MESTRE DOS ENIGMAS


1

ESTADOS UNIDOS. Gotham City.

Os ventos frios e calmos atingiam os matos altos do terreno fora da mansão. Grandes galhos das árvores balançavam lentamente, enquanto o céu se fechava e indicava que uma grande tempestade estava por vir. Era final de tarde e o sol se despedia, os poucos raios de luz sombreavam as gigantescas estruturas da grande casa, praticamente vazia. Os móveis estralavam por falta de uso, o chão empoeirado ocupava um vasto espaço. Ali, há muito tempo, uma família feliz vivera; hoje, apenas o órfão repousava, sem companhia alguma. A poltrona em frente à lareira era aquecida pelo fogo que vinham do vão repleto de madeiras em chamas, enquanto inúmeras garrafas de vinho, vazias, cobriam o piso ao redor do estofado; a adega, inimaginavelmente, atualmente se encontrava vazia. O homem observava a brasa com um olhar calmo e vago. O sol agora acabara de se pôr completamente e os ventos aumentavam.
ㅤㅤO silêncio que encobria a grande mansão fora quebrado por um grande estrondo, vindo do céu. As janelas com vidro fosco, de sujeira, eram iluminadas pelos relâmpagos exteriores. A corpulenta sala da casa era o único lugar do local que abrigava calor, humano e flamejante. Os olhos castanhos do homem demonstravam, agora, uma coloração amarelada, observando as madeiras quentes e pensando sobre vários acontecimentos de sua vida.
ㅤㅤPerdera os pais ainda criança, aconselhado por um policial sobre como lidar com a situação e aceitar a partida de seus entes queridos. Foi cuidado pelo então mordomo da família, o qual, durante muito tempo, foi a presença paterna do garoto e, quando o mesmo se tornou um homem, o ajudou em suas ambições, relacionadas às ações heroicas. Hoje, a única companhia daquele, agora, velho homem, eram os retratos dos que já partiram espalhados pela casa; gerações sucessivas de familiares que nunca conheceu, seus pais, seus antigos parceiros e seu velho ajudante, que um dia já lhe chamou de filho. As cruéis lembranças eram capazes de retirar toda e qualquer esperança de dias melhores do coração daquele homem, que hoje já não via o mínimo propósito em viver. Sua cidade estava enfim segura, devido a uma tecnologia criada por si mesmo, fazendo a promessa que um dia efetuou aos seus pais ser cumprida. O povo estava feliz, seguro; mas ele estava triste, sem perspectiva e alguém ao lado. Remoía paixões e aventuras antigas que, como ele sempre imaginava, não deram certo. Eram proibidas, loucas demais para serem verdade. Loucas demais, como os inúmeros insanos que enfrentou ao longo da vida.
ㅤㅤO homem solitário hoje era mais velho do que seu pai um dia havia sido. O dinheiro abarrotado em suas contas e as jóias de sua falecida mãe, escondidas nos cofres, já não tinham mais nenhum valor para aquela figura humana. Tua barba era longa, assim como sua experiência. Seus cabelos grisalhos eram secos e descuidados.
ㅤㅤA tempestade parecia aumentar cada vez mais e as chamas já não pareciam ter a força de minutos atrás.
