“Ao fim e ao cabo, parece-me que o catolicismo é não um número musical, mas uma sinfonia. […] Se confio no catolicismo, é porque nele vejo muito mais possibilidades de apresentar toda a sinfonia da humanidade do que em qualquer outra religião. As outras religiões quase não têm completude; têm apenas partes solo. Só o catolicismo consegue apresentar a sinfonia inteira. E, a menos que exista em tal sinfonia uma parte que corresponda ao charco de lodo japonês, o catolicismo não pode ser uma religião verdadeira. O que vem exatamente a ser essa parte – eis o que quero descobrir.” – Shūsaku Endō
Kirishitan: O Século Cristão do Japão
O cristianismo foi levado para o Japão pelo espanhol Francisco Xavier (canonizado em 12 de março de 1622), que desembarcou em Kagoshima, costa meridional do país, a 15 de agosto de 1549. Nascido em Xavier, província de Navarra, Francisco co-fundou em 1534, ao lado de Inácio de Loyola e outros estudantes da Universidade de Paris, a Companhia de Jesus, uma ordem religiosa missionária. No mesmo ano fez seus votos de castidade e pobreza e três anos depois foi ordenado sacerdote. Colocando-se à disposição do Santo Padre para o serviço da Igreja, partiu em missão de evangelização na Índia Oriental, do Cabo da Boa Esperança até a China, fundando várias missões e comunidades de um modo comparável na história da Igreja apenas ao que o apóstolo Paulo fez no cristianismo primitivo.
Os jesuítas – como os membros da Companhia de Jesus tornaram-se conhecidos – foram os grandes responsáveis pela propagação do catolicismo na América e no Oriente no período das Grandes Navegações. São Francisco Xavier apaixonou-se pelos japoneses (“a alegria de meu coração“, “jamais encontraremos outros que se igualem aos japoneses“) e esforçou-se para aprender o idioma, terminando por converter centenas para a fé cristã antes de partir para continuar sua missão na China. Doente e cheio de privações, morreu solitário na noite de 2 para 3 de dezembro de 1552, apenas três anos depois de ter pisado no Japão.
As centenas de japoneses convertidos em católicos logo transformaram-se em milhares. Estima-se que em 1579 já havia uma florescente comunidade de 150 mil cristãos no país. O trabalho missionário de São Francisco Xavier foi continuado pelo padre jesuíta italiano Alessandro Valignano, que sonhava com um arquipélago inteiramente cristão. Seminários, colégios, hospitais e conventos foram fundados, o clero japonês frutificou e daimyos [senhores de terras]de Kyushu, a terceira maior ilha do Japão, abraçaram a fé cristã, levando consigo quase todos os seus vassalos.
Era o período Sengoku, após o fim do xogunato [o governo militar] Ashikaga, uma das fases mais instáveis da história do Japão, dilacerado pelas guerras entre daimyos e sem um governo central forte. A unificação estava próxima e transformaria o país em uma sólida unidade. Os daimyos responsáveis pela unificação (Nobunaga, Hideyoshi e Ieyasu) eram íntimos dos jesuítas portugueses e a situação dos cristãos permaneceu pacífica por um tempo – o que logo mudaria. Em um acesso de fúria motivado pelo álcool, Hideyoshi ordenou que os missionários deixassem o país, mas seu decreto virou letra morta e a comunidade de convertidos seguiu aumentando dia após dia. Dez anos depois, um arroubo de grandeza de um piloto de um navio espanhol fez Hideyoshi novamente explodir em fúria e vinte seis cristãos japoneses e europeus foram crucificados em Nagasaki, em fevereiro de 1587. Com a morte de Hideyoshi, Ieyasu tornou-se seu sucessor e primeiro xogum Tokugawa, e a perseguição ao cristianismo fez-se irrevogável. Em 1614, Ieaysu promulgou o édito de expulsão dos “kirishitan” [a adaptação da palavra “cristão” para o idioma japonês], a quem considerava “germes de um grande desastre e que precisam ser esmagados“.
Naquela época havia 300 mil cristãos no Japão e a caça aos fiéis e sacerdotes semeou o solo com o sangue dos mártires [aqueles que sofrem tormentos ou morte pelo sustento da fé cristã], homens, mulheres, idosos e crianças, pessoas de todas as idades, varrendo qualquer vestígio visível do cristianismo e relegando a obra missionária à clandestinidade – tal qual os primeiros cristãos nas catacumbas fugindo da perseguição romana. O xogunato logo perceberia que o martírio glorioso, em vez de diminuir a quantidade de cristãos, só fazia aumentá-la, pois mostrava a força da fé e proclamava heróis em nome de Deus, e pouco a pouco as torturas tornaram-se mais intensas, no intuito de fazer com que aquelas pessoas cometessem apostasia [o ato de renegar a fé].
