Uma família movimenta-se cuidadosamente em uma loja abandonada de uma cidadezinha qualquer. É o “dia 89” de um recente mundo pós-apocalíptico. Os passos nas pontas dos pés, a ausência de diálogos e o vagar cuidadoso com que cada gesto é efetuado, enquanto a família coleta os poucos suprimentos e medicamentos restantes do lugar, rapidamente indicam o quanto o menor ruído pode ser perigoso e mortífero nesse novo mundo.

Não irá demorar muito para que percebamos qual é a ameaça que obriga essas pessoas a uma sobrevivência no mais estrito silêncio: criaturas terríveis vindas do espaço sideral invadiram a Terra e dizimaram boa parte da humanidade. Os poucos seres humanos restantes são obrigados a viver no mais absoluto silêncio; os monstros, cegos, possuem uma audição extremamente aguçada.

O perigo que essas criaturas representam é mostrado em um desenrolar trágico envolvendo o caçula (Cade Woodward) dos três filhos e um barulhento ônibus espacial de brinquedo que a criança, inadvertidamente, ativa. O ataque é tão rápido quanto brutal. E um aterrorizado e impotente pai (John Krasinski) nada pode fazer para salvar seu filho.

Um ano se passou desde a tragédia e a família continua a sofrer, enquanto a mãe (Emily Blunt) se prepara para a chegada de um bebê. Os outros dois filhos do casal são uma criança (Noah Jupe) e uma adolescente surda (Millicent Simmonds, deficiente auditiva na vida real), de modo que a linguagem de sinais (legendada na tela) já fazia parte da vida dessa família antes que todo o pesadelo começasse. Diante do perigo de criaturas mortíferas que surgem de qualquer lugar ao menor som emitido por um ser humano, a vida nesse futuro pós-apocalíptico torna-se uma emulação da experiência monástica – e não parece coincidência que o sobrenome da família seja Aboot (“abade” em inglês).

Os Aboots conduzem suas vidas como se vivessem em um mosteiro: trabalho em silêncio no milharal da fazenda onde vivem e sobre os livros e revistas em casa, orações silenciosas antes das refeições, conversas em sinais ou aos sussurros… No quintal, areia no chão para abafar os passos, sempre descalços; pela casa, marcas no assoalho para saber em que lugar pisar sem provocar rangidos. Essa construção deliberada de um universo o menos sonoro possível faz com que tudo o que costuma passar ao largo da nossa audição, ainda mais no mundo barulhento em que vivemos, assuma aqui um destaque maior: a brisa entre as árvores, o farfalhar das folhas, a água molhando o rosto, as batidas de um coração, etc., tudo é amplificado em Um Lugar Silencioso.

Na vida em família, generosidade plena. Os jovens irmãos auxiliam-se mutuamente. A jovem surda arrisca-se para ir até uma ponte prestar tributo ao irmão morto um ano atrás. Na possível dúvida de que houvesse uma razão para seguir sobrevivendo, a gravidez dissipa tudo. Nas circunstâncias em que se encontram, em vez de tentarem impedir o nascimento da criança (como o mundo moderno tão comumente faria, como algo corriqueiro e desprovido de impacto), decidem levar a escolha pela vida adiante – e o pai se debruça em estudar formas de tornar viável a existência de um recém-nascido em mundo que aboliu o barulho, ao mesmo tempo em que tenta descobrir como mexer em um implante coclear de modo que a sua filha possa vir a ter uma audição plena.

As atuações fortalecem Um Lugar Silencioso e conferem verossimilhança para a sua narrativa, especialmente em sua primeira metade, quando somos lançados em uma imersão total na rotina daquela família. Jupe entrega toda a sensibilidade necessária ao seu personagem e Krasinski consegue transmitir em sua face e em seus gestos todo o amor abnegado e sacrificante que devota à sua família, partindo sem temor contra os monstros para livrar seus filhos do perigo. Ao término, não hesita em sacrificar-se para atrai-los e afastá-los das crianças, em uma reconciliação emocionada com a filha que julgava erroneamente que o pai a amasse menos por causa do ocorrido com o irmão.

Simmonds carrega por todo o filme uma raiva, alimentada pela traumática culpa internalizada por ter sido quem entregou em segredo ao irmão mais novo o brinquedo que levou à sua morte, depois de os pais não terem deixado que o menino levasse o objeto da loja. Ao mesmo tempo, anseia ser capaz de ouvir, mas as tentativas frustradas do seu pai em consertar o seu aparelho só fazem com que a jovem o afaste ainda mais. Do meio para o final, vai tornando-se cada vez mais o centro da trama – e virá do aparelho, sobre o qual seu pai gasta tanto tempo, a solução para enfrentar as criaturas.