A campainha da gigantesca estrutura de concreto foi acionada, de supetão. Quem poderia ser? Nenhuma visita era esperada, nenhuma visita era bem-vinda. O homem se levantou da poltrona com dificuldade e caminhou lentamente para a porta, sem realmente querer. Os passos pesados e vagarosos demonstravam a dificuldade de locomoção daquele corpo; ele realmente estava em seu fim, completamente esgotado. Ao abrir a porta, de maçaneta fria, ninguém se pronunciou; ninguém estava ao menos lá, esperando. Apenas uma encomenda, ao chão, o homem viu: uma pequena caixa preta, com um símbolo de interrogação cravado em verde. Era misteriosa, assim como a pessoa que a deixou ali. O velho cidadão a abriu, sem demonstrar muita curiosidade. Dentro do objeto cúbico havia um pequeno bilhete, de proporções manuais. Ela trazia uma proposta, uma tentadora proposta. “Olá, Bruce. Vamos jogar?”. O homem, de roupão branco, com o bordado dos Wayne em sua veste, olhou instantaneamente para frente, procurando alguma sombra, alguma presença humana. Ele nada viu. Sorriu, subsequentemente. Não tinha absolutamente nada a perder. Só precisava de uma aventura para se distrair. Uma última aventura para se sentir vivo novamente.
ㅤㅤ— Vamos. — Disse, em um tom de voz mínimo, porém audível.
ㅤㅤBruce fechou a porta com rapidez, porém remoendo uma certa dificuldade, devido às suas dimensões. Caminhou pelo piso empoeirado até a suíte regente da mansão, onde se aproximou do piano e apertou três de suas teclas. Os sons emitidos abriram uma porta secreta, que dava acesso à famosa Batcaverna.
ㅤㅤHá muito tempo não descia por aqueles degraus. Há muito tempo não vivera uma de suas loucas aventuras. Há muito tempo não sentia tanto medo de morcegos. O velho Wayne deslocou-se rumo ao subsolo rochoso e escuro, pela primeira vez em anos empolgado para fazer algo. Por mais que o lugar não trouxesse boas lembranças, ele sabia que aquilo era seu verdadeiro lar, parte de quem ele realmente era. A escuridão tomou conta de absolutamente tudo e o eco dos passos era acompanhado pelos barulhos dos mamíferos voadores que ali viviam. O gigantesco super-computador empoeirado iniciou-se automaticamente, como nos velhos tempos, mas o velho Morcego não precisaria dele. Sabia onde tinha que ir, a localização exata.
ㅤㅤTrocou de roupa, vestindo seu antigo manto, sujo e desgastado, do Vigilante de Gotham. A barba comprida não deixava o famigerado e temido queixo aparecer. O Morcego era, pela primeira vez, todo negro; todo sem esperança. Trocou passos até a plataforma arredondada, onde seu veículo terrestre se encontrava. O motor do automóvel roncou alto quando o trevoso cavaleiro nele adentrou. Os faróis amarelados e velhos foram acionados e a comporta, que dava de frente para uma imponente e esbelta cachoeira, se abriu. O veículo acelerou e partiu, a tempestade lá fora se alastrava cada vez mais por toda a cidade. Estava apenas começando e terminaria quando o velho Cavaleiro das Trevas não mais respirasse. O grande jogo estava prestes a se iniciar.