Crucificações, fogueiras, suplício da água e suplício do poço foram torturas comuns, mas até o ano de 1632 nenhum missionário apostatara. Até Cristóvão Ferreira, provincial português, líder da missão católica no país, que apostatou após seis horas no poço e passou a viver como um budista e a colaborar com seus antigos perseguidores. Em 1643, um novo grupo de missionários europeus (dez no total) entraria clandestinamente no país – entre eles Giuseppe Chiara, o Sebastião Rodrigues da obra de Shūsaku Endō –, e a maioria renegaria publicamente a fé após longas e terríveis torturas – embora todos garantissem depois que não o fizeram por plena vontade interior. Chiara morreria quatro décadas depois da apostasia declarando-se cristão. Sobre Cristóvão Ferreira nada se sabe além de rumores de que teria renegado a apostasia antes de morrer como um mártir no mesmo poço cuja tortura o derrotara décadas antes. Seu túmulo permanece em Nagasaki. Sua vida posterior às torturas e sua morte continuam envoltas em um eterno mistério.
As raízes do cristianismo, entretanto, fixaram-se fundo demais no “charco de lodo” japonês. Além dos inúmeros mártires (vinte e oito deles canonizados por Pio X em 1862, e cento e oitenta e sete, ao lado do padre jesuíta Pedro Kibe, beatificados por Bento XVI em 2008), milhares de cristãos conservaram a fé – mesmo sem sacerdotes, mesmo sem igrejas. Por meio de uma organização secreta, a fé era transmitida, o catecismo era ensinado, pessoas eram batizadas, e os kakure kirishitans [criptocristãos, os cristãos escondidos que praticavam a fé em segredo, publicamente vivendo como se fossem budistas] mantinham acesa a inabalável fé em Jesus Cristo. Em 1865, quase três séculos depois, quando a Revolução Meiji trouxe a liberdade religiosa ao Japão e abriu o país para o mundo, milhares de criptocristãos saíram de seus esconderijos, em Nagasaki e nas ilhas ao redor, abandonando imediatamente as práticas sincréticas e esperando pela vinda dos novos missionários católicos. A implacável perseguição de séculos não conseguiu erradicar a fé daquelas tenazes pessoas que mantiveram as preces, a devoção a Nossa Senhora, os pedaços de latim e português, os nomes cristãos, as relíquias de batinas e rosários dos padres que foram martirizados, e a inexpugnável confiança na Sã Doutrina.
Shūsaku Endō
Um dos mais brilhantes romancistas do século XX, Shūsaku Endō (1923-1996) nasceu em Tóquio e foi batizado católico aos 12 anos de idade. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, foi estudar na França e sofreu forte discriminação racial. Contraiu tuberculose, entrou em depressão e colocou a sua fé em dúvida. Antes de voltar para a sua terra natal, partiu para pesquisar na Palestina sobre a vida de Jesus Cristo. Uma viagem que transformou a sua percepção sobre o cristianismo, levando-o à conclusão de que Cristo, assim como todos os seus seguidores, também havia conhecido a rejeição, o escárnio e a zombaria. Esse aprofundamento na fé também fez com que Endō se debruçasse, de modo particular, sobre a figura de Judas Iscariotes, a quem questionava e estudava qual teria sido seu intrigante papel na história da Salvação.
Chinmoku (O Silêncio), o mais aclamado dos seus romances, foi publicado pela primeira vez no Japão em 1966. A sua inquietante história ficcional, baseada em fatos históricos reais, fez enorme sucesso mundial, colocando o cristianismo e a sua necessidade – e capacidade – de adaptação em discussão, dentro e fora do Japão, sendo reverenciada como uma das grandes obras da literatura no nosso tempo. O Silêncio é uma forma de Endō lidar com seus próprios dilemas e preocupações, uma expressão clara do conflito entre a sensibilidade japonesa e o cristianismo helenizado que foi recebido por ele, que não pode simplesmente ser transportado de uma cultura a outra, tão distinta, e esperar-se que frutifique de imediato entre todas as pessoas.
