“Um dia iremos superar os homens em todas as áreas. Não foi em consequência de um acidente, como talvez possa pensar, que os sucedemos. Esse acontecimento estava inscrito nas linhas da evolução. Após a era do homem racional, um ser superior deveria substituí-lo, preservar os resultados essenciais de suas conquistas, assimilá-las durante um período de aparente estagnação, antes de irromper para um novo desabrochar.”

Uma febre símia espalhou-se pelo mundo inteiro a partir da década de 1960. O seu principal vetor foi o lançamento do clássico cinematográfico O Planeta dos Macacos (1968), estrelado por Charlton Heston. Na esteira do sucesso estrondoso de um filme que se converteu instantaneamente em um marco da ficção científica, vieram quatro sequências (De volta ao Planeta dos Macacos em 1970, Fuga do Planeta dos Macacos em 1971, A Conquista do Planeta dos Macacos em 1972 e Batalha do Planeta dos Macacos em 1973), um remake (Planeta dos Macacos, 2001) e uma nova série prelúdio (Planeta dos Macacos: A Origem, 2011, e Planeta dos Macacos: O Confronto, 2014), que acaba de estrear sua terceira parte nos cinemas este ano (Planeta dos Macacos: A Guerra).

O fenômeno dos macacos inteligentes e civilizados que dominam um mundo no qual os humanos são animais irracionais também gerou duas séries de televisão (Planeta dos Macacos, em live-action, em 1974, e o desenho animado De Volta ao Planeta dos Macacos, 1975-1976), sátiras (o humorístico brasileiro Planeta dos Homens, 1976-1982), minisséries japonesas, uma infinidade de histórias em quadrinhos publicadas por Boom! Studios, Dark Horse Comics e Marvel Comics, entre outras editoras e ainda influenciou uma das criações de Jack Kirby na DC Comics (Kamandi: O Último Garoto da Terra, 1972-1978). O merchandising dos macacos espalhou-se por videogames e brinquedos, transformando-se em uma das marcas mais influentes da cultura pop. E tudo isso se deve a um curto romance publicado pela primeira vez em 1963.

Paternidade do Planeta dos Macacos

O novelista Pierre Boulle nasceu na França, em 1912, formando-se em Engenharia em 1933, mas nunca chegando a exercer a profissão. Em 1941, com a sua pátria rendida e comandada por um governo fantoche de influência nazista, atuou como agente secreto do movimento de resistência cognominado França Livre, na China, na Birmânia (hoje Myanmar) e na Indochina. Foi preso, acusado de traição, trabalhou em campos de concentração na fronteira entre o Vietnã e o Camboja e conseguiu escapar, lutando na Índia ao lado dos britânicos até o final da Segunda Guerra Mundial. Retornou para o seu país em 1945, sendo alçado ao posto de herói nacional depois que vieram a público os seus serviços para a França no período da guerra. Boulle foi consagrado como chevalier da Ordem Nacional da Legião de Honra e condecorado com a Cruz de Guerra e a Medalha da Resistência Francesa.

A experiência militar foi uma grande inspiração em sua carreira literária e seus dois primeiros livros refletem esse aspecto particular da sua vida: William Conrad (1950), um romance ambientado na Segunda Guerra, e A Ponte do Rio Kwai (1952), baseado em sua própria experiência na Tailândia durante a guerra. Adaptado para os cinemas em 1957, A Ponte do Rio Kwai foi um sucesso mundial e conquistou sete Oscar em 1958. Entre 1950 e 1992 (dois anos antes do seu falecimento), Pierre Boulle publicou dezenas de livros, entre romances e contos, sendo considerado um dos mais prolíficos e bem sucedidos escritores francófonos do século XX. Curiosamente, a estonteante ficção científica de O Planeta dos Macacos (Boulle discordava dessa classificação, preferindo catalogar o seu livro como “fantasia social“) foi uma exceção em sua jornada literária de quatro décadas, mas é justamente a sua obra mais famosa.

De acordo com o próprio Pierre Boulle, O Planeta dos Macacos foi escrito (em seis meses) depois que as “expressões humanas” de gorilas em um zoológico capturaram sua atenção e o inspiraram a contemplar a relação entre o homem e o macaco. A obra foi fortemente influenciada pela satírica As Viagens de Gulliver, do irlandês Jonathan Swift, e também ecoa elementos da fábula zombeteira A Revolução dos Bichos, do britânico George Orwell – o filme de 1968 referencia explicitamente os toques orwellianos da narrativa de Boulle.

Chegada ao Planeta dos Macacos

“Confio este manuscrito ao espaço não com a finalidade de conseguir socorro, mas para ajudar, talvez, a banir o pavoroso flagelo que ameaça a raça humana. Deus, tende piedade de nós…!”

Um frívolo casal de ricos ociosos – Jinn e Phyllis – singra o cosmos infinito em férias, em um época muito distante no futuro, na qual as viagens interplanetárias são comuns e os foguetes transportam turistas para isoladas regiões do espaço sideral. Um corpo cintilante flutuando no negrume espacial desperta a dupla da calmaria hipnótica daquele cruzeiro estelar. O casal recolhe uma insólita garrafa vedada contendo um manuscrito em seu interior. Redigida na linguagem da Terra, que Jinn conhecia perfeitamente por ter feito estudos no planeta, o intrigante documento causa alvoroço e impaciência em Phyllis, que suplica para que o seu namorado leia o seu conteúdo.

