Mar-Vell, o Capitão Marvel, foi criado por Stan Lee e Gene Colan em 1967 mais como uma forma de garantir a existência (e os direitos autorais) de um personagem homônimo da editora do que por uma ideia mirabolante da mente criativa do lendário escritor e editor. Nas mãos de Roy Thomas e Gil Kane o personagem seria reformulado e Rick Jones, o sidekick do Hulk, passaria a compartilhar sua existência com a do super-herói Kree, aproximando-se da concepção de Shazam, o Capitão Marvel original da Fawcett Comics, que também possuía um alter-ego que não coexistia com o super-herói.
É nessa mesma dualidade que se desenrola a longeva trajetória da Capitã Marvel nos quadrinhos. Criada somente como Carol Danvers em 1968, por Roy Thomas e Gene Colan, a militar surge como coadjuvante e interesse amoroso do Capitão Marvel. Permanece relativamente obscura até 1977, quando a Marvel decide transformá-la em uma super-heroína, pelas mãos de Gerry Conway, na esteira dos movimentos femininos que pululavam na década: nasce a Ms. Marvel.
De participações importantes pelas mãos de Chris Claremont em histórias essenciais do universo mutante – de X-Men a Excalibur, com destaque para a reformulação da Vampira – a integrante dos Vingadores, Carol Danvers assume outros nomes (Binária e Warbird), enfrenta problemas com alcoolismo e perde os seus poderes. Torna-se Capitã Marvel apenas nos anos 2000, ganhando cada vez mais destaque nas principais sagas da editora ao longo da década.
A consagração definitiva acontece em 2012, pelas mãos de Kelly Sue DeConnick e Dexter Soy em uma elogiada série nos quadrinhos. Finalmente Carol Danvers torna-se a Capitã Marvel, um novo visual é criado e o outrora interesse amoroso de Mar-Vell transforma-se em um dos personagens mais poderosos do universo Marvel. A transição para os cinemas era muito aguardada, projetada desde 2013, e depois de 10 anos e 20 filmes, o Marvel Studios lança o seu primeiro longa-metragem com uma heroína protagonista, em produção comandada pela dupla de diretores indies Anna Boden e Ryan Fleck.
O roteiro escrito pela dupla de diretores em parceria com Geneva Robertson Dworet tem como grande trunfo não se fiar nos esperados passos de uma tradicional história de origem. Ao lançar o espectador na história de uma personagem que já é uma heroína estabelecida – e não uma aspirante –, com poderes e objetivos bem delineados, o longa-metragem pode investir na ação desde o começo. Por outro lado, acaba caindo na armadilha da repetição, com elipses sem fim e peças de quebra-cabeças que vão surgindo, quando tardiamente vê-se obrigado a esmiuçar a origem cronológica e as relações do passado da protagonista.
Vers (Brie Larson) é integrante da Starforce, uma equipe de elite militar do império Kree comandada por Yon-Rogg (Jude Kaw), seu mentor. A autoproclamada civilização superior e guerreira tem uma contenda milenar com os Skrulls, uma raça dotada de habilidades transmorfas. Durante uma missão que se revela uma emboscada, Vers termina aprisionada pelos skrulls. Quando consegue escapar acaba caindo na Terra, arrebentando o teto de uma Blockbuster, em 1999.
O general skrull Talos (Ben Mendelsohn) vem ao seu encalço e a Starforce também parte para a Terra. No meio de toda essa confusão, o agente da S.H.I.E.L.D Nick Fury (Samuel L. Jackson) será um aliado e parceiro, enquanto Vers começa a se reconectar com um passado terráqueo que havia sido enterrado em suas memórias, através do reencontro com Monica Rambeau (Lashana Lynch) e sua filha Maria (Akira Akbar) e dos questionamentos provocados em sua mente pela figura familiar que a Inteligência Suprema (Annette Bening) utiliza para se comunicar.