Aqui retornamos aos pensamentos do próprio Endō que abrem o texto. No “charco de lodo” que é o Japão, um pântano que suga e distorce qualquer ideologia, em um processo que impede muitas pessoas de assimilarem no fundo da alma o que é verdadeiramente o cristianismo, é preciso descobrir qual é a parte japonesa que corresponde à fé católica. Em algum lugar da grandiosa sinfonia que é o catolicismo – palavra de origem grega e que significa justamente “universal” –, há uma cepa que se ajusta ao ethos japonês, do mesmo modo que outras cepas adaptaram-se às culturas da Grécia, da Itália, da Irlanda, de Portugal, da Espanha, das Américas, e de tantos outros lugares. Compreender profundamente a Cristo e conciliar o seu “eu” católico com o seu sangue japonês, mesmo diante das imensas dificuldades, dores e angústias, foi a cruz especial que Endō acredita que Deus deu aos japoneses, e foi essa a cruz que ele carregou, com júbilo e vontade, durante toda a sua vida e obra.
Martin Scorsese
Nascido em 1942, em Corona, Queens, subúrbio de Nova York, Martin Charles Scorsese, de ascendência italiana, filho de atores, mudou-se para Little Italy, bairro de imigrantes de Manhattan, ainda antes de começar na escola. Aluno de um colégio católico, das Irmãs da Caridade, irlandesas, foi lá que teve seu primeiro contato com a religião católica e ficou fascinado com os rituais da missa, repletos de simbolismos e significados – à época ainda o rito extraordinário, também conhecido como missa tridentina, liturgia promulgada por São Pio V em 1570 e celebrada no mundo inteiro até a revisão feita pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), que instituiu o rito novo em 1969.
Desde cedo confinado a estar sempre em casa por conta da asma que o impedia de praticar esportes, Marty observava o mundo pela janela. Uma tela que prefigurou o cinema em sua vida. A sua primeira vocação, entretanto, foi o sacerdócio, e ele permaneceu no seminário durante um ano – projeto interrompido, diz-se, porque o jovem Martin, ainda coroinha, não conseguia acordar a tempo para as missas matinais. Mas há também no cinema algo de ritualístico, algo metaforicamente análogo entre um diretor e um sacerdote, e Martin logo encontraria a sua vocação nas telas, como o próprio diz: “Eu tinha fé quando ia à igreja. Eu tinha fé quando ia ao cinema.” O maior realizador norte-americano depois de John Ford traz o seu catolicismo, conflituoso, como um selo, uma marca permanente em todas as suas realizações.
O seu primeiro contato com a obra-prima de Shūsaku Endō foi em 1988, quando esteve no Japão para interpretar Van Gogh no filme Sonhos, de Akira Kurosawa. A história sobre o mistério do amor divino encantou o cineasta, que logo comprou os direitos para uma adaptação cinematográfica – a obra de Endō já recebeu uma adaptação para o cinema em 1971, em uma produção japonesa de Masahiro Shinoda. O projeto tornou-se uma obsessão de Marty e uma longa jornada repleta de percalços se deu para que finalmente ele tornasse realidade aquele que é o seu projeto mais pessoal e apaixonado. O primeiro rascunho do roteiro foi escrito com Jay Cooks em 1991, e mais tarde, em 2004, durante a produção de O Aviador, os dois reescreveram o texto, mas ainda permaneceram insatisfeitos com o roteiro, que seria reescrito ainda uma última vez.
Ao longo de quase três décadas, Marty fez e desfez o filme em sua cabeça inúmeras vezes. Foi obrigado a mudar o elenco (Daniel Day-Lewis, Benício del Toro e Gael García Bernal foram alguns dos atores que estiveram em negociações para estrelar o longa, em 2009), porque os atores foram envelhecendo, e três ou quatro grandes atores rejeitaram participar do filme porque a religião não fazia parte de suas vidas. Vieram problemas financeiros e legais, questões envolvendo direitos autorais e a imensa dificuldade de conseguir investimento para um filme do tipo. Após o término das filmagens de O Lobo de Wall Street, no início de janeiro de 2013, Scorsese decidiu finalmente dar partida à produção de Silêncio, que teve início em 2014, 23 anos depois de o diretor ter decidido realizar o filme.
Silêncio
Enquanto a tela ainda está inteiramente enegrecida, os sons da natureza ecoam em uma crescente até cessarem repentinamente e a palavra “Silêncio” surgir escrita em branco. Cabeças espetadas em estacas ao lado de um oficial japonês, eis a primeira cena de Silêncio. As névoas esvaem-se lentamente enquanto missionários jesuítas são levados por oficiais japoneses em meio às fervilhantes fontes termais, até o padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson) surgir em primeiro plano.