2

ㅤㅤOs pneus do veículo negro rasgavam a água no pavimento com uma extrema facilidade. A velocidade era alta. A tempestade estava cada segundo mais forte e o céu completamente tomado pela escuridão. O automóvel do herói trevoso chegou rapidamente ao local desejado: o famigerado Asilo Arkham. Ou melhor, o antigo lugar denominado Asilo Arkham; hoje, um prédio abandonado, repleto de doenças, sujeira e memórias mortas de insanos que não pertencem mais a este mundo. Antigo lar dos seus mais loucos e vis antagonistas. O homem, de identidade conhecida pelo Morcego, responsável pela caixa misteriosa, hoje ainda residia no local. Na mesma cela que cumpriu sua longa pena, fundou seu lar. Ficou tão obcecado que jamais se desvinculou do cubículo escuro e desconfortável onde sua insanidade piorou. Recobriu a parede com tinta verde, misturada com fotografias estranhas de famosos magnatas de Gotham, com um ponto de interrogação cravado na face de cada um deles, e espalhou objetos engraçados e peculiares pelo chão gélido e sujo. Alguns jornais e revistas velhas podiam ser igualmente contemplados empilhados em um dos quatro cantos. Em seu interior, possuía também um pequeno computador e um objeto em forma de caixa, feito de vidro, onde guardava seu antigo uniforme verde e roxo, acompanhado por seu chapéu e sua máscara. O Mestre dos Enigmas. O Charada.
ㅤㅤO Homem-Morcego parou seu veículo perto da grande entrada do antigo lar de loucos, desceu e foi banhado pelas gotas grossas e pesadas que caíam do escuro céu, que sequer faziam-o se sentir desconfortável. Seu manto de Cavaleiro das Trevas encharcou-se instantaneamente, porém ele não parecia ligar — como nas outras inúmeras noites que foi banhado pelo líquido celeste em sua longeva vida adulta. Ele então finalmente entrou. Caminhou lentamente, com dificuldade, rumo à antiga cela de seu velho antagonista. Enquanto seus passos pesados ecoavam pelas paredes próximas dos corredores do local, junto à sonoridade do calçado molhado, o Morcego apalpou sua barriga, sentindo algumas dores. Percorreu o resto do caminho cambaleando.
ㅤㅤEstava determinado, sedento por essa inesperada, e quem sabe última, aventura. Cruzou pelo corredor faltante, virou à esquerda na última dobra. Lá estava. Ele enfim havia chegado. Respirou bem fundo e fechou os olhos. Esperou um pouco, soltou a respiração. Deixou que seu pulmão funcionasse bem, já que saberia a tremenda emoção que passaria nos próximos minutos. Os olhos castanhos do velho Morcego se abriram, após. Por mais que esperasse, nem ele acreditava naquilo que estava acontecendo, mas era real. Lá estava o Charada, bem à frente, apenas o observando. O vilão sentava em uma cadeira velha, de frente a uma mesa improvisada, com uma cadeira vazia à sua frente. Portava uma arma de fogo, o objeto que usariam para produzir a brincadeira.
ㅤㅤ— Olá, Bruce. Você chegou rápido — pronunciou o Charada, abrindo um pequeno sorriso. — Rápido demais, para alguém da sua idade, tenho que admitir.
ㅤㅤO Morcego olhou ao redor, procurando por alguma surpresa ou explosivo inesperado. Observou o chão à sua frente e o teto posteriormente. Nada viu.
ㅤㅤ— Ah, por favor, Morceguinho. Fique tranquilo — deu um singelo tapa no ar — Hoje não tem nenhuma armadilha pra te ferir, ser afogado ou eletrocutado. Nenhum quebra-cabeça maluco ou desafios impossíveis. Hoje somos só eu e você. Como nos velhos tempos — continuou a bradar, não escondendo sua inescrupulosa animação. — Como nos velhos tempos….
ㅤㅤ— O que você quer, Nigma? — Perguntou o Morcego, bem baixo, como se tentasse, de uma maneira desesperada, não demonstrar sua, também, tremenda animação.
ㅤㅤ— O que eu quero, Bruce? — encarou-o firme, levantando uma de suas sobrancelhas ruivas — Ah, você sabe muito bem o que eu quero. A minha cartinha não deixou isso explícito? — riu um pouco, mostrando seus dentes encravados. — Eu quero jogar.