No ano terrestre de 2500 o jornalista Ulysse Mérou (uma alusão direta a Ulisses, ou Odisseu, herói da Odisseia, de Homero), o rico e renomado professor Antelle, o médico Arthur Levain e o macaco Hector partem em uma nave cósmica com a intenção de alcançar a estrela supergigante Betelgeuse, distante cerca de trezentos anos-luz da Terra. Viajando perto da velocidade da luz, a dilatação temporal faz com que a expedição dure apenas dois anos no espaço, enquanto quase um milênio se passa na Terra.

Os três alcançam a órbita de um belíssimo planeta, praticamente um gêmeo da Terra (e por isso batizado de Soror, que significa “irmã” em latim), de clima temperado, fauna e flora exuberantes, serpenteado por montanhas, lagos e rios, e com uma atmosfera perfeitamente respirável. Uma belíssima mulher (batizada como Nova) que se empoleira nua em uma plataforma rochosa de uma cachoeira chama a atenção do grupo, tanto por sua perfeição física quanto pela animalidade de seu comportamento, total ausência de expressão facial, incapacidade de falar e pelos olhos sem cores, destituídos de expressão e vida. Nova fica aterrorizada com a presença de um macaco e estrangula Hector, o chimpanzé. A sua tribo caminha nua pela mata e destrói as roupas e a escuna espacial dos recém-chegados. É tarde demais quando Ulysse e seus companheiros descobrem que o pretenso paraíso não é o que parece.

Em Soror, os humanos não passam de bestas selvagens caçadas por uma espécie dominante… os macacos. Gorilas selvagens portando armas de fogo e vestidos como caçadores humanos dizimam a tribo, assassinam Arthur e capturam Ulysse e o professor Antelle. Dividida em três castas (agressivos soldados gorilas, pedantes administradores orangotangos e intelectuais chimpanzés liberais), uma civilização de macacos similar à humanidade do século XX floresceu no planeta: os símios falam e pensam, escrevem livros, possuem uma cultura milenar, usam roupas, fumam, tiram fotografias, criam animais de estimação, assistem televisão, viajam de avião, movimentam o mercado financeiro em bolsas de valores e fazem pesquisas científicas.

Ulysse acaba preso em uma instalação de pesquisa biológica, onde os macacos fazem experiências científicas em humanos por conta de suas similaridades evolutivas com os simius sapiens. Nesse louco mundo, o cérebro do macaco desenvolveu-se, complicou-se e organizou-se, enquanto o do homem não sofreu transformação. Tratado como uma fera selvagem e enjaulado em um ambiente aterrador, Ulysse se envolve sexualmente com Nova e estabelece um vínculo emocional com a chimpanzé Dra. Zira, uma pesquisadora da psicologia animal, a quem consegue provar que é uma criatura pensante. Zira tenta ajudá-lo na luta pela liberdade – contra os esforços contrários do orangotango Dr. Zeius, que não acredita na possibilidade de desenvolvimento de racionalidade em um ser humano – ao lado do seu noivo, o proeminente arqueólogo Dr. Cornelius, que conduz escavações sobre o elo perdido da evolução símia nas ruínas de uma antiga cidadela recém-encontrada.

Originalidade do Planeta dos Macacos

A narrativa de O Planeta dos Macacos é extremamente ágil, envolvente e fluída. Os capítulos curtos e o estilo sucinto e econômico (praticamente seco) da escrita de Pierre Boulle encadeiam eventos, torcem o suspense ao máximo e lançam conjecturas que deixam o leitor desesperado para ler a próxima página e saber o que irá acontecer. A história se desdobra em uma crescente de tirar o fôlego até um final absolutamente – e duplamente! – fantástico e surpreendente, com dois clímax igualmente poderosos, um encerrando a narrativa de Jinn e Phyllis com um soco no estômago, e o outro lançando Ulysse Méro diante de uma terrificante descoberta cujas explicações permanecem enterradas nos escombros das especulações – Boulle não explica nada e nós ficamos como Ulysse: pregados em nossos lugares, estupefatos e incapazes de proferir qualquer palavra.

Ficção científica, distopia, aventura, literatura fantástica, crítica social, fantasia social, sátira… O Planeta dos Macacos é tudo e mais um pouco. Em uma história de originalidade ímpar, Pierre Boulle revisita algumas das mais antigas questões que intrigam a humanidade (O que nos diferencia verdadeiramente dos animais? O que nos define como humanos?) com um texto que, entretanto, não se ocupa em respondê-las – ou mesmo detalhá-las. Boulle lança mais e mais questionamentos, e aborda os aspectos científicos e culturais de Soror e dos seus habitantes de um modo que suscita o interesse no leitor em vê-los esmiuçados – o que inteligentemente não é feito. O seu interesse é antropológico, e ao colocar os símios no lugar dos homens, e os homens no lugar dos símios, escreve uma irônica alegoria que versa sobre ciência, evolução, inteligência, racionalidade, existência, dignidade e relação entre homem e animal. Imortalizado pelo cinema na cultura popular, O Planeta dos Macacos permanece uma obra-prima atemporal da literatura fantástica, desafiando, intrigando e instigando o leitor com seu conto simples sobre a ascensão e a queda da raça humana – e o advento da era simiesca.

O Planeta dos Macacos (La Planète des Singes) – França, 1963. Autor: Pierre Boulle. Tradução: André Telles. Publicação no Brasil: Editora Aleph. Formato: 21 x 13,6, 216 páginas. Catalogação: Ficção científica. Ficção científica francesa. Ficção especulativa. Literatura francesa.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.