“1633. Pax Christi, louvado seja Deus.” É a sua voz em off que ouvimos, enquanto as torturas aos missionários no suplício da água aumentam e o sacerdote cai de joelhos. É a sua última carta escrita ao padre italiano Alessandro Valignano (Ciarán Hinds), que a está lendo para dois jovens sacerdotes no Colégio de São Paulo em Macau. É o período final do expurgo católico no Japão. Os rumores apontam que o lendário padre Cristóvão Ferreira teria apostatado após longas torturas. Dois jovens jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garpe (Adam Driver), discípulos de Ferreira, partem em missão para encontrá-lo, entrando clandestinamente no Japão com o auxílio de Kichijiro (Yōsuke Kubozuka), um pescador bêbado encontrado em Macau. Na aldeia de Tomogi, em Nagasaki, os dois sacerdotes surpreendem-se quando encontram um grupo de cristãos escondidos, liderados pelo ancião Ichizo (Yoshi Oida), que os acolhem com entusiasmo inaudito, ansiosos por consolo e sedentos pelos sacramentos e pela Santa Missa, por tudo aquilo que apenas os sacerdotes, aqueles que na doutrina católica agem in persona Christi, ou seja, na pessoa do Cristo, são capazes de proporcionar.
Passando os dias escondidos em uma cabana nas montanhas, e descendo à noite para a vila, os dois rezam missas, batizam, catequizam, atendem confissões, distribuem pequenos crucifixos e as contas de seus rosários, e não demora para que a notícia de suas presenças chegue aos cristãos escondidos de aldeias vizinhas – e também aos ouvidos das autoridades, que começam a vasculhar as aldeias em busca dos sacerdotes. Em pouco tempo, três valorosos cristãos, que chegaram a pisar em retratos em bronze enquadrados em pequenas molduras de madeira, na chamada cerimônia do e-fumi, técnica que o xogunato utilizava contra os suspeitos de serem cristãos, mas negaram-se a cuspir no crucifixo e a blasfemar contra o nome da Santíssima Virgem, terminam por abraçar o martírio glorioso, amarrados em cruzes às margens do oceano, um deles sofrendo por vários dias até morrer afogado, enquanto Sebastião e Francisco precisam se separar e fugir para outras regiões.
As características mais evidentes do estilo de Martin Scorsese são violência, narrativa em off, traveling, cenas congeladas, ad-lib, humor, películas de longa duração e composição perfeita entre cena e música. Em Silêncio, o renomado diretor parece esvaziar-se em seu estilo, como se estivesse em oração, deixando de lado todo o excesso e dirigindo aquela que é a sua obra mais crua, seca e espiritual. Não temos cenas congeladas, não há espaço para o ad-lib (improvisação dos atores), há pouco humor e a música é quase inexistente – a trilha sonora de Kim Allen Kluege e Kathryn Kluge investe em cantos tradicionais japoneses e hinos católicos, como o Tantum Ergo Sacramentum de São Tomás de Aquino, todos extremamente sutis, soando como que partícipes da história, e algumas vezes quase imperceptíveis a ouvidos menos atentos. A longa duração permanece, bem como a narrativa em off, utilizada por três personagens distintos no decorrer do filme, a maior parte do tempo através de cartas, o traveling (a câmera movendo-se no espaço) longo aparece em uma cena logo no início, quando Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe encontram Kichijiro pela primeira vez, e é usado discretamente no restante do filme, e a violência está presente de uma maneira diferente, chocante e crua, mas controlada, não glamourizada como em Os Bons Companheiros (1990) e outras obras suas.
Silêncio não parece um filme de Martin Scorsese, ao mesmo tempo em que é, profundamente, um filme de Martin Scorsese. O apuro técnico, os planos perfeitos e os ângulos precisos continuam, e o diretor homenageia alguns de seus mestres, em especial Akira Kurosawa, de quem foi amigo pessoal, que ele evoca de um modo especial e belo nas cenas iniciais dos sacerdotes nas pobres casas dos camponeses – que dialoga diretamente com os samurais nas casas dos camponeses em Os Sete Samurais (1954) –, e também no rigor das composições e na integração entre elementos da natureza e personagens nas tomadas. Silêncio não possui cortes rápidos, a narrativa é lenta, meditativa, os planos e tomadas são valorizados e estendem-se longamente. Scorsese investe em planos-detalhes de mãos, cruzes e terços, valorizando o simbolismo religioso e as expressões dos personagens, além de tomadas que exploram com clareza as iconografias cristãs, como a belíssima sequência na caverna iluminada pelo fogo de uma tocha no primeiro encontro entre Ichizo com Rodrigues e Garpe. Scorsese imprime em Silêncio uma crescente expectativa de martírio na trajetória de Rodrigues, que é submetido às mais duras provações – inicialmente físicas e depois espirituais –, espelhando nele a figura de Jesus Cristo para depois inverter subitamente o foco e, como no turvamento confuso de um espelho, refletir nele a face de Judas. A edição de Thelma Schoonmaker, uma das mais antigas colaboradoras de Marty, montadora de vinte filmes do diretor de 1980 até os dias de hoje, contribui decisivamente para estabelecer a atmosfera contemplativa e espiritual pretendida pelo diretor, que vai de planos panorâmicos e distantes a planos próximos e pessoais com facilidade.
