O CONTO PERDIDO
Capítulo 1 – O Velho Turner


As velas queimavam rodeadas por pequenas e insignificantes brasas, seu tronco de cera derretia lentamente enquanto o fogo se aproximava, ardendo o barbante em seu interior vagarosamente. Um velho e experiente homem, já cansado de aventuras, repousava em sua poltrona antiga e aconchegante, feita de madeira e estofado barato. Observava pela janela embaçada, de poucas e pequenas repartições, o grandioso oceano pelo qual um dia já velejou, explorando-o de cabo a rabo, durante muitos e muitos anos. Em sua vasta memória, agora um pouco enferrujada e, assim como seu corpo, envelhecida, remoía ótimas e inesquecíveis lembranças de seu glorioso passado, onde suas perigosas e desafiadoras aventuras o levaram aos mais variados lugares dos sete mares, fazendo-o conhecer todo o tipo de gente e espécie.
ㅤㅤNas temorosas águas do mar foi onde seu pai desapareceu, e em suas inóspitas e perigosas ondas ele foi novamente encontrado; ao encontro das finas e incômodas areias com as leves correntes marítimas, o velho homem, em sua juventude, pediu a mão de sua amada em casamento, e, no mesmo etimológico lugar seu coração foi arrancado. Mas, diferente de tudo e de todos, aquele homem não pereceu e cessou sua vida; pelo contrário, ganhou a chance de viver novamente, como um pagão, entretanto. Por dez anos velejou como um capitão imponente, por dez longos anos apresentou-se como o comandante do mais temido navio de todo o mundo, por dez malditos anos se distanciou daquilo que mais amava, sua mulher e seu pequeno filho, para dar lugar a segunda coisa que mais lhe fazia valorizar a vida.
ㅤㅤEmbora tenha sido um amedrontador capitão, o jovem nunca foi capaz de fazer um mal sequer a ninguém, dentre os homens e criaturas horrendas que permeavam esse mundo — muitas delas, parte de sua tripulação. Mas a maldição que carregava fazia muitos emasculados molharem as calças, mulheres correrem sem rumo e crianças ficarem traumatizadas. Hoje, fisicamente, estava velho; velho demais para cumprir missões, chamados ou colocar medo em algum ser vivo. Hoje, estava velho demais para entrar em um navio e velejar desprovido de uma orientação novamente.
ㅤㅤAo som de curtos e apressados passos, ele ouviu seus pequenos netos adentrarem o cômodo em que estava. O menino e a menina, que partilhavam teu mesmo sangue, chegaram sem pedir permissão ou licença; assim como foi um dia, eram teimosos e curiosos, possuíam olhos glaucos, respirações ofegantes e uma mente repleta de contos fantásticos. Eram, assim como ele, loucos pelo mar, por velejar, e, um dia, queriam ser iguais ao vovô, possuindo sua própria tripulação, que os conduziriam a cruzar os sete mares. Seriam, como ele um dia foi, um pirata.
ㅤㅤAs crianças portavam vestimentas antigas, típicas daquela época histórica. Usavam chapéus maiores que suas cabeças e sapatos perfeita e milimetricamente bem-acabados. Ainda ofegavam, o garoto colocava suas duas mãos apoiadas sobre os joelhos, e ambos tentavam reter o mínimo de oxigênio em seus pulmões. Mas a curiosidade, ah, ela era maior do que qualquer necessidade física naquele momento.
ㅤㅤ— Vovô, vovô… —  bradou Johnny, com um ar de inocência e inquietude. — É verdade o que o papai nos contou?
