquele momento nunca havia nadado) é de uma beleza ímpar, com a câmera colocada dentro da água, como se nós estivéssemos também aprendendo a nadar com eles, o movimento das ondas indo e voltando, ora cobrindo toda a câmera, ora revelando os personagens em uma espécie de rito de passagem e aprofundamento da relação pai e filho que se desenvolve entre os dois, enquanto as cordas incessantes da música-tema são ouvidas, com sua tensão constante, como a indicar que aquele momento é fugaz e sonhador.

A trilha sonora, aliás, é um espetáculo à parte. Uma miscelânea de sonoridades, que passeia entre Boris Gardiner (Every Nigger is a Star), Aretha Franklin (One Step Ahead), Caetano Veloso (Cucurrucucú Paloma), Barbara Lewis (Hello Stranger) e Mozart (Laudate Dominum from Vesperae Solennes de Confessore, K. 339) até chegar nos fantásticos temas originais de Nicholas Britell, dotados de um estilo clássico absolutamente penetrante, com destaque para Little’s Theme, toda no piano, e a incrível música-tema, The Middle of the World, com suas incessantes cordas de violoncelo em uma tensão crescente, sincronizadas aos momentos mais cruciais da narrativa, tornando-a ainda mais tocante e impactante.

O impressionante das atuações dos três atores que interpretam Chiron é a expressão. A caracterização de todos eles em suas fases é de uma perfeição tão absurda que nos faz acreditar que estamos realmente acompanhando o crescimento de um único ator em cena. Essa sincronia entre as interpretações, com a introspecção e um modo de olhar triste, perdido, vazio, e até mesmo o movimentar da boca que os três atores compartilham em seus trabalhos (além da semelhança nos rostos), é ainda mais inacreditável quando descobrimos que o diretor não permitiu que os três atores se conhecessem durante as filmagens, justamente porque queria que cada um deles construísse sua própria personalidade em seus segmentos, sem influência de outros retratos. A mesma técnica foi usada com os três atores que interpretam Kevin, alcançando o mesmo efeito. Do franzino Little ao parrudo Black, vemos em cena uma evolução da vida de uma pessoa que parece real.

Além deles, Mahershala Ali e Naomie Harris brilham intensamente em seus papéis. Ali tem pouco tempo em cena, todo ele concentrado no primeiro ato, mas o suficiente para mostrar o grande ator que é, caminhando com extrema facilidade entre o traficante duro das ruas e o homem protetor que se afeiçoa pelo pequeno Chiron. Harris, única a aparecer nos três atos, impressiona como a mãe negligente e viciada, mas que acima de tudo ama seu filho, mesmo que não tenha sido capaz de dar a ele o que ele precisava nos momentos mais importantes de sua vida – e a sua frase para Chiron no terceiro ato é devastadora: “Sei que não te dei amor quando você precisava, então não precisa me amar, mas saiba que eu te amo.”

Moonlight: Sob a Luz do Luar emociona e aproxima a sua história do espectador sem explorar o melodrama. O roteiro de Barry Jenkins é sutil e minimalista; seus personagens são complexos. Seus diálogos são poderosos, até mesmo quando os personagens não sabem muito bem o que dizer (como na cena do café da manhã no primeiro ato, em que Little pergunta a Juan e Teresa o que significa uma palavra preconceituosa que seus colegas da escola usaram contra ele). A narrativa ataca os problemas sociais, o preconceito contra os gays e o racismo sem fazer disso um panfleto ideológico ou coisa que o valha. Não é necessário ser negro, gay, pobre ou traficante para compreender e sentir o que Chiron enfrenta da infância até a vida adulta. A solidão, a aceitação e a culpa são sentimentos universais e a jornada de Chiron em busca de um dia conseguir encontrar a si mesmo estabelece uma conexão imediata com qualquer pessoa. “Quem é você, Chiron?“, Kevin pergunta nos instantes finais. “Quem somos nós?“, é essa a pergunta crucial que Jenkins insere em sua obra. Não há caminhos fáceis, nem soluções baratas e rasteiras, para se atingir uma resposta: cada um tem o seu próprio caminho e o seu próprio tempo.

Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight) – EUA, 2016, cor, 110 minutos.
Direção: Barry Jenkins. Roteiro: Barry Jenkins, baseado na história de Tarell Alvin McCraney. Música: Nicholas Britell. Cinematografia: James Laxton. Elenco: Trevante Rhodes, André Holland, Mahershala Ali, Ashton Sanders, Alex Hibbert, Janelle Monáe, Naomie Harris, Jharrel Jerome, Jaden Piner, Patrick Decile.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.