Enquanto os créditos passam na tela e começamos a escutar o sublime tema “The Call of the Far-Away Hills“ de Victor Young, a câmera vai acompanhando um solitário cavaleiro que desce a cordilheira Teton, em Wyoming, até atingir a vastidão das imensas pradarias do vale que descansa aos seus pés. Surge então em cena um pequeno rancho, casebre à frente, cercas, pequenas plantações e animais. Um cervo bebe água calmamente no leito de um riacho, e ao fundo, as espetaculares Montanhas Rochosas, banhadas por nuvens, com seus picos cobertos de neve contrastando com a vegetação abundante do seu sopé, emolduram um cenário de extraordinária beleza. Um menino de não mais que dez anos de idade saltita cuidadosamente sobre a água, escondendo-se atrás de arbustos para mirar o seu rifle sem balas na direção do cervo. Na cena seguinte, o cervo está em primeiro plano, e ao fundo surge a figura solitária do início – o relinche do cavalo atiça a audição do cervo que levanta a cabeça em sinal de alerta. Os olhos fixos do garoto acompanham a trajetória do homem, e ele corre para avisar seu pai, que está cortando lenha no quintal, enquanto sua mãe cantarola dentro da casa.

Essa é a espetacular abertura de Os Brutos Também Amam (pavorosa tradução de Shane para o português). A narrativa inicia-se através dos olhos infantis e curiosos do pequeno Joey (Brandon De Wilde), colocado por George Stevens como se fosse um espectador dentro do filme, e também é a partir deles que a relação do misterioso pistoleiro com aquela comunidade irá revelar-se e encerrar-se: Joey é o primeiro a vê-lo; será também o último.

O cavaleiro solitário

Em 20 de maio de 1862, Abraham Lincoln aprovou a primeira das inúmeras leis da propriedade rural (em inglês, Homestead Acts). O primeiro dos atos abriu milhões de acres de terras públicas no território de Oregon (que daria origem aos estados modernos de Washington, Oregon, Idaho e Wyoming) para agricultores independentes que reivindicassem legalmente um pedaço de terra, comprometendo-se a residir no lugar durante um período de cinco anos, ao término do qual deveriam mostrar evidências de progresso para que assim fossem eleitos os donos definitivos.

Em cima de bases históricas reais, o roteiro de A.B. Guthrie Jr. (o décimo-sétimo a chegar nas mãos de George Stevens! Todos os anteriores foram rejeitados pelo diretor), uma adaptação de um romance de 1949, escrito por Jack Schaefer, estabelece a linha principal da narrativa de Os Brutos Também Amam, repleta de diálogos fortes e marcantes. Um isolado vale de Wyoming é escassamente povoado por pequenas famílias de agricultores, que sonham em estabelecer suas raízes naquela região, ampliando aos poucos suas casas e seus ranchos, enquanto auxiliam-se mutuamente. Isso contraria os interesses de Rufus Ryker (Emile Meyer), um implacável barão de gado que anteriormente tinha o vale inteiro em suas mãos para os seus negócios.

É nesse ambiente que Shane (Alan Ladd) surge. Nada sabemos sobre o misterioso homem a não ser o seu nome. Quando Joey engatilha o rifle sem balas, o movimento de Shane, arisco e extremamente veloz no saque, indica para o espectador tratar-se de um pistoleiro experiente. A narrativa não vai além disso. Shane está seguindo para o norte (“A nenhum lugar em especial. A um lugar onde nunca estive.“), fugindo do seu próprio passado obscuro, ansiando encontrar um lugar onde ninguém o conheça. O roteiro omite completamente qualquer tipo de informação sobre a vida pregressa do personagem. Shane não é uma pessoa. Shane é um arquétipo. Do mítico pistoleiro do Velho Oeste cinematográfico. Shane é valente, leal, justo e generoso. Ao mesmo tempo é uma figura solitária e triste – errante;  um homem de princípios, de caráter, estoico e bondoso. Quando Ryker e seu bando se aproximam das terras dos Starretts, Joe Starrett (Van Heflin) manda-o embora, acreditando que Shane estava com eles. Ele vai – mas não vai. Fica à espreita, observando. Intervém na conversa. Coloca-se como amigo de Joe e afugenta o bando. Marian (Jean Arthur) pede a Joe que convide-o para o jantar. Ele fica. Passa uma noite. Torna-se um contratado de Joe para auxiliar o trabalho no rancho, conquista o carinho da família. Ganha ainda mais a admiração do pequeno Joey.

