O Dia dos Mortos é celebrado com imensa alegria no México, seguindo uma tradição antiga que remonta a época do império Asteca. Entre 31 de outubro e 2 de novembro, longos festejos tomam conta das cidades do país homenageando a memória dos mortos e relembrando com orgulho as suas histórias. Altares multicolores, fantasias de caveiras, fotos e objetos daqueles que já se foram, comidas e bebidas típicas e muita música são os elementos que se misturam com extrema beleza e riqueza para celebrar a visita dos antepassados à Terra e honrar os seus legados. Esse cenário cultural ímpar (e ao mesmo tempo de intenções e características tão universais) é o elemento central de Viva: A Vida é Uma Festa, que encharca de música uma jornada clássica e emocional sobre sonhos e laços familiares.

A introdução da 19ª animação da Pixar é um pequeno deleite, tanto na apresentação estética quanto na introdução narrativa, utilizando-se de papel picado e muita inventividade para contar, em poucos minutos, tudo que é necessário saber sobre a história: o pequeno engraxate Miguel (Anthony Gonzalez) sonha tornar-se um músico tão celebrado quanto o seu ídolo, o saudoso e extremamente popular Ernesto de la Cruz (Benjamin Bratt), considerado o maior cantor mexicano de todos os tempos. O seu sonho parece impossível, porque a sua família, os Rivera, aboliu completamente qualquer tipo de música em seu seio (e abraçou um duradouro negócio de sapataria) desde que o seu tataravô caiu no mundo para perseguir um sonho musical e abandonou sua tataravó e sua filha pequena, Inês (“Coco” no original, personagem que dá o título ao filme), hoje em seus últimos anos de vida.

Sempre acompanhado do “excêntrico” cãozinho de rua Dante, Miguel está determinado a participar de um show de talentos que ocorrerá na praça da cidade, justamente no Dia dos Mortos. Depois que a sua avó Abuelita (Renée Victor) destrói o seu violão artesanal, Miguel resolve pegar “emprestado” o violão de De la Cruz, exposto em um mausoléu no cemitério da cidade. Por “roubar” um objeto de um morto, o garoto acaba transportado, ainda vivo, para o mundo dos mortos. A única forma de voltar para casa é conseguindo a benção de um dos seus familiares mortos, mas todos eles, liderados pela tataravó Mamá Imelda (Alanna Ubach), exigem que ele abdique do seu sonho musical, o que faz com que o garoto busque a ajuda de De La Cruz, que ele acredita ser o seu tataravô. Correndo contra o tempo para não morrer definitivamente, Miguel contará com a ajuda inestimável de Hector (Gael García Bernal), um malandro que está prestes a desaparecer de vez do mundo dos mortos por não ter mais ninguém que se lembre dele no mundo dos vivos – e que possui um elo profundo e inesperado com Miguel.

Dirigido pelo experiente Lee Unkrich (co-diretor de Toy Story 2, Monstros S.A. e Procurando Nemo, e diretor de Toy Story 3) e co-dirigido pelo estreante Adrian Molina (que assina o roteiro com Matthew Aldrich), Viva: A Vida é Uma Festa acerta em cheio na criação de uma história profundamente emocional ambientada em um universo visualmente embasbacante. Uma extraordinária ponte de flores alaranjadas (que evoca a icônica estrada dos tijolos amarelos de O Mágico de Oz) é o caminho por onde os mortos transitam para o mundo dos vivos, apresentando a cidade dos esqueletos de um modo deslumbrante: um local imenso, de construções altíssimas, amontoadas umas nas outras, mas ao mesmo tempo elegante e belo, percebido em seus mais ínfimos detalhes, desde as pedras nas ruas aos azulejos nas praças – e por onde convivem a riqueza da torre de De La Cruz e a miséria dos barracos ocupados pelos mortos que não são lembrados nas oferendas dos vivos. Pelos céus desse mundo de tons infinitos, voam os alebrijes, guias espirituais dos mortos, criaturas imponentes como quimeras, com visuais fosforescentes e multicoloridos.