A estupenda fotografia do mexicano Rodrigo Prieto (cinematografista de filmes como O Lobo de Wall Street e Argo) é um dos pontos mais elevados de Silêncio, repleta de sutileza e profundidade. O acinzentado dos gases quentes das fontes termais nas quais os cristãos são torturados no suplício da água e das brumas na costa japonesa alcançada pelos barcos clandestinos durante a madrugada começa inserindo uma aura de mistério e suspense sobre o país oriental e aquilo que aguarda a missão de Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe. Desde as cenas em Macau até a chegada ao Japão, as cores e contrastes da fotografia acompanham com maestria a via-crúcis de Sebastião Rodrigues e o estado de sua alma. Em vários momentos, como no batismo de crianças, na celebração da Santa Missa, nas orações particulares e nas caminhadas pelas florestas japonesas, as luzes e as cores preenchem a tela, como se aquele pictórico país estivesse sendo visto através dos vitrais de uma Catedral. Quando a jornada de Sebastião Rodrigues se aprofunda na escuridão noturna da prisão, a fotografia de Prieto compõe cenas que parecem pintadas por Caravaggio ou por algum outro mestre do barroco (em algumas delas é como se estivéssemos olhando para uma adaptação de Flagelação de Cristo ou O sacrifício de Isaac), estabelecendo um jogo de luz e sombra fantástico, tenebrista, com a presença de grandes áreas enegrecidas ao fundo das cenas enquanto no primeiro plano os focos intensos de luz (de velas) destacam as expressões desoladas e desesperadas dos personagens. Silêncio é belíssimo, desnudando uma apurada estética católica em cada cena, em cada detalhe, fruto de um trabalho intenso e extenuante, diante das condições meteorológicas inóspitas de Taiwan que atrapalharam bastante o andamento da produção, dependente da luz do dia para as filmagens.
Torna-se impossível também não mencionar o excepcional trabalho de direção de arte de Wen-Ying Huang, Wang Zhi-Cheng, Michael Tsung-Ying Yuang e Ding-Yang Weng e de figurino do italiano Dante Ferretti, colaborador recorrente do diretor – indicado nove vezes ao Oscar de Melhor Direção de Arte e vencedor por três vezes, em duas obras de Martin Scorsese, O Aviador, de 2005 e A Invenção de Hugo Cabret, em 2012 e em uma de Tim Burton, Sweeney Todd, de 2008. Silêncio foi praticamente inteiro rodado em Taiwan, tanto as cenas de estúdio quanto as cenas em locações, com exceção da sequência na Catedral de São Paulo, em Macau, e as paisagens e cenários destacam-se, desde as costas enevoadas até as infinitas florestas semitropicais adentrando as regiões montanhosas. O trabalho da direção de arte e do figurino transporta o espectador para um Japão histórico, real, no período Tokugawa, com figurinos e caracterizações que transmitem uma credibilidade perfeita para a época em que aquelas pessoas estão vivendo – Andrew Garfield e Adam Driver perderam quase dez quilos cada um para o filme, adicionando ainda mais realidade às suas interpretações.
O roteiro escrito por Jay Cocks (roteirista e crítico de cinema, colaborador de longa data de Marty) e Martin Scorsese, que consultaram a equipe do Archivum Romanum Societatis Iesu e vários especialistas jesuítas, evoca em muitos aspectos O Coração das Trevas (1899), o clássico conto de Joseph Conrad, sobre o qual Francis Ford Coppola baseou-se livremente para criar Apocalypse Now (1979). O conto de Conrad narra a história de Marlow, que parte em uma expedição em um rio africano com a missão de resgatar Kurtz; em Silêncio, dois sacerdotes partem em uma expedição pelo coração do Japão em busca de um antigo mentor. A atmosfera de thriller, com uma tensão crescente desde os primeiros segundos, recebe aqui um novo contorno, o religioso. A fidelidade ao romance é enorme; algumas situações são levemente modificadas, outras condensadas, ou ampliadas, mas a estrutura narrativa do romance é transportada sem mutilações para o cinema.
