A escritora inglesa Agatha Christie (1890-1976) iniciou a sua carreira literária em 1921, com O misterioso caso de Styles, e escreveu mais de 80 romances até a sua morte. A “Rainha do Crime” é indiscutivelmente a maior escritora de romance policial que a literatura mundial já produziu e Assassinato no Expresso do Oriente (confira a crítica do livro), publicado pela primeira vez em 1934, é a sua magnum opus, tendo sido uma obra que revolucionou o romance policial com seu enredo que parte de uma premissa simples, nos moldes de um subgênero clássico, o “mistério do quarto fechado”, quando um crime ocorre em um local isolado e todos os presentes tornam-se suspeitos, mas que encerra-se com um desfecho subversivo, absolutamente inesperado e inovador.

Sendo até hoje uma das obras mais famosas da popularíssima escritora, que no mundo inteiro só não teve mais livros vendidos do que a Bíblia e William Shakespeare, e amplamente considerado o maior caso investigado pelo meticuloso Hercule Poirot, o livro foi adaptado diversas vezes para outras mídias – o extraordinário filme de 1974, dirigido por Sidney Lumet e estrelado por Albert Finney e grande elenco, um estrondoso sucesso de público e crítica, é a mais famosa de todas as suas versões. Em 2013, a 20th Century Fox resolveu tirar a poeira de quase 40 anos desde a última adaptação cinematográfica de Assassinato no Expresso do Oriente e contratou Kenneth Branagh para dirigir e protagonizar uma nova versão do livro. E o trabalho do britânico é um acerto em todos os sentidos.

A premissa é famosa e relativamente simples: um terrível assassinato acontece à bordo de um vagão do famoso Expresso do Oriente, que conectava a Turquia e a França, enquanto a composição estava presa na neve, em algum ponto do Leste Europeu. Só que o mundialmente reconhecido detetive belga Hercule Poirot (Kenneth Branagh) viajava às pressas no mesmo trem. Atendendo ao pedido do seu amigo Bouc (Tom Bateman), diretor da Companhia Internacional de Wagons-Lits, responsável pela composição, Poirot aceita o caso, ouvindo testemunhas e tentando solucionar o misterioso crime através de suas extraordinárias habilidades dedutivas.

O roteiro de Michael Green toma algumas liberdades em relação ao livro de Agatha Christie. Apresenta um Bouc mais jovem (um bon vivant que vive entre prostitutas, enviado pelo pai pra cuidar da Wagons-Lits), altera etnias e profissões (o coronel Arbuthnot se torna um médico negro), suprime um personagem (o médico Constantino) e muda uma nacionalidade (a missionária sueca Greta Ohlsson transforma-se na espanhola Pilar Estravados). Por mais que não altere a essência da famosa trama do livro e de sua conclusão surpreendente, a narrativa se permite algumas surpresas e novidades para quem conhece a obra de uma ponta à outra. Que a conclusão do mistério já seja do conhecimento de muitos espectadores, mas a qualidade da obra compensa a inexistência da surpresa, e acompanhamos com muito gosto as pistas falsas deixadas pelo caminho e as deduções de Hercule Poirot.

A nova versão de Assassinato no Expresso do Oriente mira o clássico de 1974 na hora de montar o elenco, recheando o seu casting com astros e estrelas de Hollywood. Não alcança o mesmo nível do filme dirigido por Sidney Lumet, mas consegue formar um elenco com uma quantidade incrível de grandes atores que poucas vezes se vê no cinema. Além do próprio diretor no papel de Hercule Poirot, atores e atrizes consagrados e premiados (Willem Dafoe, Michelle Pfeiffer, Johnny Depp, Judi Dench e Penélope Cruz) juntam-se a experientes atores britânicos de teatro e TV (Olivia Colman, Lucy Boynton e Derek Jacobi), astros da Broadway (Josh Gad e Leslie Odom Jr), uma jovem atriz em ascensão (Daisy Ridley), enquanto outros competentes atores (Tom Bateman, Manuel Garcia-Rulfo, Marwan Kenzari e Sergei Polunin) complementam uma excelente escalação.

São muitos personagens para serem apresentados em pouco tempo, mas a caracterização de todos eles, que já é incrível no livro, permanece com igual qualidade no filme. Uns possuem mais tempo de tela que outros, mas cada ator dá conta do recado na hora de apresentar o seu personagem na trama que vai sendo tecida. Verdades inconvenientes sobre cada um deles começam a ser reveladas pouco a pouco, conforme a lábia arguta de Poirot vai forçando deslizes nas mentiras e omissões dos seu discursos. O comerciante de antiguidades Edward Ratchett (um excelente Johnny Depp) era um homem da pior espécie, mas é preciso descobrir quem o assassinou. Entre os potenciais criminosos, pessoas das mais diferentes classes e nacionalidades: os funcionários de Ratchett, seu secretário (Josh Gad) e seu mordomo (Derek Jacobi); a viúva americana (uma hipnótica Michelle Pfeiffer), a missionária religiosa (Penélope Cruz) ou a idosa princesa russa (Judi Dench) e sua assistente (Olivia Colman); a jovem governanta inglesa (Daisy Ridley) e o médico negro (Leslie Odom Jr.), que aparentam se conhecer muito melhor do que admitem; o conde e a condessa (Sergei Polunin e Lucy Boynton), o professor austríaco adepto de teses racistas (Willem Dafoe) e o italiano vendedor de automóveis (Manuel Garcia-Rulfo). Todos, sem exceção, são suspeitos e criminosos em potencial para Hercule Poirot.