ㅤㅤ— Bem, meu pequeno, isso depende. O que foi que ele lhes contou? — Perguntou o velho homem, intrigado.
ㅤㅤ— Ele disse… — Ariel começou, com sua voz fina e fofa, ao lado do irmão, finalizando o que seu ofegante parceiro queria saber. — Disse que o senhor já velejou com Jack Sparrow.
ㅤㅤO longevo homem sorriu. Indagava-se o porquê do tamanho da curiosidade de seus netos e o endeusamento de uma figura tão patética e desprezível quanto a de seu vetusto amigo. Amigo… depois de tudo essa palavra simbolizava com perfeição a relação que aquele homem possuía com o antigo pirata. Não o via há anos, mas aquele nome tinha muita relevância em suas memórias e, querendo ou não, havia sido uma figura muito importante em sua vida.
ㅤㅤ— Sparrow? — o idoso disse, mostrando os dentes — Sim, velejamos juntos. O conheci há muito, muito tempo. Fomos companheiros de inúmeras batalhas em seguida — ele olhou novamente entre os pequenos vidros da janela, fitando o oceano. — Um estranho homem. Miserável, patife, ordinário… mas com um grande coração.
ㅤㅤ— Eu pensei que ele fosse uma lenda, vovô. — Voltou a expressar Johnny, com seus pulmões já recuperados.
ㅤㅤ— Uma lenda? — o provecto individuo pronunciou, relembrando alguns de seus momentos. — Sim, acho que podemos chamá-lo dessa maneira.
ㅤㅤ— Pode nos contar uma de suas histórias? — Ariel deixou escapar, e olhou fixamente para o irmão, procurando seu aval. O garoto sorriu de orelha à orelha e virou todas as suas atenções para seu avô, adorando a ideia de sua irmã.
ㅤㅤ— Por favor, vovô! Nos conte uma de suas histórias!
ㅤㅤO velho observou aqueles quatro olhos arregalados, quieto e calado, enquanto mais passos se aproximavam. Um majestoso homem, de porte corporal elevado, apareceu com sua silhueta no buraco da porta, colocando um de seus braços sobre o vão. Sorria como uma criança, embora há anos não tivesse a idade de uma. Apreciava aquela situação, assim como seus filhos, sorrindo.
ㅤㅤ— Henry, eles estão querendo saber sobre Jack Sparrow — riu, animado. — Olha só o que você acaba de fazer.
ㅤㅤ— Ah, pai, eles estão completamente loucos para conhecer a história de vocês juntos — Henry desfrutava-se do contexto, empolgado — De como ele o ajudou a ficar com a mamãe, de como se tornou o capitão do Holandês Voador… — continuou, cruzando as pernas. — Acho que até eu vou querer ouvi-las novamente.
ㅤㅤO velho e quase centenário Turner novamente deixou seus dentes à mostra, quando pediu a seus jovens netos se sentarem ao chão para que começasse a narrar o longo conto. Henry acompanhou os filhos instantaneamente e acomodou-se no gélido solo com rapidez, sem pensar duas vezes, também virando todas as suas atenções para a narrativa que estava prestes a iniciar. Enquanto seu macróbio progenitor contava suas histórias, observava e lembrava delas com emoção e nostalgia, visto que, além de também ouvi-las na adolescência, similarmente guardava recordações do companheirismo do velho Sparrow em alguns de seus feitos. ㅤㅤLogo, todos ali conheceriam o que aconteceu com o antigo pirata, do inicio ao final da parceria do virtuoso ladrão dos mares com a família Turner, e poderiam após tudo isso, infelizmente, conhecer sua história final e despedir-se de sua marcante figura. Assim começou o conto onde suas vidas cruzaram com a de Anne Bonny e sua laia.