Mas o destaque todo está em Blunt, como uma mãe amorosa que educa e protege seus filhos, par a par com o seu marido, e que sofre ainda mais que os outros membros da família por causa da gravidez. A sua personagem protagoniza as sequências de horror mais angustiantes do longa-metragem, com destaque para o nascimento da criança, quando ela se encontra extremamente vulnerável pela situação em si, tendo ainda afundado seu pé em um prego, e vê-se sozinha, entrando em trabalho de parto em uma banheira, com o monstro à espreita, esperando um ruído apenas para devorar-lhe e a seu filho.

Krasinski investe em muitos planos-detalhes para criar tensão em torno dos possíveis sons que nos farão entrar na história, como o prego exposto na escada de madeira para o porão, ao caminho de todos, e os cliques do aparelho auditivo da filha mais velha. O brilhante trabalho de som de Ethan Van Der Ryn e Erik Aadahl estabelece a ambientação perfeita para o universo de Um Lugar Silencioso. Há os jumpscares típicos do atual cinema de horror e alguns usos demasiados da ótima trilha sonora de Marco Beltrami que não fogem ao que vemos de maneira tão massificada no gênero, mas na maior parte do tempo as escolhas narrativas, de direção e o trabalho de som produzem algo extremamente inovador e interessante.

Enquanto se dedica a erguer um mundo no qual a vida está obrigada a se adaptar à existência em absoluto silêncio, com uma rotina familiar sem gritos, sem exclamações, sem risos, sem choros, sem protestos, sem portas batendo ou janelas se fechando, Um Lugar Silencioso encontra o seu melhor e expõe o seu lado mais atrativo e apaixonante. Em vez do tradicional futuro pós-apocalíptico no qual a humanidade parece ascender à categoria dos super-heróis, deixando de lado todo tipo de trivialidade, Krasinski prefere descer aos pormenores de uma sobrevivência humana em que o simples cotidiano precisa ser reinventado, na solidão e no silêncio. São nesses momentos que ele mostra um potencial imenso e produz sequências que ombreiam com clássicos do horror e do suspense.

É uma pena que ele se perca a partir da metade, caindo nas armadilhas do gênero e começando a mostrar excessivamente as criaturas (genéricas demais, óbvias demais), quando o melhor seria deixá-las escondidas por mais tempo – como em Tubarão (1975) e Alien – O Oitavo Passageiro (1979), duas das suas influências declaradas. De um brilhante terror de atmosfera, psicológico e tenso, com uma ambientação perfeita, calcada em um visual refinado, quase sem diálogo algum, Um Lugar Silencioso metamorfoseia-se em um terror genérico, com fugas e caçadas contra monstros que já vimos em muitos filmes e que emitem os sons que todo monstro do cinema de horror da atualidade emite – em um filme totalmente erguido no silêncio e cujos antagonistas são extremamente sensíveis ao silêncio, seria muito mais condizente com suas naturezas se eles não emitissem nenhuma espécie de som audível.

Uma mãe que acabou de ter um filho engatilhando uma escopeta é o quadro final a indicar uma virada completa para a ação em uma provável continuação. Na apresentação de uma atmosfera em que o mundo deve ser pensado como um adversário, com seus obstáculos infinitos, por onde o ser humano precisa caminhar resiliente, adaptando-se e superando as adversidades, Krasinski instiga o espectador com soluções criativas e uma técnica visual competente e imaginativa. Quando não resiste aos anseios do cinemão do horror do século XXI embrenha-se com gosto no lugar-comum, tornando-se até mesmo, ironia das ironias, barulhento – será o efeito da simples presença de Michael Bay na produção? Um Lugar Silencioso é um filme com duas faces. Uma classe A; a outra, classe B. Somando as duas, fica na média – e deixa a sensação de potencial desperdiçado.

Um Lugar Silencioso (A Quiet Place) – EUA, 2018, cor, 90 minutos.
Direção: John Krasinski. Produção: Michael Bay, Bradley Fuller e Andrew Form. Roteiro: John Krasinski, Scott Beck e Bryan Woods. Música: Marco Beltrami. Cinematografia: Charlotte Bruus Christensen. Edição de Som: Ethan Van Der Ryn e Erik Aadahl. Edição: Christopher Tellefsen. Elenco: Emily Blunt, John Krasinski, Millicent Simmonds, Noah Jupe, Cade Woodward, Leon Russom, Doris McCarthy e Rhoda Pell.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.