Um super-herói que não tem superforça, não voa e não é à prova de balas. Qual é o seu superpoder? Encolher ao tamanho de uma formiga, de onde tira o seu codinome heroico, e se comunicar com esses insetos. Pode soar meio ridículo – e é, mas afinal, o que não é pitoresco no universo dos super-heróis? –, mas não se pode dizer que é desinteressante. Ao contrário. As aplicações das partículas pym são absolutamente interessantes – mais até nos cinemas do que nos quadrinhos.
Criado por Stan Lee, Jack Kirby e Larry Lieber nas páginas de Tales to Astonish #27 (clique aqui para ler a resenha) em janeiro de 1962, o Homem-Formiga nunca conseguiu sair do círculo de reconhecimento que abrange apenas os aficionados por quadrinhos. Esteve lá na primeira edição de Os Vingadores, em 1963, como membro-fundador desse que é um dos grupos mais importantes da Marvel Comics, sempre participou (como coadjuvante) de sagas importantes da editora, mas não foi além isso, jamais conseguindo estrelar uma edição solo.
Essa maravilhosa e terrificante ideia de imaginar pessoas, coisas e criaturas que encolhem ou são muito pequenas ou minúsculas perpassa a mitologia de quase todos os povos, a literatura (a influência de As Viagens de Gulliver permanece viva transcorridos quase 400 anos do seu lançamento) e o cinema, que explorou o tema em vários clássicos da ficção científica entre os anos 1940 e 1960, invariavelmente com enorme sucesso.
Cinco décadas precisaram se passar para que o Homem-Formiga transitasse dos quadrinhos para o cinema – não por falta de tentativas ou vontades anteriores, já que desde a década de 1980 Lee sonhava com um filme do personagem, mas viu a Walt Disney lançar Querida, Encolhi as Crianças antes e o seu projeto ser engavetado pela extinta New World Pictures.
A produção de Homem-Formiga dentro do universo cinematográfico da Marvel (UCM) foi tão tortuosa quanto é a trajetória do personagem nos quadrinhos. O cineasta britânico Edgar Wright tinha interesse no projeto desde 2006 e em 2008 foi contratado para dirigi-lo. A intenção do estúdio era lançar o filme em 2011 e ter o personagem participando de Os Vingadores em 2012. Muitas diferenças criativas depois e o projeto voltou quase ao zero prestes a iniciar as suas filmagens. O público duvidava do filme. Os fãs duvidavam do filme. Troca diretor – entra Peyton Reed. Reescreve-se boa parte do roteiro – mantendo muito das ideias de Wright e Joe Conish. E finalmente em 2015 Homem-Formiga é lançado, já no encerramento da fase 02 do UCM.
O resultado final é um longa-metragem que supera todos os seus problemas de bastidores, conseguindo tornar-se completamente distinto dos demais filmes do estúdio (o que já fica evidente quando a salsa panamenha Borombon toca no início) ao assumir uma alma de filme de família com uma trama de assalto com comédia ao melhor estilo Onze Homens e Um Segredo (2001), uma das inspirações declaradas da produção. As múltiplas digitais do projeto, em vez de causaremo caos, terminam amalgamando-se no processo criativo de forma orgânica. Percebe-se o humor de absurdo britânico de Wright e Conish tanto quanto o estilo das comédias americanas (de onde Reed, McKay e Rudd vieram) calcadas em múltiplos personagens cômicos, não apenas no protagonista.
E a turma de coadjuvantes é absolutamente maravilhosa. Esse talvez seja um dos maiores acertos de Homem-Formiga: estabelecer coadjuvantes tão cativantes quanto o seu protagonista. É fantástico ver o personagem em ação encolhendo e aumentando em inventivas composições, mas a narrativa também faz com que você deseje ver mais do relacionamento entre Scott (Paul Rudd) e sua filha Cassie (a notável Abby Ryder Fortson), que tem poucas cenas, ora doces e engraçadas, ora tristes, mas sempre apaixonantes. Na primeira interação entre os dois Scott presenteia a filha com um coelho que parece ter pertencido ao Chucky. A pequena garotinha reage com um espontâneo e adorável “é feio que dói! Eu adorei!” e nunca mais larga o bicho de pelúcia. Toda a sensibilidade que irá permear a relação entre pai e filha é estabelecida já nessa cena
E definitivamente todo mundo quer ver mais das trapalhadas do trio de ladrões completamente idiotas Kurt (David Dastmalchian), Dave (Tip “T.I.” Harris) e Luís (o excelente Michael Peña), que cumpriu pena com Scott, e toma todos os holofotes para si sempre que aparece, com a sua fala acelerada e a necessidade de contextualizar, nos mínimos detalhes que não interessam a ninguém que está ouvindo, todas as histórias que conta – é hilário o recurso de mostrá-las como acontecem na sua imaginação, extremamente rápidas e com a voz de Luís “interpretando” todas as pessoas que participam dos seus “contos”.
O cerne narrativo é a família, com duas histórias entrelaçadas que movimentam a história e fazem o Homem-Formiga ressurgir com um novo alter-ego. O prelúdio no auge da Guerra Fria mostra um jovem Hank Pym (o lendário Michael Douglas rejuvenescido em um trabalho brilhante de maquiagem e efeitos especiais) brigando com Howard Stark (John Slattery), Peggy Carter (Hayley Atwell) e Mitchell Carson (Martin Donovan) para impedir que a sua tecnologia caísse nas mãos da S.H.I.E.L.D e se convertesse em uma arma de guerra. Hank deixou para trás os seus dias como Homem-Formiga depois que a sua esposa, Janet Van Dyne, desapareceu para sempre no universo subatômico ao impedir que um míssil soviético explodisse em solo americano.