2

48 anos atrás.

ㅤㅤAs marés eram altas e fortes, ribombavam o gigantesco e imponente navio com uma extrema facilidade, enquanto o céu se fechava aos poucos, apontando para o início de uma temorosa tempestade. A corpulenta tripulação ia de encontro aos cantos do navio, impulsionados pelos tremores providos pelo furioso oceano. Inquietos se encontravam, balançando com a corrente de um lado para outro, se segurando onde era possível.
ㅤㅤNão demorou muito para que as minúsculas partículas de água começassem a cair do céu negro e desintegrar-se quando encontravam a madeira envelhecida daquele majestoso barco. Sem que a tripulação tivesse tempo ao menos para se preparar, as gotículas logo se enrijeceram, aumentaram seu diâmetro e ficaram mais pesadas, caindo depressa e possuindo pouco espaço separando uma das outras. Os trovões ensurdeciam os marinheiros e os clarões dos relâmpagos praticamente os cegava. Se alguém visse aqueles pobres homens de fora do navio, não poderiam ouvir seus gritos de pavor e pedidos de socorro, já que a altura de suas vozes não eram comparadas aos estrondos vindos do celeste de nuvens carregadas.
ㅤㅤ— CAPITÃO! — um dos velejantes gritou, desesperado, sem saber o que fazer — CAPITÃO ROBERTS! — Seus olhos estavam inchados, e as lágrias que escorriam pelo rosto eram misturadas com a a saliva provida pela numerosa tempestade.
ㅤㅤO capitão não respondeu, nem ao menos pareceu interessado em atender o chamado de um de seus homens. Em sua cabine estava, com as mãos tampando os ouvidos, rezando para que tudo aquilo terminasse logo. ㅤㅤSe encontrava, como todos ali presentes no navio, tomado pelo medo. A tripulação do Capitão Roberts sempre admirou sua coragem e bravura, porém, perceberam naquele momento que nunca havia sido digno de tais méritos. Era, assim como os virtuosos soldados britânicos, um frouxo desprezível. O comandante fechava os olhos enquanto pedia a Deus por piedade e salvação, mesmo que soubesse da inutilidade de suas orações naquele momento. Era um pirata perverso, embora sempre tivesse poupado algumas vidas quando encontrava aquilo que buscava: seus tesouros abundantes, de riquezas imensuráveis. Saqueador nato, nas contas mais simples, responsável por arrebatar mais de quatrocentos navios; um registro grandioso, para um imponente ladrão dos mares.
ㅤㅤ— Ele não vai nos ajudar — respondeu ao homem um dos tripulantes, com seu grande chapéu cobrindo sua face, e um longo cabelo castanho preso. — É um covarde.
ㅤㅤO tripulante, autor da resposta, esbanjava uma doçura em suas palavras. Sua voz era fina, e seu esforço em engrossá-la era consideravelmente admirável. Abaixo de suas vestes, usava uma cinta em seus seios, para que fossem apertados junto ao tórax e desaparecessem aos olhos dos desatentos. Tuas delicadas mãos, um pouco sujas, apertavam um dos cantos do corrimão da escada, e junto à sua cintura, já havia lhe amarrado uma corda, para proteção. Anny Bonny. Estava ali, naquele navio, em busca de um lar. Era uma intrusa disfarçada, acometida pelo maior mal dos oceanos naquela época: a pirataria.
ㅤㅤ— Acho melhor fazer o que todos estão fazendo nesse momento, marujo — deixou escapar, com sua mão livre segurando seu chapéu para não voar, devido aos fortes ventos da tempestade. — Reze. Reze antes que seja tarde demais.
ㅤㅤEm meio à pancada d’água, a inerência das palavras de cada um daqueles homens se destacava. Muitos ali não possuíam fé, mas estavam temerosos demais para desacreditar em algo naquele momento importuno. Então, quase que como uma grandiosa missa em pleno mar, os marinheiros bradavam pedindo pela ajuda de Deus, enquanto, lá do céu, sua resposta não fosse nada agradável. A tempestade parecia aumentar a cada segundo perdido, e o mar, liderado pela furiosa Calypso, seguia os passos da personalidade de sua governanta, e mais impiedoso se tornava. Talvez fosse um desejo dos deuses que todos aqueles homens perecessem naquela noite, ou, quem sabe, fosse apenas um momento desgraçado em suas pobres vidas.
ㅤㅤ— Alto lá, homens! — vociferou Bonny, quando o céu foi novamente iluminado por um grande relâmpago. — Vamos tomar essa droga de navio!
ㅤㅤOlhares inquietos refletiam sobre suas vestes, quando seu chapéu ela retirou, e posteriormente seu cabelo liberto foi. Teus fios longos e castanhos foram instantaneamente molhados pelo choro das nuvens, embora estivessem sendo movimentados pelas violentas correntes de ar. Sacou em uma das mãos sua pistola perigosa, totalmente carregada.