Esse contato com os agricultores fará com que Shane decida mudar de vida. Sua arma será deixada de lado (e o personagem manuseará a pistola em apenas dois momentos do filme: para ensinar Joey a atirar e para permitir que aquelas pessoas tenham tudo o que ele jamais poderá ter). A peculiar vestimenta, ocre como o empoeirado Oeste, dará lugar às roupas simples dos sitiantes, dos homens que trabalham com as mãos na terra, suor no rosto, construindo a civilização em paragens tão distantes. Shane gosta dos Starrets, e os Starrets gostam dele: Joe vê um homem capaz, que pode auxiliá-lo, Marian apaixona-se e o pequeno Joey idolatra o forasteiro, deixando-se fascinar pelo mistério que o rodeia. Em pouco tempo, toda a pequena comunidade irá acolhê-lo e ele se sentirá parte desse mundo – mas nunca será verdadeiramente.

Joe Starret é uma liderança entre os rancheiros do vale. Em reuniões vespertinas, tenta convencê-los da necessidade de se unirem contra os ideais monopolistas de Rufus Ryker, que deseja as terras de todos eles para suas pastagens. Das tentativas de comprá-las à intimidação física, Ryker fará de tudo para obter o que deseja, inclusive contratar um temido pistoleiro, Jack Wilson (Jack Palance), de sorriso cínico e imensa habilidade com a pistola, para afugentar e, se necessário, matar os colonos.

O mais belo dos westerns

Um dos maiores clássicos da história do cinema, Os Brutos Também Amam é um western incomum. É o único filme do gênero realizado por George Stevens, um mestre do cinema conhecido por sua versatilidade (dirigiu aventuras, musicais, comédias, dramas e épicos) e perfeccionismo, nominado cinco vezes ao Oscar de Melhor Diretor (tendo vencido duas vezes, por Um Lugar ao Sol e Assim Caminha a Humanidade) e seis vezes ao Oscar de Melhor Filme, além de ser o seu primeiro filme colorido. A princípio, Os Brutos Também Amam seria estrelado por William Holden, Katharine Hepburn e Montgomery Clift, a pedido do próprio Stevens, mas todos recusaram. Em seus lugares entraram o excelente Van Heflin, Jean Arthur (que, aos 53 anos de idade, já há cinco não atuava e retornou para esse filme apenas por ser um pedido do seu amigo Stevens, tendo aposentado-se definitivamente do cinema em seguida) e Alan Ladd, um astro de filmes policiais de pequena estatura (apenas 1,65), totalmente o oposto dos tradicionais cowboys dos westerns. Para o papel de Joey, o “espectador” dentro do filme, a estrela mirim Brandon De Wilde, em franca ascensão nos palcos da Broadway e que faleceria tragicamente aos 30 anos de idade em um acidente automobilístico. Interpretando Jack Wilson, a definitiva encarnação do mal, icônico vilão de chapéu negro e luva negra em uma das mãos, Jack Palance, indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante (ao lado de De Wilde), e cujo papel marcaria sua carreira para sempre, vindo a interpretar inúmeros outros tipos similares. Completando o espetacular elenco, excelentes e tradicionais atores de westerns e outros gêneros em papéis coadjuvantes, como Ben Johnson, Edgar Buchanan, Emile Meyer e Elisha Cook Jr.

A direção meticulosa de George Stevens, conhecido por sua obsessão com enquadramentos e composições (ele levou 16 meses para editar o filme e somente na sequência em que Shane ensina Joey a atirar, que não dura mais que três segundos, 119 tomadas foram feitas), aliada à fotografia de Loyal Griggs (vencedora do Oscar), captura verdadeiras pinturas do Velho Oeste. Dos movimentos dos animais que pululam em cena (cervos, cavalos, vacas, cachorros e aves), aos detalhes dos cenários, tudo é precisamente calculado em Os Brutos Também Amam, que recria a vida no Velho Oeste com uma perfeição que raras vezes o cinema foi capaz de fazer, com adereços, construções e vestimentas autênticas, do período – muitos méritos para a figurinista Edith Head. Além disso, Stevens faz das Montanhas Rochosas o seu quintal. O que o Monument Valley foi para John Ford, as imponentes cordilheiras que cortam os Estados Unidos e o Canadá são para Stevens. As pitorescas paisagens são exploradas ao extremo, orlando close-ups e composições de extrema beleza.