O romance de Endō é narrado através de cartas escritas por Rodrigues até a sua metade – a partir daí um narrador em terceira pessoa assume a história, e no capítulo final as anotações do diário de Jonassen, um secretário da Companhia Holandesa das Índias Orientais, adicionam os detalhes finais –, e uma das suas qualidades é o modo como ele trabalha os pensamentos de Rodrigues, como as suas certezas e a sua confiança na providência divina vão sendo corroídas pouco a pouco, dando lugar às incertezas, aos questionamentos e ao vazio da nascente falta de fé. Transpôr tudo isso para uma mídia dependente do aspecto visual é uma tarefa árdua e ingrata, e um mérito evidente do roteiro de Jay Cocks e Martin Scorsese é a capacidade de condensar com habilidade a complexidade de tais pensamentos de Rodrigues nas poucas linhas narradas em off por Andrew Garfield, de modo que o essencial de sua “noite escura” é devidamente mostrado nas telas.
O elenco inteiro está extraordinário em Silêncio, desde os atores principais, em especial Andrew Garfield, Yōsuke Kubozuka e Issei Ogata, até aqueles com pouco tempo de cena (como Adam Driver e Liam Neeson). Issey Ogata leva um bom tempo para aparecer pela primeira vez, mas quando aparece é arrebatador. Seu personagem, o “Inquisidor” Inoue Masashige, é um velho samurai amável, educado e extremamente malicioso e implacável; sempre com um sorriso arguto no rosto, ele mascara suas reais intenções enquanto vai quebrando pouco a pouco as certezas do padre. Seus diálogos sobre teologia e moral com Sebastião Rodrigues são riquíssimos, agudos, mordazes, repletos de analogias curiosas. Vitorioso, no romance de Endō ele diz ao jovem e alquebrado sacerdote: “Não fostes derrotado por mim, padre. Vós fostes derrotado por este charco que é o Japão.”, expressão repetida por Cristóvão Ferreira (Liam Neeson) em sua excruciante conversa no seu primeiro encontro com Sebastião Rodrigues, quando mais de duas horas de filme já se passaram. Ferreira foi quebrado por Inoue, e agora vive como um budista, casado com uma viúva japonesa, tendo assumido o nome do falecido marido dela, Sawan Ochuan. O outrora herói jesuíta dedica seus dias a escrever sobre astronomia, medicina e a produzir um livro que desmascara o cristianismo. Tenta convencer Rodrigues a também renegar a sua fé. No fim, em um ato falho, diz a Rodrigues: “só Nosso Senhor pode julgar o teu coração“. Seu personagem foi despedaçado pelas torturas, renegou a fé cristã, abraçou o estilo de vida imposto pelo Inquisidor, mas na atuação de Liam Neeson, em seu gestual, em seus olhares, é visível a amargura, a dor surda da apostasia em sua alma. Ferreira apostatou para permanecer vivo, e carregou até o fim da vida o peso dessa decisão.
Yoshi Oida e Shinya Tsukamoto interpretam Ichizo e Mokichi, os dois líderes dos cristãos escondidos da aldeia de Tomogi. São eles os luminares do verdadeiro cristianismo na história. Sob as condições mais inóspitas possíveis, vivendo uma existência miserável em uma terra devastada, sob a ameaça de morte a qualquer instante, eles mantiveram viva a chama da fé através de uma organização secreta; no charco que é o Japão, onde o cristianismo não cria raízes na visão de Inoue, que será compartilhada por Ferreira e Rodrigues, aquelas humildes, paupérrimas e piedosas pessoas permanecerem cristãs e abraçaram o martírio, porque as verdadeiras raízes sobre as quais se assentam a fé não são deste mundo. Rodrigues pensava que aqueles camponeses que tanto ansiavam por sinais exteriores da fé, como crucifixos e terços, talvez não fossem verdadeiros cristãos, mas eram eles a abraçar verdadeiramente o cristianismo – os símbolos externos eram apenas esperados sopros de fé que os auxiliavam a permanecer de pé, a presença dos sacerdotes era para eles como velas consumindo-se nas antigas catacumbas. Enquanto os dois sacerdotes devidamente treinados e estudados renegam a fé, regularmente e de maneira pública até o fim de suas vidas, convertendo-se em leigos pagos por um governo tirânico – a fé sociológica, formal, evapora ao impacto da perseguição de uma cultura pagã –, as humildes pessoas que receberam a fé cristã dos seus pais permaneceram por mais dois séculos a não permitir que ela se apagasse, vivendo como pedras no caminho de um governo que desejava extirpá-los.