ㅤㅤ— Uma mulher? — proferiu o marujo ao lado. — Você… é… uma mulher?
ㅤㅤEla o fitou por poucos segundos, sem, até aquele dia, entender o preconceito que tantos tinham com a relação do sexo feminino e o mar. Não o respondeu, virando suas atenções para o restante dos homens presentes no grandioso barco.
ㅤㅤ— Chega de subordinações ou não-benevolências daquele salafrário! — apontou a pistola em direção à porta da cabine do Capitão. — VAMOS TOMAR ESSA DROGA DE NAVIO! AGORA!
ㅤㅤ— MOTIM! — Dois dos homens bradaram, posteriormente emitindo gritos indecifráveis pela boca.
ㅤㅤOs senhores que ainda possuíam força nos braços retiraram suas longas armas brancas da cintura e as ergueram rumo ao céu. Ainda gritavam como loucos, e arriscariam seus supostos últimos instantes de vida para se vingar do egoísta Capitão. Repousando, até agora, quieto e calado, em seu longínquo dormitório, capaz de abrigar a todos da tempestade.
ㅤㅤ— MOTIM! — Anne Bonny expressou, também levantando sua espada ao céu com a outra mão.
ㅤㅤNo caminho à cabine, vários homens foram jogados ao mar devido aos abalos contantes do navio. Mas muitos deles conseguiram chegar a seu destino. A maioria se vingaria do individualismo de seu comandante, liderados pela cruel guerreira dos oceanos. Os marujos arrombaram a porta do estábulo, e adentraram sem que o Capitão Roberts suspeitasse de seus comportamentos — ainda tampava seus ouvidos, com medo, parecendo uma criança. Anne Bonny liderava os enfurecidos velejantes, e foi a primeira a avistar o covarde homem espremido em um dos quatro cantos do cômodo.
ㅤㅤSeu olhar refletia sua índole, enquanto as tristes e meticulosas vistas do do líder a fitavam pedindo o que pedia a Deus desde que o mar se enervou com seu navio: piedade. Para a surpresa do Capitão, aquela palavra não existia no vocabulário da impiedosa mulher.
ㅤㅤ— Paróla. — Ele suplicou, com suas últimas esperanças.
ㅤㅤEla apontou a arma em direção à sua cabeça. Seu cano era alongado e largo, sua munição era arredondada e pesada. O caminho que o chumbo percorreria cravava aquela mesma súplica do comandante. “Paróla”, em seu cano a mulher havia cravado, há muito tempo, para realizar o desejo de todas as pessoas que proferissem aquela palavra.
ㅤㅤ— Como quiser.
ㅤㅤPuxou o gatilho, desabastecida de toda e qualquer emoção. De longe, todos puderam perceber que aquela brava mulher poderia ser qualquer coisa, menos piedosa. A cabeça do Capitão se despedaçou em instantes, e o chão de madeira logo foi banhado por sua seiva avermelhada, que escorreu, segundos depois, para a porta, até que pudesse ser misturada com a água da chuva.
ㅤㅤ— O Princesa de Londres agora é nosso! — bradou, sem remoer ou se arrepender de seu feito, encarando o falecido e desfigurado homem ao chão.
ㅤㅤA chuva começou a diminuir instantes depois. Cessaria nos poucos minutos seguintes, fazendo aqueles marujos terem acesso à calmaria e benevolência dos deuses. Mas o que havia acontecido naquela noite não poderia ser desfeito. Até os mais incompreensíveis marinheiros daquele navio se renderam à bravura e liderança daquela mulher. Os preconceituosos se ajoelharam perante sua figura, e todos os demais ao menos retiraram seus chapéus imundos e os colocaram no peito. O nomearam capitã. Capitã Anne Bonny. A cruel homicida, pirata perversa, e agora comandante do Princesa de Londres.
ㅤㅤ— Você — apontou para o homem que clamou pela primeira vez pela ajuda do Capitão Roberts — Almirante. — Disse, recebendo como agrado um grande sorriso de satisfação do sujeito.
ㅤㅤTodos ali esboçaram um leve sorriso também, incluindo os mais invejosos.
ㅤㅤ— Estão esperando o que, seus vermes imundos? — manifestou Bonny, de repente. — Tracem a porra do curso para Tortuga!

Continua…


Inspirado nos personagens da Walt Disney Pictures.
Piratas do Caribe foi concebido por Gore Verbinski, Terry Rossio e Ted Elliott.

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Sobre o Autor

Apaixonado por quadrinhos, cinema e literatura. Estudante de Matemática e autor nas horas vagas. Posso também ser considerado como um antigo explorador espacial, portador do Jipe intergaláctico que fez o Percurso de Kessel em menos de 11 parsecs — chupa, Han Solo!