Aqui eu abro um parênteses para falar especificamente do trabalho com animais realizado no filme, algo dificílimo de se fazer e que George Stevens executou com perfeição, como se os animais, a todo tempo, estivessem obedecendo exatamente as suas instruções. Destaque para o funeral e o enterro de Frank “Stonewall” Torrey (Elisha Cook Jr.), quando o cachorro toca a tampa da sepultura com sua pata (movimento finalmente alcançado quando o diretor resolveu colocar o treinador do animal dentro do caixão), em um momento profundamente triste; o cachorro de Grafton (Paul McVey) que se afasta de cena, cabeça baixa, quando Jack Wilson surge, e a troca de socos entre Joe e Shane, quando o último tenta impedir que Joe parta para uma armadilha, filmada com os animais do rancho (cavalos, vacas e o cachorro) ao redor, ouriçados e inquietos com a movimentação, saltando, relinchando e pisoteando perigosamente perto dos atores.

Sua câmera segura, tanto nos pequenos ambientes quanto nas paisagens infinitas de Wyoming, constrói sequências marcantes. Quando Shane é enviado por Joe para buscar um material no armazém, acaba sendo provocado por Chris Calloway (Ben Johnson), que joga um refrigerante em sua camisa, mas não reage. Posteriormente, quando todos os colonos vão em grupo ao local, Shane revida e uma luta visceral ocorre no bar contra Chris e todo o bando de Ryker, terminando com o auxílio de Joe, os dois contra todos, o local inteiro quebrado, enquanto Joey e Marian torcem e observam na soleira da porta. O assassinato de Torrey pelo covarde Jack Wilson é outra sequência de impacto, totalmente sem trilha, o eco do tiro percorrendo o vale como uma explosão, a fumaça espalhando-se na cena.

O seu cinema, o clássico cinema norte-americano, é também ele repleto de subtextos. Uma aula de como dizer tanto sem pronunciar uma única palavra. O imediato amor que Marian sente por Shane e a igual atração de Shane pela mulher do homem que ele está auxiliando, sentimentos culposos que ambos prontamente tratam de enterrar em suas mentes, conscientes de que não os levarão adiante – ela, por conta do seu casamento, ele, em respeito a Joe –, nunca é dito textualmente, nunca é tratado às claras – a própria percepção de Joe sobre aquilo é subentendida. Tudo é velado, insinuado; o amor é surdo, abafado. As expressões e os olhares narram aquilo que o roteiro não precisa verter em palavras. Shane, em tantos momentos, parece mesmo invejar a vida de Joe: casado com uma bela mulher, tendo um filho, um pedaço de terra, um lar. Uma vida inteira pela frente. Tudo que Shane não tem e nunca terá – e sabe disso. Não à toa impede Joe de cair na armadilha dos Rykers, mesmo sabendo que se ele morresse, tudo aquilo poderia ser seu.

Os Brutos Também Amam foi um estrondoso sucesso no seu lançamento, tendo terminado como a terceira maior bilheteria do continente em 1953 e uma das maiores da década de 1950. Imediatamente reverenciado como um dos maiores westerns de todos os tempos, agradou crítica e público por todos os lugares por onde passou. Indicado a seis Oscar, incluindo Melhor Filme, Os Brutos Também Amam foi selecionado em 1993 pela Biblioteca do Congresso para preservação no National Film Registry dos Estados Unidos para filmes que são “culturalmente, historicamente, ou esteticamente significantes“, e é o 45º melhor filme norte-americano de todos os tempos na prestigiada lista do American Film Institute (o terceiro entre os westerns).

