O engenhoso Lua de Júpiter é um drama. Mas também é uma ficção científica. Podemos categorizá-lo como um filme de ação. Ainda possui características de uma fantasia sobrenatural. No meio de tudo isso, tem política, tem humor, tem religiosidade, tem suspense, tem intriga. Erigido com absurda sofisticação técnica sob uma multiplicidade de aspectos e elementos aparentemente tão díspares, mas que se combinam com coesão levemente difusa em uma teia de inventivos planos-sequência de tirar o fôlego, o mais recente longa-metragem do húngaro Kornél Mundruczó lança o espectador em um viagem que o deixará com a mesma perplexidade flagrante no rosto do imigrante Aryan (Zsombor Jéger) quando voa pela primeira vez.
Um grupo de refugiados sírios, contrabandeados pelas estradas sérvias em um caminhão de frangos, tenta entrar na Hungria de barco, pela fronteira com o país. Aryan e seu pai, Muraad (David Yengibarian), estão entre eles. O caos se instala no meio da noite quando a guarda de fronteira descobre o grupo. Uma sequência vertiginosa tem início: homens, mulheres e crianças em uma fuga desesperada e insana que começa em um rio (com um plano-sequência primoroso que inclui um barco afundando sob artilharia pesada e cenas aquáticas) e parte para as florestas negras do país, por onde dezenas de pessoas correm entre as árvores tentando fugir dos policiais fortemente armados.
Aryan se perde do pai, sendo surpreendido por László (György Cserhalmi) em uma clareira. Enquanto tenta pegar os documentos no bolso do casaco, acaba baleado várias vezes à queima-roupa pelo cruel oficial – que no futuro irá reivindicar legítima defesa. Aryan cai no chão. Mas não morre. Flutua. Gotas do sangue que jorrou de suas feridas também flutuam ao seu redor. O jovem alça voo em uma sinfonia para além das copas das árvores, girando e girando em torno de si mesmo, até despencar no chão. Capturado, é levado para o hospital do campo de refugiados mais próximo.
Gábor Stern (Merab Ninidze) é o médico do lugar, um antro de violência e corrupção institucional onde os refugiados passam por uma triagem e são expulsos do país. Alcoólatra, decadente e corrupto, Stern vende referências médicas para refugiados abastados, que em seguida são transferidos secretamente para um hospital em Budapeste, onde sua namorada, a também médica Vera (Mónika Balsai), auxilia no esquema. Ele está juntando o dinheiro necessário para tentar subornar uma família a desistir de um processo: um jovem atleta olímpico morreu em uma cirurgia na noite de Natal por causa da negligência de Stern, que realizou a operação estando bêbado.
Ao se deparar com Aryan sobre uma maca regenerando as múltiplas feridas de bala e flutuando, incredulidade e fascinação tomam conta de Stern, que logo percebe o quanto de proveito financeiro será capaz de obter ao usar os dons do sírio, prometendo-lhe novos documentos em troca, além de ajuda para reencontrar o seu pai (falecido na travessia, mas nenhum dos dois ainda sabia do fato). O desfile de sequências de ação de Lua de Júpiter tem início com o médico tirando o jovem de dentro de um ônibus de refugiados, com uma revolta começando, janelas sendo quebradas, as pessoas fugindo para as matas e a polícia atirando em cima, tudo debaixo de uma câmera documental, que se move narrativamente em cada movimento.
O “anjo sem asas” passa então a ser levado a exibir seus poderes para ricaços à beira da morte que, diante da contemplação do “milagre”, depositam nas mãos do médico todas as suas economias. Uma amizade real acaba surgindo entre os dois, mas a rotina de milagreiro será interrompida pela caçada implacável que László irá infligir por toda a Budapeste, e um atentado terrorista cometido por alguns dos refugiados (que roubaram os documentos de Aryan e seu pai durante a caótica tentativa de cruzar a fronteira) colocará todas as forças de segurança do país na perseguição ao jovem.
Apesar de Lua de Júpiter abordar muita coisa, a sua estrutura narrativa é relativamente simples – o roteiro de diálogos expositivos não demora muito a explicar a sua metáfora sobre a relação entre o Homem e o Divino (“As pessoas esqueceram de olhar para o alto.”). A forma como o enredo ganha vida em imagens é que impressiona – e muito. O amálgama entre a direção de Kornél Mundruczó e a fotografia de Marcell Rev é absurdamente espetacular, conferindo vida pulsante a uma câmera intrusiva, espectadora e inquieta que faz com que tudo – personagens, cenários e história – se dobre aos caprichos dos seus movimentos arrojados de circulação por entre espaços, de descobrimento, de ocultação, de aproximação e distanciamento. É forma e conteúdo ao mesmo tempo. E o principal elemento utilizado nessa fusão é o plano-sequência.
Uma das peças mais valiosas da arte cinematográfica, o plano-sequência é um longo plano sem cortes que registra uma sucessão de acontecimentos a partir do movimento contínuo da câmera. Sempre agindo diretamente no fiar do tecido narrativo, ele pode acompanhar as ações de um personagem, ou as ações realizadas por vários personagens em um espaço, ou um ambiente e múltiplos personagens e situações que agem e acontecem nele, ou mesmo a alternância de ambientes através dos quais vários personagens e situações agem e acontecem.