A fotografia é de uma vermelhidão que se sente eterna, como a quentura das terras mexicanas, povoada por dias que parecem infinitamente presos no entardecer; as velas do Dia dos Mortos a ampliar os espectros vermelhos, alaranjados e amarelados das luzes sobre os cenários e rostos dos personagens, todos bem construídos, em especial os esqueletos dos mortos, com crânios distintos e personalidades próprias, destacando-se como elementos de leveza ainda que erguidos a partir de traços de inspiração notadamente macabra. Em uma história essencialmente musical, a trilha sonora de Michael Giacchino cumpre com maestria a missão de auxiliar na construção da atmosfera cultural local, mergulhando fundo na cultura dos mariachis, tendo os dedilhados e harmonias do violão como o seu norte e imiscuindo-se com habilidade nas sequências do filme em que Miguel, Hector ou De La Cruz executam canções devidamente conectadas com a narrativa, como a belíssima música-tema Lembre de mim (Kristen Anderson-Lopez e Robert Lopez).

A história de Viva: A Vida é Uma Festa é repleta de traições e reviravoltas, dignas das melhores novelas mexicanas. O ídolo perfeito de Miguel tem falhas gravíssimas, enquanto quem ele pensava ser uma pessoa qualquer, um zé ninguém, revela-se muito mais que isso, em todos os sentidos. Aventura, fantasia, mistério e humor (as participações de Frida Kahlo, a verdadeira e a falsa, são hilárias) misturam-se em uma narrativa tocante de contornos profundamente emocionais. Uma belíssima ode à tradição mexicana de manter viva a memória daqueles que já se foram.

A última execução de Lembre de mim é brilhantemente conduzida. Para impedir que o seu tataravô seja esquecido de vez no mundo dos mortos, Miguel cantarola a bela canção feita para uma Inês ainda criança, que caminha na velhice avançada para um momento no qual não será capaz de se lembrar de mais ninguém ao seu redor. Os primeiros raios de sol da manhã adentram pela janela. A voz inicialmente embargada de Gonzalez vai se encorpando diante dos olhares incrédulos e atentos do resto da família. O dedilhado luxuoso torna-se mais confiante. Os dedos de Inês de movem, os olhos fecham e abrem, o balbuciar dos lábios transforma-se em acompanhamento: os dois cantam juntos.

Ao fim, os closes capturam as expressões felizes no rosto jovial e limpo da criança e na face repleta de rugas e marcas de vida da idosa. Os Rivera reencontram-se com o seu passado outrora esquecido. Um ano depois veremos a música de volta ao núcleo familiar dos sapateiros – e vivos e mortos celebrando. E a lição que Viva: A Vida é Uma Festa deixa é uma celebração da vida: somos a soma de todos os nossos ancestrais, de suas experiências e escolhas. Se esquecemos deles, se permitimos que a morte nos roube suas lembranças, terminamos por esquecer de nós mesmos. Festejemos a vida. Sempre. Mesmo a vida daqueles que já não vivem mais entre nós.

“Lembre de mim
Sempre que ouvir
O som triste do violão
Saiba que estarei com você
Do jeito que posso estar
Até que esteja
Em meus braços novamente
Lembre de mim.”

Viva: A Vida é Uma Festa (Coco) – EUA, 2017, cor, 105 minutos.
Direção: Adrian Molina e Lee Unkrich. Roteiro: Adrian Molina e Matthew Aldrich. Música: Michael Giacchino. Cinematografia: Matt Aspbury e Danielle Feinberg. Edição: Steve Bloom e Lee Unkrich. Elenco: Anthony Gonzalez, Gael Garcia Bernal, Benjamin Bratt, Alanna Ubach, Renée Victor, Ana Ofelia Murguía, Edward James Olmos.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.