Para quem atravessou a infância e a adolescência nos anos 1970, 1980 ou 1990 (tendo especialmente a cultura produzida nos anos 1980 como vértice de uma dessas fases), assistir Stranger Things é como entrar em um DeLorean e voltar a esse período da vida que é, ao mesmo tempo, tão fugaz e marcante – a satisfação que tais sentimentos recordatórios nos trazem é explorada ao máximo aqui. Nostalgia é a palavra-chave da série estrelada por Winona Ryder, que mistura inúmeros gêneros (aventura, suspense, terror… tudo embalado por uma atmosfera de filme de verão), absorve diversas referências estilísticas e culturais e converteu-se instantaneamente em um fenômeno de público assim que foi lançada.

Muito desse sucesso, sem dúvida, deve-se a esse mundo oitentista que a série revive em seus mais ínfimos detalhes. Uma época tão próxima da nossa, mas que parece um período já distante no tempo, muito por causa dos avanços tecnológicos que vivenciamos nos últimos 10 anos. O mundo que os irmãos Duffer trazem à tona na série de 8 episódios é habitado por crianças que brincam nos porões de suas casas e nas árvores, e saem às ruas com suas bicicletas sem que seus pais tenham um surto de preocupação por suas vidas.

Não há celulares nem redes sociais: nada que possa dizer a todos os outros, em questão de segundos, em que lugar você está ou o que você está fazendo. A conectividade do mundo moderno é ainda uma utopia. Há uma sensação maior de liberdade, e a impressão de que o mundo é muito maior do que ele realmente é – e por isso mesmo, todas as sombras e perigos que a envolvente história escrita pelos dois irmãos gêmeos lança sobre esses personagens efetivamente parecem mais urgentes. Se você está sozinho na floresta, você realmente está sozinho na floresta. Se você está distante de todos os seus amigos, você realmente está por sua conta e ninguém escutará os seus gritos e chamados.

O ano é 1983. O local é Hawkins, uma típica cidadezinha dos EUA. O franzino Will Byers (Noah Schnapp) desaparece à noite quando voltava de bicicleta para casa após mais uma partida de Dungeons and Dragons com seus inseparáveis amigos: o líder do grupo, Mike (Finn Wolfhard), o cético Lucas (Caleb McLaughlin) e o engraçadíssimo (e banguela) Dustin (Gaten Matarazzo). Joyce Byers (Winona Ryder), mãe de Will, se desespera, mas em nenhum momento desiste de encontrar o filho. Acredita piamente que ele ainda está vivo e tentando se comunicar através das lâmpadas de casa – e todos da cidade pensam que ela está louca.

O melancólico xerife Hopper (David Harbour) logo é tirado da inércia do seu monótono trabalho cotidiano por causa da convicção extrema de Joyce e das pistas que começam lentamente a surgir, envolvendo o Departamento de Energia da cidade. Outra linha narrativa é formada pelo triângulo amoroso dos adolescentes. A estudiosa e certinha Nancy (Natalia Dyer), irmã mais velha de Mike, nem parece desconfiar que é o troféu que o galã e galinha Steve (Joe Keery) exibe em apostas com os amigos. Mas a jovem também tem uma certa atração por Jonathan (Charlie Heaton), o caipira sem amigos, alvo de bullie constante e irmão do desaparecido Will.

Enquanto todas essas coisas acontecem, uma misteriosa menina de cabelos raspados (Millie Bobby Brown) e poderes telecinéticos foge de um laboratório de pesquisas comandado pelo Dr. Brenner (Matthew Modine). O destino da garota chamada Eleven se entrelaça de modo indelével com o dos garotos, que, melhores amigos que são, daqueles que nunca abandonam uns aos outros, colocam em suas cabeças um senso de heroísmo poderoso e seguem como missão primordial encontrar o amigo desaparecido. Imediatamente, antes de todo mundo, percebem que algo de fantástico, sobrenatural e além da imaginação humana envolve o destino de Will, e também o da cidade inteira – e por mais que sejam ameaças impossíveis de serem confrontadas por três pré-adolescentes, como o Demogorgon que salta diretamente das páginas de Dungeons and Dragons, sabemos que eles irão enfrentá-las (e vencê-las), custe o que custar.

Reviver lembranças de outras épocas é uma espécie de arremate certeiro na relação estabelecida atualmente entre um produto de entretenimento e o seu público-alvo, mas nada seria tão bem-sucedido se não houvesse qualidade técnica a ser oferecida e um coração pulsante pronto a conquistar o espectador. E Stranger Things tem tudo isso. A direção criativa dos gêmeos é competente e o roteiro é cuidadoso, construído em cima de muitos mistérios, ganchos e amarras, que entrelaçam inúmeras linhas narrativas atrativas (a mãe em busca do filho, o xerife desvendando uma conspiração governamental e o grupo de crianças vivendo o verão mais inesquecível de suas vidas) em uma única “missão final”. A trilha incidental com sintetizadores é incrível, e as referências aos filmes de Steven Spielberg (particularmente E.T. – O Extraterrestre) e John Carpenter, às obras de Stephen King (especialmente Conta Comigo), às histórias em quadrinhos dos X-Men e a inúmeros outros produtos do cinema e da TV dos anos 1980, que os irmãos Duffer viram e reviram dezenas (ou centenas) de vezes, constituem uma estrutura de qualidade que serve de sustentáculo para a série.

O elenco é um dos pontos fortes, com Winona Ryder e David Harbour ótimos em seus papéis, mas o destaque absoluto é das crianças, que atuam muito bem. Apenas a primeira cena, durante uma partida de RPG de mesa, é suficiente para que possamos comprar a amizade daqueles quatro garotos – cujo grupo logo receberá o acréscimo da excelente Millie Bobby Brown. A química entre eles é evidente, e do primeiro episódio ao último iremos torcer com força para que eles resgatem o amigo desaparecido no Mundo Invertido e derrotem os bullies do colégio (a cena do penhasco é fantástica), mas também iremos rir (e muito! As interações entre as crianças são hilárias), nos arrepiar e nos emocionar com a inocência infantil que evidencia a todo instante a força inquebrantável da amizade que os une.

Stranger Things investe pesado na clássica história infantil sem supervisão de adultos, resgatando um tipo de infância que parece perdida no tempo, oferecendo ao espectador, do mesmo modo que a sua base oitentista oferecia, o privilégio de adentrar o expansivo universo de uma aventura lúdica e cativante que conquista com uma atmosfera retrô, uma mistura de estilos, um elenco infantil absurdamente carismático e um mistério que se desenrola com paciência, como uma linha em um novelo, sem entretanto nunca revelar-se por completo – teremos que acompanhar as próximas temporadas para descobrirmos a totalidade sobre os mistérios que envolvem o Mundo Invertido e seus monstros e as experiências com a Eleven.

Stranger Things (Stranger Things) – EUA, 2016, cor, 8 episódios, aproximadamente 403 minutos.
Showrunners: Matt Duffer e Ross Duffer (os irmãos Duffer). Direção: Irmãos Duffer (1-2, 5-8) e Shawn Levy (3-4). Roteiro: Irmãos Duffer (1-2, 8), Justin Doble (4, 7), Jessica Mecklenburg (3), Alison Tatlock (5), Jessie Nickson-Lopez (6). Elenco: Winona Ryder, David Harbour, Finn Wolfhard, Millie Bobby Brown, Gaten Matarazzo, Caleb McLaughlin, Noah Schnap, Natalia Dyer, Charlie Heaton, Joe Keery e Matthew Modine.
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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.