A direção de Kenneth Branagh é inspirada e extremamente competente, auxiliada por extraordinárias locações europeias, que são fotografadas com muita beleza e tonalidades sépias por Haris Zambarloukos, e pela soberba direção de arte de Dominic Masters, que reconstrói os vagões da Wagons-Lits e a estação de Constantinopla (Istambul) dos anos 1930. Belíssimos flashbacks em preto e branco ilustram o caso Armstrong e as lembranças da noite em que Ratchett foi morto e do crime em si. Um inventivo traveling expõe toda a opulência da estação turca, enquanto acompanha a jornada de Poirot pelo trem até conseguir chegar na sua cabine de número três, com Branagh posicionando sua câmera por fora do vagão. A atmosfera claustrofóbica do crime em ambiente fechado é contornada com o aproveitamento dos cenários nevados, ao redor e abaixo de onde o trem descarrilou. Quando a morte do inescrupuloso Ratchett é descoberta por Poirot, Bouc, Masterman e Arbuthnot, sua câmera se encontra localizada no teto da cabine, como se apresentasse um corte em uma planta baixa. Em outro momento, quando o detetive belga anuncia o assassinato aos doze passageiros reunidos no vagão-restaurante, sua câmera vai se aproximando lentamente de cada um dos suspeitos; depois, movimenta-se de um lado para o outro, posicionando-se por trás dos vidros do ambiente e multiplicando as figuras dos personagens, como a indicar a duplicidade de seus discursos, sempre eivados de mentiras e omissões que tentam ludibriar o famoso detetive.

Hercule Poirot, um dos personagens que mais recebeu interpretações diferentes no cinema, teatro e TV, recebe uma de suas melhores encarnações nas mãos de Kenneth Branagh. O britânico não é baixinho, não é gordinho, nem tem a cabeça ovalada, características físicas clássicas da imortal criação de Agatha Christie, mas nada disso o impede de submergir naquilo que faz o personagem tão fascinante e interessante: sua personalidade. Uma prévia em Jerusalém, na qual o detetive soluciona um caso de roubo de uma relíquia sagrada envolvendo um padre, um rabino, um imã e um inspetor de polícia, estabelece toda a aura de “ordem e método” que cerca Poirot, que ultrapassa os limites da obsessão com sua busca incessante por perfeccionismo e simetria, seja nos dois ovos cozidos que come no café da manhã, no modo como os talheres são dispostos na mesa ou no alinhamento das gravatas das pessoas que o rodeiam.

Além disso, Kenneth Branagh acrescenta toques de fisicalidade em Poirot – ele corre, toma tiro, entra em combate corporal e participa de perseguições, coisas impensáveis para o belga nos livros, sempre muito bem instalado em poltronas, enquanto coloca suas pequenas células cinzentas em funcionamento –,  e também um elemento romântico, na foto de sua amada Katherine que ele vislumbra com suavidade e sofrimento todas as noites antes de dormir, e uma boa dose de filosofia de mundo, de equilíbrio entre certo e errado diante das manifestações de violência e ódio (anomalias que devem ser corrigidas), que dialoga diretamente com as reações que todos irão ter diante da surpreendente resolução do quebra-cabeças que é o crime cometido no trem, em uma fantástica cena que referencia A Última Ceia, de Leonardo da Vinci.

Mais do que a história do em si, é a figura de Hercule Poirot que constitui a alma e o coração de Assassinato no Expresso do Oriente, com sua inteligência fora do normal e o seu inefável poder de observação. O grande acerto de Kenneth Branagh é compreender esse ponto, atualizando o famoso detetive belga para as gerações atuais, sem, entretanto, modernizá-lo em demasia ou mesmo descaraterizá-lo. Ah, e o bigode, o imenso e ridículo bigode, reconhecível a milhas de distância, é o melhor e maior que já fizeram para Hercule Poirot em live-action, possivelmente alcançando o mesmo grau de excentricidade com que Agatha Chrsitie o imaginou pela primeira vez em 1921.

Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express) – EUA, cor, 114 minutos.
Direção: Kenneth Branagh. Roteiro: Michael Green. Música: Patrick Doyle. Cinematografia: Haris Zambarloukos. Edição: Mick Audsley. Elenco: Kenneth Branagh, Tom Bateman, Daisy Ridley, Olivia Colman, Penélope Cruz, Willem Dafoe, Judi Dench, Michelle Pfeiffer, Johnny Depp, Josh Gad, Manuel Garcia-Rulfo, Derek Jacobi, Marwan Kenzari, Leslie Odom Jr., Sergei Polunin e Lucy Boynton.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.