Hope (Evangeline Lilly) tem uma relação conflituosa com o pai e não o perdoa pela morte da mãe – Hank jamais lhe contou a verdadeira história. O ex-pupilo Darren Cross (Corey Stoll) tomou o comando da antiga Pym Technologies (com o voto decisivo de Hope) e está muito perto de replicar as partículas pym, vendê-las para a Hydra e entupir o mundo com o traje Jaqueta Amarela. Hank precisa detê-lo, mas não quer ver acontecer com Hope o mesmo que ocorreu com Janet. Para isso ele precisa de alguém capaz de vestir o seu traje e invadir um lugar projetado para impedir invasão.
Esse cara é Scott Lang, um engenheiro que roubou muito dinheiro da sua antiga empresa – para devolver a pequenos investidores que foram lesados pela corporação – e acaba de sair da prisão. Um criminoso, mas com senso de justiça e bom coração. E uma filha pequena. Mas sua ex-mulher Maggie (Judy Greer) agora namora o policial Paxton (Bobby Cannavale) e só vai permitir que Scott faça parte constante da vida de Cassie se ele conseguir um emprego. Mas ninguém dá emprego a um ex-presidiário. E que ainda por cima roubou da própria empresa. Scott quer ser para Cassie o herói que ela acredita que ele já é. E vai fazer qualquer coisa por isso, inclusive voltar a invadir lugares e roubar coisas…
Em seu conteúdo, Homem-Formiga trata de pais querendo salvar os mundos de suas filhas, um enquanto ela ainda é criança e enxerga nele a melhor pessoa do universo e o outro tentando resgatar o que se perdeu pelo caminho ao longo das décadas; em sua forma é um elaborado filme de assalto arquitetado por um trabalho de direção que pensa a ação e o humor lado a lado. Reed e o diretor de fotografia Russell Carpenter conseguem manusear as diferentes escalas que o poder do personagem exige a todo instante de maneira inventiva e imprevisível.
A tradicional montagem de treinamento é criativa – afinal, quantos heróis treinam os seus poderes tentando saltar pelo buraco de uma fechadura ou ensinando formigas a colocarem cubos de açúcar em uma xícara de chá? – e o universo das formigas surge em um surrealismo meio louco, com cores muito vivas. A apresentação das espécies de formigas que auxiliam o personagem (formiga-louca, tocandira, formiga-carpinteira e formiga-de-fogo) é interessante e o jeito com que Scott trata o seu exército de insetos torna impossível não simpatizar com Antony e não se emocionar com a sua partida (que descanse em paz).
Na primeira vez que o personagem veste o traje na banheira temos um deleite de efeitos especiais em escalas que remete diretamente à aventura no jardim de Querida, Encolhi as Crianças (1989), com a câmera acompanhando uma troca de perspectiva sensacional que segue um desesperado Scott fugindo de um tsunami que é a água caindo às suas costas, pelas tubulações do prédio, pelos riscos de um disco de vinil, pelo chão de uma boate, por dentro de um aspirador de pó e diante de um rato monstruoso. Já o rastro que as trocas constantes de tamanho deixam pelo caminho é muito bem utilizado nas lutas contra os seguranças da Cross Technologies. O Homem-Formiga é um projétil e suas coreografias de batalha são erguidas em torno desse conceito.
A inesperada luta final com o Jaqueta Amarela no quarto de Cassie é o melhor exemplo de como a ideia de encolhimento e crescimento é usada de maneira criativa. A câmera próxima evidencia uma batalha épica, com um trem de brinquedo aparentando ser um comboio gigantesco; quando corta para a escala humana, é um brinquedo de plástico que cai no chão sem fazer quase nenhum barulho. Enquanto isso, uma formiga gigante assusta a todos (que cachorro esquisito!) e um trenzinho aumentado destrói parte da casa. E ainda há o reino quântico em uma viagem curta, mas surrealista e maluca, de onde Scott consegue retornar vivo, o que enche Hank e Hope de esperanças de que um dia consigam resgatar Janet.
Homem-Formiga traz uma atmosfera e um ludismo que poucos filmes do tipo foram (e são) capazes de oferecer. Entrega tudo o que você espera de um filme de super-herói: diversão, ação, criatividade, humor, emoção aqui e ali, e muita alma. Paul Rudd adiciona um tipo de humor e carisma em Scott Lang que nenhum outro personagem da Marvel possui nos cinemas e o seu time de coadjuvantes é absolutamente ímpar – impossível não querer ver mais da Hope, do Hank, da Cassie, do Luís… e das formigas! Consciente da sua pequenez (e de como pode ser grandioso dentro dela) e também do quão ridículo é, aproveita-se desses elementos para se reinventar em um longa-metragem honesto e descompromissado, que depois de tantos problemas e atrasos (mas em um trabalho contínuo e de muitas e importantes contribuições) estabelece com maestria o menor dos heróis do universo cinematográfico da Marvel.
Homem-Formiga (Ant-Man) – EUA, 2015, cor, 117 minutos.
Direção: Peyton Reed. Roteiro: Edgar Wright, Joe Cornish, Adam McKay e Paul Rudd. Música: Christophe Beck. Cinematografia: Russell Carpenter. Edição: Dan Lebental e Colby Parker, Jr. Elenco: Paul Rudd, Evangeline Lilly, Corey Stoll, Abby Ryder Fortson, Michael Peña, Michael Douglas, Bobby Cannavale, Tip “T.I.” Harris, Anthony Mackie, Wood Harris, Judy Greer, David Dastmalchian, John Slattery e Hayley Atwell.