Será mesmo que P.L Travers detestava o que havia sido feito com Mary Poppins no popular musical live-action da Disney?

“O filme e os livros não são a mesma coisa e você não deve confundi-los”, disse Travers em uma entrevista após o longa estrear. “O filme é muito glamouroso, mas tem pouco a ver com os livros”. Richard Sherman disse ao New Yorker que ele acreditava que a opinião de Travers sobre o filme mudava de acordo com o público dela. Quando estava com pessoas que não gostavam da Disney, ela contava como Poppins foi profanada pelo estúdio. Em cartas particulares, ela não foi nada humilde em suas críticas.

No entanto, quer ela tenha conversado com jornalistas ou admiradores, sempre teve o cuidado de afirmar que seus comentários não eram para publicação. Pamela dizia que interromperia negociações para uma continuação, coisa que Walt desejava (Mary Poppins era considerado por ele como seu segundo melhor trabalho depois de Branca de Neve e os Sete Anões). No entanto, há tantos exemplos em cartas para Walt e comentários para repórteres, onde ela elogiou o musical como uma peça maravilhosa.

“O conhecimento é que ela odiava o filme, mas quando eu trabalhei com ela em uma sequência descartada, anos depois, nós assistimos juntos e eu descobri que havia mais coisas que ela gostava do que não gostava – na verdade, muito do material que veio apenas do live-action, em oposição às suas histórias, foi seguido ou referenciado no roteiro que escrevemos juntos”, escreveu o historiador da Disney, Brian Sibley, que conhecia Travers há bastante tempo e trabalhou em estreita colaboração com ela para uma sequência.

A primeira vez que P.L Travers viu a versão cinematográfica de Poppins aconteceu na premiere de Hollywood na quinta-feira, em 27 de agosto de 1964, no Grauman’s Chinese Theatre. Ela não havia sido convidada. Um de seus advogados, Diarmuid Russell, e sua editora americana (Harcourt Brace & World) pediram que ela fosse convidada, mas foram ignorados pela Disney. Travers enviou um telegrama para Walt dizendo que ela estava indo para Hollywood ver a estréia, certa de que alguém seria capaz de encontrar um lugar extra para ela em algum lugar. Bill Dover, que havia sido sua “babá” quando visitou os estúdios da Disney em 1962, se ofereceu para acompanhá-la. Isto foi seguido por uma mensagem de Walt que, embora ele tivesse contado com a presença dela na estréia em Londres, ele estava feliz por ela comparecer à festa de HollywoodHarcourt Brace & World pagou seu voo para Los Angeles (26 de agosto) e uma estadia de três dias no Beverly Wilshire Hotel.

Enquanto há um punhado de fotos de Walt com Travers, ele passou muito pouco tempo com ela na estréia. Durante o filme, Pamela surpreendentemente chorou. Observadores de plantão sentiram que eram lágrimas de felicidade ao ver sua criação nas telonas em um filme tão bem feito. Alguns cínicos até sugeriram que as lágrimas eram de alegria pelo fato de que o filme seria tão bem sucedido que ela seria financeiramente estável pelo resto de sua vida por causa da porcentagem que receberia.

As duas teorias estavam erradas. Travers jurou que eram lágrimas amargas. “Lágrimas correram no meu rosto porque tudo estava tão distorcido … eu estava tão chocada que senti que nunca iria escrever, muito menos sorrir, de novo!”,ela afirmou.

Nos créditos iniciais, seu nome era listado como “consultor” e “Baseado nas histórias de PL Travers”. Ela percebeu que de agora em diante o filme seria conhecido como “Mary Poppins de Walt Disney”, no mesmo caso de escritores famosos como James Barrie Lewis Carroll (Peter Pan e Alice no País das Maravilhas, respectivamente). Mais tarde, ela disse que o crédito deveria ser “Mary Poppins de P,L Travers, exibido por Walt Disney”. Na “after-party”, organizada pela Technicolor, em um estacionamento próximo a um jardim inglês, Richard Sherman relembrou do momento em que Travers se aproximou de Walt e exclamou: “Bem, a primeira coisa que tem que ir embora é a animação”. Calma e friamente, ela recebeu a resposta de Disney: “Pamela, o navio partiu”.