De acordo com o teórico francês André Bazin, o plano-sequência evita a fragmentação do real que ocorre através da montagem. Normalmente os efeitos dramáticos são alcançados através da passagem de um plano para outro, enquanto no plano-sequência é o deslocamento dos atores e a movimentação da câmera a fazer isso. Em Lua de Júpiter, a sucessão de planos-sequência inacreditáveis não concorre apenas para o realismo, mas, ao contrário, em muitos momentos fragmenta a realidade e confere ao seu tecido o aspecto de fábula. A inventividade das complexas composições de Mundruczó e Rev auxilia a evidenciar a aura de prodigiosidade sobrenatural que acompanha a vida de Aryan depois do seu renascimento como um anjo sem asas.
Os planos longos e travelings são sinuosos. Nas sequências em que Aryan voa ou flutua, a câmera também entra na mesma sincronia dançante: gira sobre o seu eixo, vai e volta, voa e flutua como se fosse também uma personagem. Além de regenerar seus ferimentos, o jovem sírio cria uma espécie de campo gravitacional que captura objetos e pessoas ao seu redor. Em uma das visitas a pacientes ricos, eles encontram um racista que manda-os embora. Stern diz para Aryan “mostrar do que é capaz”. A composição dessa cena é simplesmente extraordinária. Somos lançados em um turbilhão e o apartamento é virado e revirado, literalmente: enquanto Aryan gira no ar, o homem, os móveis, os papéis e os eletrônicos vão caindo (para o teto) e caindo (para o chão) e caindo (para as paredes) em uma insana valsa onírica, ao som da ótima trilha-sonora instrumental de Jed Kurzel.
Já no terceiro ato, quando a narrativa dá uma guinada para a ação, a joia da coroa é uma espetacular sequência de perseguição de carro em plano-sequência. Posicionando a câmera no para-choque do carro de László (como uma visão de um game de corrida), passeamos em alta velocidade pelas ruas do centro histórico de Budapeste: pessoas saindo da pista para não serem atropeladas, carros desviando no último instante para não colidirem; ao fim, Aryan flutuando para escapar da colisão do carro, subindo para além dos prédios, para longe do perseguidor – na sequência, ao lado de Stern, a tentativa de refúgio no Hotel Budapeste e um inusitado concurso de dança, que antecede uma traição que joga a dupla em fuga pelos corredores sinuosos do hotel, sob gás das bombas de fumaças e tiros das forças especiais de segurança, em um fantástico tiroteio com perspectiva documental.
Lua de Júpiter é uma obra surpreendentemente original. Impressiona enquanto arte, com uma mise-en-scène fabular e um engenhoso trabalho de direção – seguramente um dos melhores que o cinema produziu em muito tempo –, através dos quais uma simples parábola é contada, recontada, destrinchada, repartida e multiplicada por uma coletânea de sequências construídas com um talento de artesão, sempre sob o olhar de uma câmera que emoldura cada quadro como se capturasse uma escultura religiosa, destinada ao culto: o anjo sem asas é esculpido pela teologia de Mundruczó como um santo injustiçado – como quase todos o foram –, um quase mártir; as pessoas que olham suplicantes para os céus a cada voo seu parecem buscar mais do que conforto, redenção – Stern consegue alcançá-la.
De acordo com a NASA, Europa, uma das 67 luas de Júpiter, é o lugar com a maior probabilidade de abrigar vida em nosso Sistema Solar. O título do longa-metragem não é à toa. Na metáfora da qual Aryan é o protagonista, as pessoas que acorrem para o Velho Continente fugidas das guerras, das perseguições e do ódio, buscam por lá um lugar propício às suas vidas que não mais poderiam ter em suas terras natais. Acabam por não encontrar tantas diferenças assim, muitas das vezes: o terrorismo islâmico, o racismo, o preconceito, a corrupção estatal, tudo isso os persegue no “primeiro mundo”.
Mundruczó oferece um delicado olhar religioso sobre um continente cada vez mais desgarrado da fé. Um olhar voltado para o alto. Aryan voa e voa e voa. Enquanto uma criança brinca de esconde-esconde, olhos fechados e contando, alheia ao que acontece ao seu redor, a dança aérea é acompanhada pelos olhos de todos os que permanecem pisando o solo, tão perplexos quanto o jovem sírio – e igualmente maravilhados com o milagre que aponta a transcendência como o escape necessário para as chagas incuráveis do cotidiano da humanidade.
Lua de Júpiter (Jupiter holdja) – Hungria, 2017, cor, 129 minutos.
Direção: Kornél Mundruczó. Roteiro: Kornél Mundruczó e Kata Weber. Música: Jed Kurzel. Cinematografia: Marcell Rév. Edição: Dávid Jancsó. Elenco: Merab Ninidze, Zsombor Jéger, György Cserhalmi György Cserhalmi e Mónika Balsai.