ㅤㅤBatman recusou-se a dizer mais alguma coisa. O vilão então esticou o braço direito rumo à cadeira vazia.
ㅤㅤ— Vamos, sente-se. O tempo é curto.
ㅤㅤO Morcego se aproximou e sentou na cadeira velha e empoeirada, subsequentemente. Estava curioso para saber o que seu provecto antagonista lhe havia reservado.
ㅤㅤ— Como você mesmo disse, o tempo é curto — exprimiu, a cara fechada como de praxe. — Vamos direto ao ponto. Qual a brincadeira da vez?
ㅤㅤ— Olha, Morceguinho, eu andei pensando muito em nós. Muito mesmo. Em nossos embates e encontros engraçados — suspirou o vilão, nostálgico. — Cheguei à conclusão que merecíamos um final digno, não acha? Não sei como não nos matamos, em todas as oportunidades que tivemos, de ambos os lados…
ㅤㅤ— Eu não mato. — Interrompeu o Morcego, antes mesmo que o Charada terminasse sua frase.
ㅤㅤ— Bruce, Bruce… Você me interrompeu. Seus pais não lhe deram o mínimo de educação? — inquiriu o ruivo, aumentando o tom de voz e franzindo as sobrancelhas — Ah, é… me desculpe. Por um segundo me esqueci que morreram cedo demais para terminar qualquer tipo de ensino que começaram a lhe dar. Confesso que às vezes me esqueço, mas juro que não faço por mal. — Não escondeu os dentes.
ㅤㅤWayne ficou quente, enfureceu-se como há muito não se permitira, demonstrando visivelmente não gostar daquilo que seu antagonista acabara de dizer. E não era pra menos. Mas o velho Mestre dos Enigmas o ignorou. A estrela da noite, enfim, seria ele próprio.
ㅤㅤ— Bem, vamos continuar. Espero não ser interrompido desta vez — balançou os braços e esticou as mangas amarrotadas. — Como eu estava dizendo… Achei que nós deveríamos ter um final digno. Não Bruce e Edward. Mas sim o Batman e o Charada. Herói e vilão. Antagonistas antigos — teus lábios quase deixavam a saliva consistente escapar devido à tamanha ansiedade. — Então pensei a respeito de nossa última aventura. Nosso último joguinho. Eu tenho a charada perfeita pra isso!
ㅤㅤO maquiavélico homem, ruivo de poucos fios brancos, envelhecido, encostou na arma de fogo localizada à sua frente, sobre a mesa, e a empunhou com sua mão direita esbranquiçada.
ㅤㅤ— Mas este nosso joguinho não será nada tranquilo, Morceguinho. Você, princesinha como é, achará bem perigoso.
ㅤㅤO antigo Vigilante de Gotham observou friamente e novamente não disse nada.
ㅤㅤ— Eu farei uma pergunta e, para cada resposta errada, puxarei o gatilho. Esta arma tem apenas uma bala, irei rotacionar o cilindro dos projéteis se o disparo não atingir nenhum de nós dois — riu o maquiavélico homem. — Mas, para a brincadeira ficar legal, a arma apontará para nossas cabeças, tudo bem?
ㅤㅤ— Tudo bem. — Respondeu o Morcego, friamente.
ㅤㅤ— O quê? Espera um minutinho… “Tudo bem”? — arregalou seus lindos olhos verdes — Eu pensei que você iria chorar um pouquinho, implorar para não brincarmos disso — disse Nigma, ainda se recusando a acreditar — Bem, acho melhor começarmos logo, antes que mude de ideia. — Terminou o vilão, ainda transtornado de surpresa.
ㅤㅤSuas narinas inalaram um porco ar, residente do local, e teu corpo enfim preparou-se de vez para o jogo.
ㅤㅤ— O que é, o que é… Se veste de verde, usa chapéu, possui uma máscara roxa e está empunhando uma arma de fogo neste exato momento?
ㅤㅤ— Haha. Engraçado, Nigma. — Contestou Batman, transcendendo um ar de desapontamento.
ㅤㅤ— Responda. — Articulou o ruivo, deixando seu ar animado de lado e fechando a cara.
ㅤㅤ— Você.
ㅤㅤ— Eu?
ㅤㅤ— Sim.
ㅤㅤ— Tudo bem… e quem sou eu?
ㅤㅤ— Está tirando uma com a minha cara, Nigma?
ㅤㅤ— Morcego, por favor, apenas responda. Já disse que temos pouco tempo.
ㅤㅤ— Quem é você? Você é Edward Nigma. O Charada.
ㅤㅤ— Errado, Morceguinho. Errou feio, errou rude. — Ele balançou a cabeça, completamente decepcionado, e puxou o gatilho contra a cabeça do herói.
ㅤㅤKLIK.