Yōsuke Kubozuka, em uma atuação fenomenal, interpreta o infeliz e atormentado Kichijiro, que serve de guia para os dois sacerdotes, sendo figura central e enigmática do romance e da adaptação cinematográfica de Martin Scorsese. Kichijiro é a figura de Judas Iscariotes na vida de Sebastião Rodrigues, enquanto este segue alegoricamente os passos de Jesus Cristo – até terminar sendo, ele próprio, um novo Judas. Em andrajos, débil, sujo e fraco, cabelos desgrenhados, dentes apodrecidos, olhos emitindo sempre um desespero aterrador, Kichijiro vive atormentado por ter renegado a fé católica para salvar a si próprio, enquanto toda a sua família permaneceu firme na fé e foi martirizada na fogueira diante dos seus olhos. A malfadada figura vive toda a sua jornada a trair os cristãos japoneses, a trair os sacerdotes – as trinta moedas de prata convertem-se em trezentas, o valor que o governo japonês paga a todo aquele que denuncia um padre –, para todas as vezes lançar-se aos pés de Rodrigues buscando a confissão e a absolvição dos seus pecados. Como Simão Pedro, Kichijiro nega Cristo uma, duas, três vezes. Caindo, levantando-se e tornando a cair. Para sofrer imensamente os tormentos advindos de suas fraquezas e quedas, e buscar incessantemente o consolo e o perdão no amor divino.
O modo como Andrew Garfield desenvolve o seu personagem é soberbo. Do idealismo do sacerdote que vai até o Japão em busca do seu mentor e que encanta-se com a força de vontade extraordinária daqueles camponeses miseráveis que correm o risco de serem mortos por conta de sua fé, ao crescente desespero que vai tomando conta de sua alma, até os acontecimentos finais da narrativa, Garfield (que fez os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola em preparação para o papel) encontra na sutileza os artifícios para desenvolver um personagem extremamente complexo, ao mesmo tempo devoto e crente e assolado por dúvidas e decisões terríveis, entregando uma atuação superior a que teve como Desmond Doss em Até o Último Homem, de Mel Gibson. Rodrigues sente a areia ceder sob seus pés e uma voz maliciosa supõe a não-existência de Deus em seus pensamentos, uma fantasia assustadora: de que valera tudo o que ele e aquelas pessoas haviam passado se Ele não existisse?
Inoue tenta quebrar Rodrigues e desamar o seu espírito pelas palavras, e posteriormente pelas torturas infligidas aos cristãos japoneses, do mesmo modo que fez com Ferreira. A tortura é o suplício do poço, descrito por C. R. Boxer, em The Christian century in Japan, do seguinte modo: “A vítima era toda amarrada, bem apertado, até a altura do peito. Depois, em um patíbulo, era pendurada de cabeça para baixo dentro de um poço que, em geral, continha excrementos e outras imundícies. A beira do poço ficava alinhada com os joelhos da vítima. Para dar alguma vazão ao sangue, a testa era cortada de leve, à faca.”
Rodrigues começa a narrativa seguindo a imitação da vida de Cristo, acreditando estar vivendo a sua própria via-crúcis, todavia, sem o sofrimento que o Homem de Nazaré experimentou, aproximando-se a cada instante mais e mais do seu Gólgota, mas no fim termina ele próprio interpretando o papel de Judas. O padre Francisco Garpe – Adam Driver em um papel relativamente pequeno – funciona como uma alegoria de Cristo, tanto na aparência do ator, que se aproxima bastante do Cristo renascentista de El Greco, quanto no caminho que segue, indo até a última das estações da cruz, abraçando o martírio ao sacrificar-se no mar enquanto tenta salvar os cristãos japoneses.
No fim de uma madrugada, enquanto os cristãos agonizam no poço, Rodrigues é novamente instado a renegar a sua fé pisando em uma representação da face de Cristo. Rodrigues sente fascínio pelo Seu rosto, o rosto de Cristo por ele tão querido desde a infância, visto por ele no seu próprio reflexo na água, em seu Getsêmani pessoal antes de ser entregue ao Inquisidor, e também quando confinado na escuridão da prisão, cuja imagem enxerga com o aspecto da pintura renascentista do véu de Santa Verônica, de El Greco. Rodrigues ouve o que acredita ser a voz do próprio Cristo a dizer-lhe que pisoteie a imagem: “Pisa! Pode pisar! Eu, mais do que ninguém, conheço a dor no teu pé. Pisa! Foi para ser pisado pelos homens que eu nasci neste mundo.” E ele o faz: pisa no mais belo rosto que o homem jamais poderá conhecer, o rosto que sempre esteve em seus pensamentos e que ele tanto ama. Por fim, cai quebrantado. Um galo canta ao longe, por três vezes.
O silêncio divino
“O negro solo do Japão se viu repleto do lamento de tantos cristãos; o rubro sangue dos clérigos jorrou copiosamente; as paredes das igrejas caíram; e, em face desse terrível e implacável sacrifício oferecido a Ele, Deus se mantém silencioso.” – Sebastião Rodrigues.