Nesse jogo de gato e rato é preciso desconfiar de todas as aparências – não só o poder dos skrulls é muito bem utilizado para pequenas reviravoltas no desenrolar da história, como as percepções de heróis e vilões, amigos e adversários, são revistas a todo instante, conforme os lapsos de memória da protagonista começam a desanuviar. Nas lembranças que surgem por flashes, Boden e Fleck conseguem imprimir suas marcas: tais momentos evocam algo do cinema de Alain Resnais, as rupturas entre tempo – passado e presente – e espaço, lembrança e realidade em um quase amálgama, soam como uma novidade bem-vinda.
É uma pena que a demonstração de talento da dupla se resuma a isso. No geral, a direção é monótona, sem charme ou diferencial, muito abaixo do alto padrão que diretores como os irmãos Russo, Taika Waititi e Ryan Coogler definiram recentemente no UCM. As sequências de ação, pouco inspiradas, em planos muito fechados e conduzidas com uma certa confusão visual, pecam pelo excesso de cortes. A sequência de Danvers contra skrulls no trem, ocorrendo em paralelo a uma perseguição de carro com Fury e Coulson (Clark Gregg) é interessante e as cenas espaciais possuem potencial, mas os diretores não conseguem ir além do trivial.
O desenvolvimento dos personagens sobressai em meio a tudo – essa foi a característica que levou Kevin Feige a buscá-los. A força maior de Capitã Marvel reside nisso e no seu elenco. Brie Larson constrói uma Carol Danvers firme e decidida, rápida nas respostas e reações e com um senso de humor flagrante, ácida; Samuel L. Jackson surge como o parceiro ideal para que ela encontre o seu rumo, boquiaberto com o tanto de alienígenas e impérios intergalácticos e poderes destrutivos que começam a fazê-lo rever tudo o que acreditava saber – entretanto, o agente nunca perde a ciência do ponto para onde deve se mover e do que precisa fazer para manter a Terra em segurança.
Ben Mendelsohn mais uma vez apresenta um antagonista sensacional – com muitas camadas entre um “vilão” e um “herói”, com as mãos sujas de sangue pela guerra – e o gato (?) Goose rouba a cena em sequências que remetem a MIB – Homens de Preto (1997). A ambientação noventista cativa especialmente pela graça feita com as diferenças tecnológicas, mas a trilha sonora de Pinar Toprak e a escolha de músicas da década nem sempre estão no mesmo tom das cenas. Phil Coulson (Clark Gregg) e Ronan, o Acusador (Lee Pace) infelizmente fazem participações extremamente curtas, sem muito espaço em muita história repleta de reviravoltas e ramificações, e parecem ter sido colocados no filme mais como um aceno ao espectador de longa data do que por outra coisa.
Sendo o primeiro filme do Universo Cinematográfico da Marvel com uma protagonista feminina, o impulso de cair no discurso pelo discurso poderia aparecer forte, mas Capitã Marvel, felizmente, consegue escapar disso. A importância da heroína é estabelecida com fluidez na narrativa e sua personalidade é bem construída – sem sexualização ou necessidade de um outro personagem para destravar o seu potencial.
Embora passe longe de aproveitar o potencial da heroína para criar cenas de ação memoráveis e o encadeamento rítmico tenha os seus engasgos, Capitã Marvel ao menos acerta em cheio na missão de introduzir a personagem de modo a torná-la relacionável com o público. Perseverante e resiliente, a Carol Danvers de Brie Larson é uma mulher que cai e é derrubada inúmeras vezes, mas que se levanta em todas elas, e nunca desiste, sempre superando seus próprios limites.
Ao escolher caminhar com as próprias pernas, sem precisar da aprovação de ninguém, trilha suas próprias estradas – e tais veredas a levarão a se tornar a defensora não apenas de uma raça, mas sim de todos aqueles que necessitam de ajuda, em vários lugares do universo.
Capitã Marvel (Captain Marvel) – EUA, 2019, cor, 124 minutos.
Direção: Anna Boden e Ryan Fleck. Roteiro: Anna Boden, Ryan Fleck e Geneva Robertson-Dworet. Música: Pinar Toprak. Cinematografia: Ben Davis. Edição: Elliot Graham e Debbie Berman. Elenco: Brie Larson, Samuel L. Jackson, Ben Mendelsohn, Annette Bening, Jude Law, Lee Pace, Lashana Lynch, Gemma Chan, Clark Gregg, Djimon Hounsou, Akira Akbar.