No dia seguinte, ela enviou um telegrama para Walt, parabenizando-o pelo elenco e pelo filme. Ela guardou uma cópia do telegrama, para que a posteridade pudesse conhecer seus verdadeiros sentimentos. Disney respondeu formalmente que ele estava feliz por sua reação e foi uma pena que “as atividades agitadas, durante e após a estréia” fizeram eles ter pouco tempo para passar juntos. Pamela respondeu que a estréia foi maravilhosa, mas que a verdadeira Mary Poppins permaneceu dentro das capas de seus livros e esperava que o sucesso do filme virasse uma nova audiência para eles.

Em uma carta de 2 de setembro de 1964 para sua editora, ela escreveu que o filme era “a Disney completa, espetacular, colorida, maravilhosa, mas toda envolvida na mediocridade do pensamento”. De volta a Nova York, ela participou da estréia no Radio City Music Hall em setembro e deu entrevistas, concentrando-se em seus livros. Com o sucesso do filme, as vendas deles triplicaram. No entanto, os livros que continham a versão Disney da história, vendiam muito mais que os dela. Mais tarde, ela diria a um entrevistador que o “filme não tem simplicidade, tem simplificação”.

Com o passar dos anos, ela não queria ser lembrada pela versão cinematográfica e dizia que tudo ali era fantasia, mas não mágica. Todavia, em 1987, havia planos para que P.L Travers (com a ajuda de Sibley) escrevesse o roteiro de uma continuação do musical live-action. O Disney Studios propusera uma sequência onde Julie Andrews voltaria como Mary Poppins para ajudar as crianças de Jane e Michael Banks. Porém, Pamela achou tal proposta completamente inaceitável. Sibley suavizou o fervor de Travers e a convenceu a escrever sua própria história para que Poppins fosse apresentada da maneira que ela queria. Ele então falou do acordo para Roy E. Disney, que imediatamente concordou. Jeffrey Katzenberg se encontrou com Sibley e Travers no Reino Unido, onde Travers expôs suas exigências sobre como a personagem e seu universo deveria ser retratado.

A dupla assistiu novamente o musical no escritório da Disney, em Londres, já que Travers não tinha visto o filme desde a sua estréia há mais de 20 anos. Sibley ficou surpreso, entre suas repetidas reclamações, do quanto Travers gostava de partes do filme e lhe disse para fazer anotações daqueles momentos para possível inclusão no roteiro. Em meados de 1988, Sibley estava trabalhando bastante no roteiro de Mary Poppins Comes Back. Não seria apenas uma continuação do filme de 1964, mas também incluiria aventuras extraídas dos livros originais.

A Sra. Banks estava criando um grupo de gêmeos, depois de ter desistido da causa sufragista e estava tentando apoiar emocionalmente o marido, cuja nova posição no banco lhe causava novas preocupações com todos os investimentos imprudentes que levaram o mesmo a sérios problemas financeiros. Uma nova babá era impossível de encontrar para Jane e Michael, que em determinado momento estão no parque tendo problemas com sua pipa. Eles são ajudados por Barney, irmão mais novo de Bert (se mudou para limpar as chaminés dos ricos e famosos) que vende sorvetes. O estúdio sugeriu que o papel fosse dado para o cantor Michael Jackson, que não era apenas popular na época, mas havia acabado de concluir Captain EO e já era considerado parte da família Disney.

E então, Mary Poppins retorna. Uma das aventuras apresentaria a bússola mágica para uma viagem ao redor do mundo (originalmente planejada e eliminada do primeiro filme). Muitos dos parentes de Poppins fazem aparições e há uma ênfase na ideia de que é música e não dinheiro que faz o mundo girar. Sibley trabalhou em duas versões do roteiro. A Disney trouxe dois outros roteiristas para ajudá-lo, Perry e Randy Howze, mas o projeto acabou na gaveta.