ㅤㅤNão disparou. O clima no local, no entanto, mudou. Tudo ficou gelado, tenso demais. Mas a arma felizmente não disparou.
ㅤㅤ— Haha. Deu sorte, Morceguinho. Minha vez — falou Nigma, colocando o bico da pistola rente à sua cabeça. — Eu repito a charada, Bruce. Quem sou eu?
ㅤㅤO Morcego começou a ficar mais tenso ainda. O que ele pretende com isso? Não conseguia entender nada.
ㅤㅤ— Lembre-se, Morceguinho, se você errar e o projétil me acertar, você terá me matado. Você! Sua faminha de não matar irá por água abaixo.
ㅤㅤ— Você puxará o gatilho, Nigma, e eu quem estarei te matando? — Contestou o velho Wayne, dando uma leve risada.
ㅤㅤ— Busque em seus sentimentos, Bruce. Você sabe que é verdade. É o homem mais inteligente do mundo, tem que saber responder simples perguntas, não? — ele pronunciou, novamente mostrando os dentes — Ah, e se encontrarem meu corpo… Todos pensarão que foi suicídio. Mas você saberá, Batman. Saberá que não foi — bradou o vilão, em um tom de voz muito sério. — Agora responda. Responda a pergunta. Quem sou eu?
ㅤㅤ— Seu nome real é Edward Nasthon. Antigo investigador forense e legista no Departamento de Polícia de Gotham City. Hoje, é um inventor fracassado e criminoso profissional, que adora quebra-cabeças. — Respondeu direto o Morcego, de cara fechada e voz relativamente alta.
ㅤㅤO vilão ruivo apenas observou. Nada disse instantaneamente. E novamente balançou a cabeça em negação.
ㅤㅤKLIK.
ㅤㅤO gatilho novamente foi acionado e mais uma vez a arma não disparou.
ㅤㅤ— Errado, Batman. Errado de novo! — ele pronunciou, nervoso demais para encará-lo nos olhos — Sua vez — o vilão continuou dizendo, apontando novamente o cano da arma para a cabeça do herói de preto. — A charada é a mesma. Quem sou eu?
ㅤㅤ— Eu estou me cansando deste seu joguinho, Nigma.
ㅤㅤ— RESPONDA!
ㅤㅤ— Eu não sei.
ㅤㅤKLIK.
ㅤㅤNão disparou de novo.
ㅤㅤ— Para alguém que se diz tão inteligente, o Maior Detetive do Mundo, você é um fracasso, Batman! Estou muito, mas muito decepcionado. — Exprimiu Nigma, transtornado e insatisfeito.
ㅤㅤO vilão estava realmente chateado e triste. Tomado por uma desilusão tamanha. Voltou a apontar o cano da arma para si, o encostando em sua cabeça, no lado direito, o mesmo que segurava o objeto.
ㅤㅤ— Eu nunca perguntei o meu nome, ou minha ocupação. Perguntei quem eu era. Quem era a pessoa por trás desta máscara — maneou a cabeça, suspirando — Após anos de confrontos, de investigações, você continua não sabendo quem eu sou — empurrou a cadeira para trás e se levantou. — Eu sempre fui a maior de todas as minhas charadas. Quem diria.
ㅤㅤO ruivo iniciou uma curta caminhada, sem sair do local. Andava em círculos, como um animal perdido.
ㅤㅤ— Eu sou um homem triste, Morceguinho. Eu sou um sonhador desiludido. Meu pai era agressivo comigo, cada uma de suas palmadas me tornava alguém pior. Minha mãe, ausente. Nunca esteve lá para me defender daquele monstro. Nunca esteve, ao menos, . Eu rezava todas as noites para Deus me ajudar, para algum homem do céu intervir e me tirar dos punhos ácidos de meu progenitor. Eu sonhei, eu me desiludi. Eu descobri, com o tempo, como a vida era sem graça. Sem propósito. Um quebra-cabeça que eu jamais conseguiria resolver.
ㅤㅤO herói olhava para o homem de verde e escutava atentamente. Não conseguia, porém, sentir um pingo de pena.
ㅤㅤ— Falando em quebra-cabeças… Quando estava na escola, me apaixonei por eles. Ficava fascinado com a complexidade e com a genialidade que cada um possuía. Eu amava desafios, sempre amei. Foi o que me ajudou a superar e aceitar minha vida dentro de casa. O que me deu uma razão para viver — sorriu, lembrando-se das partes boas de seu passado. — Quando cresci, quis ajudar aqueles que precisavam, então entrei para a polícia. Queria justiça, então fazia de tudo para desvendar os crimes e prender os responsáveis. Cada cena sanguinária era um novo quebra-cabeça, um novo desafio. E eu os montava, os desvendava. Meu Deus, como eu amava meu trabalho. Levava os responsáveis para a cadeia e as famílias das vítimas sentiam-se julgadas. Poderiam, enfim, sentir-se minimamente tranquilas.