Seu legado é duradouro. Clint Eastwood dirigiu o excelente Cavaleiro Solitário em 1985, um remake/homenagem ao filme, Sergio Leone homenageou duas sequências em obras suas (Por uns dólares a mais e Era Uma Vez no Oeste), e Shane, o personagem, seus diálogos, ou a obra em si, inspiraram uma série de TV e foram referenciados em tiras do Snoopy, quadrinhos dos X-Men, série de TV do Batman e uma infinidade de filmes, como Taxi Driver, Mad Max 2, Desejo de Matar e Os Bons Companheiros.

Um tributo ao Velho Oeste

Você viveu demais. Seus tempos acabaram“, diz Shane a Ryker. O poderoso barão de gado retruca: “Meus tempos? E quanto aos seus, pistoleiro?” Shane responde: “A diferença é que eu sei disso“. Ao encarar a batalha decisiva em prol não de si, como era nos tempos de outrora, de pistoleiro errante, mas dos interesses de toda uma comunidade, Shane vê chegar ao final o seu próprio estilo de vida.

Decidido a abandonar a arma, Shane precisa recorrer a ela para salvar aquela gente que o acolheu. O espetacular duelo contra Rufus, seu irmão Morgan e Jack Wilson, foi rodado dentro do bar contíguo ao armazém, em um cenário claustrofóbico e intimista, porque George Stevens tinha pouca experiência com ação em grandes espaços. Na fotografia estonteante na penumbra, à luz dos lampiões, desenrola-se a rápida sequência final, sob os olhos atentos de Joey (de participação crucial no desfecho) e seu cachorro, agachados aos pés da clássica porta de saloon do Velho Oeste.

Todos estaríamos em melhor condição se não houvesse arma alguma neste vale, inclusive a sua.” As palavras de Marian ecoam em sua mente. Um ferido Shane explica a Joe por que não retornará com ele: “Eu tenho que ir. Um homem tem que ser o que ele é, Joey. Não podemos mudar. Eu tentei, mas não funcionou para mim.” Despedindo-se do menino, Shane diz: “Agora volte para a sua mãe e diga a ela que está tudo bem, que não há mais armas no vale. (…) Volte para seus pais e cresça forte e direito. E, Joey, cuide deles. Dos dois“.

Na escuridão da noite, surge um dos mais belos finais da história do cinema. Ante os olhos marejados de Joey, não é Shane que parte em seu cavalo. É um mito. Que se despede para sempre. Seguindo noite adentro em direção aos distantes montes das cordilheiras de Wyoming, Shane parte cambaleante em direção ao seu destino derradeiro. “Shane! Volte!“, o estridente grito do pequeno Joey ecoa pelo vale como um apelo também do espectador, perfurante e sem resposta.

Os Brutos Também Amam é uma síntese do western enquanto gênero cinematográfico. George Stevens pretendeu deliberadamente criar uma obra que abrangesse tudo aquilo que o Velho Oeste já apresentou no cinema – e conseguiu, de maneira irretocável. O “Big Country“, a grande terra, com a imensidão de suas paragens, horizonte a perder de vista; a conquista e a colonização dessa região inóspita e repleta de perigos por uma gente simples e lutadora, que vai empurrando pouco a pouco as fronteiras do país para dentro dos rincões da América; o conflito contra aqueles que se acham os únicos donos da terra e fazem prevalecer suas vontades através da violência e da intimidação; os festejos no dia da independência, as danças, a alegria, a comida à mesa sempre farta, as casas sempre limpas e organizadas, os socos, as brigas, o saloon, o duelo, o homem solitário fugindo do seu passado, o homem que luta só… Todos os elementos arquetípicos do western encontram-se nele e Shane tornou-se um imortal na história cinematográfica, um mito do Velho Oeste. Sessenta e quatro anos após o seu lançamento, o mais belo dos westerns permanece esplêndido, misterioso e fascinante.

Os Brutos Também Amam (Shane) – EUA, 1953, cor, 118 minutos.
Direção: George Stevens. Roteiro: A.B. Guthrie Jr., baseado no romance deJack Schaefer. Música: Victor Young. Cinematografia: Loyal Griggs. Elenco: Alan Ladd, Jean Arthur, Van Heflin, Brandon De Wilde, Jack Palance, Elisha Cook Jr., Edgar Buchanan, Emile Meyer, Ben Johnson, John Dierkes, Douglas Spencer, Ellen Corby, Paul McVey, John Miller, Edith Evanson.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.