Travers só deu permissão para o desenvolvimento de uma produção musical teatral com a condição de que nenhum norte-americano estivesse envolvido nela, e, em particular, qualquer um que estivesse conectado com a produção cinematográfica de 1964. Isso significava que os Irmãos Sherman não poderiam contribuir com novas músicas de jeito nenhum. Quando Pamela morreu em 1996, a Disney Company publicou o anúncio nas revistas mostrando uma imagem de Mickey Mouse chorando pela perda.

Mas ainda falta mais um assunto para falar: quais eram as principais objeções de Pamela Travers sobre a versão Disney?

Travers viu muito claramente o Sr. Banks (David Tomlinson) como uma versão idealizada de seu próprio pai e ficou horrorizada com a maneira como Bill Walsh, Don DaGradi e os Irmãos Sherman o retrataram. “Eu mal suportava isso … sempre amei o Sr. Banks. Perguntei por que o Sr. Banks tinha que ser um monstro”, disse ela à revista McCall em 1966. Ela não gostou de ver Banks rasgando o anúncio que as crianças haviam escrito para a nova babá. Travers informou aos escritores que ele nunca faria algo assim com seus filhos. Banks era somente “pouco carinhoso” com a esposa, como qualquer marido que tivesse a maior parte de sua vida focada no trabalho. Isso é o que ela afirmou.

Mary Poppins nunca deveria ser indelicada ou impertinente com ninguém e nem desafiar sua autoridade. Se os pais dissessem aos filhos que não fizessem algo, a babá não deve interferir nessas ordens. Mesmo que Pamela gostasse de Julie Andrews e de sua performance, ela sentia que a atriz era bonita demais e que o humor e o charme das histórias vinham do fato de que Mary ser uma mulher de aparência simples. Ela também pensava que Poppins deveria sempre ser chamada por seu nome inteiro. Apenas seus parentes a chamavam de “Mary” (nos livros). Ela ficou chocada com os modos que Mary Poppins dança em Supercalifragilisticexpialidocious. Esta foi uma queixa que ela lembrava por décadas, alegando que Mary estava “mostrando toda a sua roupa de baixo” de modo completamente deselegante.

Sobre o Bert, mesmo que ela tivesse deixado pistas sutis em suas histórias de que Mary Poppins e Bert eram um pouco mais do que amigos, era dito que não haveria nenhuma sugestão de qualquer conexão amorosa entre os dois. Na melhor das hipóteses, ele só podia amá-la sem esperança de que seu afeto fosse retribuído. Ela sentiu que em Jolly Holiday, os dois estavam confortáveis até demais quando juntos. Ela também não gostava que os roteiristas continuassem expandindo seu papel para que pudessem atrair uma grande estrela interessada no papel. Bert era uma figura secundária em seus livros e quando viu que era ele quem conseguia unir a família novamente, ela ficou mais chateada. Quando Dick Van Dyke foi posto no papel, ela imediatamente não concordou.

Quanto à Sra. Banks (Glynis Johns), ela detestou a decisão de que ela se tornasse sufragista, alegando que nenhuma das crianças entenderiam as piadas sobre o movimento feminista. Quando um nome precisou ser escolhido, entre as 11 sugestões, Walt Disney adotou “Winifred”. Ela também não concordou com a escolha. Até mesmo a casa dos Banks não foi poupada de reclamações. Enquanto era mais humildes nos livros, no filme se assemelhava a uma mansão com a presença de empregados. Os livros também possuíam os irmãos gêmeos de Michael e Jane, que para o desprazer de Pamela, foram descartados no live-action.

Em 1970, Travers criou o Cherry Tree Trust, uma fundação que ajudava as crianças. Com a grande bilheteria, brinquedos, livros, teatros e afins, Helen Lyndon Goff foi rica até o final de sua vida.

Acredito que essa história (ou cabo de guerra) servirá muito bem como complemento para a excelente crítica do Rodrigo sobre O Retorno de Mary Poppins, filme que estreou no mês passado com direção de Rob Marshall e Emily Blunt no icônico papel da babá. Espero que tenham gostado, e até mais!

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Sobre o Autor

Amo filmes, histórias em quadrinhos, livros e, principalmente, Fuscas.