ㅤㅤEle parou de andar e de encarar o herói. Olhou para o alto, mais nostálgico do que nunca, encarando o teto sujo e cheio de lodo. Alguns insetos peçonhentos marcavam presença e tornavam o visual ainda mais macabro e porco.
ㅤㅤ— Eu fui como você, Bruce. Um garoto sem pais. Um justiceiro determinado. Mas minhas esperanças foram sendo tomadas aos poucos — permitiu-se dar uma leve gargalhada, irônica e melancólica — Quem diria, não é… Aquele palhaço sem graça nunca foi seu nêmesis perfeito. Eu fui. Eu, logo eu, um enigma vivo, como você. — Finalizou o antagonista verde, voltando seus olhares para o Morcego logo depois.
ㅤㅤEnquanto isso, barulhos bem baixos de sirenes podiam ser escutados, de longe, se aproximando vagarosamente. Batman atinou-se a eles e movimentou sua cabeça, tentando enquadrar na mente brilhante que detinha a posição de onde vinham.
ㅤㅤ— Você chamou a polícia, Nigma? — Inquiriu o Morcego, confuso.
ㅤㅤ— Eu não disse que o tempo era curto, Bruce? — articulou o Charada, sorrindo — Eu conseguirei o que ninguém mais conseguiu, Morceguinho. Vou te incriminar de verdade. Eu vou te vencer!
ㅤㅤO Batman lançou contra ele um pequeno olhar de ódio, embora sentisse confuso quando à procedência e a razão de tudo aquilo.
ㅤㅤ— Outra coisa que você ainda não percebeu… Eu estou segurando a arma com a mão direita — soltou um imponente e assustador riso. — Está velho mesmo, meu amigo…
ㅤㅤO ruivo então puxou o gatilho, sem hesitar, e desta vez a arma não enganou ninguém. Ela disparou em cheio e atingiu com toda força a cabeça do vilão, fazendo com que seus miolos dissipassem pelo ambiente com extrema facilidade, e uma grandiosa quantidade de sangue fosse jorrada ao redor do corpo.
ㅤㅤ— NÃO! — Gritou Bruce. Mas já era tarde demais.
ㅤㅤO herói tentou se aproximar rapidamente do corpo, que já quase findava sua queda ao chão. Empurrou a cadeira para trás com tudo e se levantou de uma só vez. Seu físico já não era como antes, seus braços doíam, suas pernas movimentavam com uma vasta lentidão e uma forte dor no peito ele sentiu. Seu coração.
ㅤㅤ— Ni… Nig… Nigma….
ㅤㅤO corpo do homem de verde atingiu o chão quase imediatamente na mesma hora que o corpo do Morcego fazia o mesmo. As sirenes se aproximavam cada vez mais. Eram muitos carros, inúmeros homens e mulheres fardados. Os oficiais do Departamento de Polícia chegaram ao local pouco tempo depois e se depararam com a situação. Em meio à sujeira e podridão do antigo lar de loucos, dois corpos foram encontrados, ambos sem vida. Dois nêmesis, partindo ao mesmo momento, como em um grand finale digno dos maiores best-sellers.
ㅤㅤA tempestade, lá fora, começou a se acalmar e, lentamente, foi parando com o passar do tempo. Quando amanheceu, a luz do sol pode enfim retornar a iluminar as ruas e os habitantes da cidade de Gotham City. Mas, diferente da felicidade e clareza que ela guardava, jamais a cidade trevosa poderia sentir-se como antes. Era como se tivesse perdido uma parte grandiosa e importante de sua dimensão; pedaço essencial de quem aprendeu a ser. Jamais retornaria a ser a mesma.

FIM.


Inspirado nos personagens da DC Comics.
Batman foi criado por Bob Kane e Bill Finger.
Charada foi criado por Bill Finger e Dick Sprang.

Referência:

Conto em alusão ao suposto roteiro escrito por Ben Affleck e Geoff Johns para o próximo filme do Batman, que foi descartado.

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Sobre o Autor

Apaixonado por quadrinhos, cinema e literatura. Estudante de Matemática e autor nas horas vagas. Posso também ser considerado como um antigo explorador espacial, portador do Jipe intergaláctico que fez o Percurso de Kessel em menos de 11 parsecs — chupa, Han Solo!