O questionamento ao silêncio divino é uma constante na tradição judaico-cristã. Do salmista, “Senhor, por que dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre” (Salmo 44), ao próprio Jesus Cristo no abandono da cruz, “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Evangelho de São Mateus), o clamor que tenta compreender o mistério do silêncio divino é insistente. O Deus que no Antigo Testamento falou tantas vezes aos profetas, encarnou-Se no seio de uma Virgem, para loucura e escândalo dos homens, sentiu tudo que um ser humano é capaz de sentir, caminhou nesta terra durante trinta e três anos, e desde então emudeceu. Nem o lamento do seu Filho Único foi ouvido. No Getsêmani e no Calvário, as palavras do próprio Cristo não obtiveram resposta do Pai Eterno. Apenas o silêncio. Ensurdecedor. E dorido.
Em 28 de maio de 2006, durante a sua visita ao Campo de Concentração de Auschwitz-Birkenau, o Santo Padre Bento XVI disse em seu discurso: “Em um lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado, um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? (…) Onde estava Deus? Por que Ele silenciou? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal?” Em situações de perseguição, catástrofes e injustiças, o significado do silêncio divino sempre retorna aos nossos pensamentos. O implacável silêncio de Deus constrange diante de tantas situações malévolas. Rodrigues começa questionando a solidão que Deus impõe àqueles que sofrem por Ele. A potência do Seu calar incomoda. O silêncio é surdo, pesado. Rodrigues sonha com o martírio heroico, glorioso, que nunca vem, e termina vivendo a sua própria noite escura, que perdura por décadas, até o fim da sua vida – Scorsese ainda acrescenta um pequenino detalhe ao final, que não está presente no romance de Endō, e que deixa ao espectador o seu próprio questionamento sobre a trajetória de Rodrigues. No infinito negrume da sua covardia ressentida com o silêncio do Senhor, Rodrigues compreende o seu papel de Judas e crê ouvir do próprio Cristo a resposta derradeira aos seus anseios: Eu não estava em silêncio. Eu sofria ao teu lado.
Silêncio não é uma obra fácil de assistir. Não é uma obra fácil de digerir. Não é para todos. Ou você irá gostar, ou você irá detestar. Martin Scorsese não fez um filme para agradar. Martin Scorsese fez Silêncio para revelar ao mundo a grandeza de uma obra que o tocou de um modo que pouquíssimas outras obras o tocaram – Silêncio é o seu filme mais íntimo e pessoal. Seu cinema, tão afeito a temas como culpa, penitência e punição, desta vez mergulha fundo no sofrimento que não nos escapa – a ninguém – na evanescência que é a vida.
No Japão do século XVII, homens de carne e osso – como nós – se esconderam, fugiram, foram perseguidos, torturados, alguns apostataram, depois se arrependeram, outros verteram sangue por suas crenças. Todo o drama pessoal e espiritual que renunciar a fé – como fazem Ferreira e Rodrigues – ou abraçar-se a ela através do martírio – como fazem Garpe, Ichizo e Mokichi – encerram em si são abordagens inescapáveis sobre o modo como vivemos e testemunhamos a fé. Silêncio não deixa nenhum de seus personagens livres de suas profundas cargas morais, nem propõe conclusões definitivas para os questionamentos ambiciosos e multifacetados que lança ao espectador; muito menos apresenta histórias felizes. Do conflito de fé de seu protagonista, Silêncio submerge na espiritualidade católica, no âmago do cristianismo, na vida sacerdotal e na importância fundamental de sua missão em uma terra estrangeira de outros tempos e outras eras; impressiona nas imagens, na história e na força de seus diálogos. Cristão ou não, é impossível permanecer inerte a Silêncio, uma das obras cinematográficas mais instigantes dos últimos tempos.
“Nosso Senhor não estava calado. E, mesmo se Ele calado houvesse estado, minha vida até este dia teria dado testemunho Dele.”
Silêncio (Silence) – EUA/Taiwan/Japão/México/Itália/Reino Unido,
2016, cor, 161 minutos.
Direção: Martin Scorsese. Roteiro: Jay Cocks e Martin Scorsese. Música: Kim Allen Kluege e Kathryn Kluge. Cinematografia: Rodrigo Prieto. Edição: Thelma Schoonmaker. Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Yōsuke Kubozuka, Issey Ogata, Tadanobu Asano, Ciarán Hinds, Shinya Tsukamoto, Yoshi Oida, Nana Komatsu, Ryo Kase, Béla Baptiste.