“Ele foi ferido por nossas transgressões,
=esmagado por nossas iniqüidades;
por Suas feridas fomos curados.”
Isaías 53.
A crucifixão de Jesus dividiu a história do mundo em um antes e um depois. Os eventos descritos nos quatro evangelhos canônicos, e atestados por várias fontes antigas e não-cristãs, ocorreram por doze horas nos arredores de Jerusalém no ano 33 e são designados na teologia cristã como Paixão (do latim passio, “sofrimento, arte de suportar“). Durante sua agonia espiritual (“E seu suor tornou-se como gotas de sangue a escorrer pela terra.” Lc 22, 44) no Getsêmani, jardim situado no Monte das Oliveiras, Jesus foi entregue por Judas Iscariotes aos sumos sacerdotes e preso. Julgado pelo Sinédrio (assembleia de juízes judeus), por Pôncio Pilatos (governador da província romana da Judeia) e por Herodes Antipas (tetrarca da Galileia), foi condenado à morte. Flagelado pelos romanos na coluna, zombado, coroado com espinhos e obrigado a carregar a cruz até o local de sua execução, Jesus resiste ao suplício por cerca de seis horas, até a hora nona (três da tarde), quando solta um brado (“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” Lc 23, 46) e expira pela última vez no alto do Gólgota.
Não foram poucas as vezes que o cinema adaptou a vida (e a morte) do maior homem que caminhou sobre a Terra. O Rei dos Reis (1961), de Nicholas Ray, O Evangelho Segundo São Mateus (1964), de Pier Paolo Pasolini, A Maior História de Todos os Tempos (1965), de George Stevens, Jesus de Nazaré (1977), de Franco Zeffirelli, A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese… muitos foram os filmes (bons e ruins) que retrataram a jornada desse jovem carpinteiro e profeta de Nazaré, mas nunca antes uma obra cinematográfica havia alcançado o grau de realismo na representação do sofrimento e de qualidade na reconstituição histórica daquele período que Mel Gibson foi capaz de atingir com A Paixão de Cristo em 2004.
Uma via-crúcis cinematográfica
É possível afirmar sem erro que A Paixão de Cristo é um dos filmes mais controversos da história – talvez o primeiro entre todos. Nunca na história do cinema uma obra foi tão atacada antes, durante e depois do seu lançamento. Quando o projeto ainda se chamava “A Paixão“, em meados de 2001 e 2002, parecia fadado ao fracasso antes mesmo de ser concretizado. Mel Gibson era um astro milionário, responsável por algumas das maiores bilheterias do cinema nas décadas de 1980 e 1990 e vencedor do Oscar de Melhor Filme e Melhor Diretor por Coração Valente em 1995, mas ainda assim não conseguiu nenhuma espécie de financiamento ou distribuição dos estúdios de Hollywood para o projeto – um acordo de distribuição chegou a ser fechado com a 20th Century Fox, mas a empresa voltou atrás depois de inúmeros protestos públicos que acusavam a obra, em pré-produção, de anti-semitismo; a Fox posteriormente acertou um contrato para distribuir a versão do filme em VHS/DVD/Blu-ray. Como o próprio Gibson afirmou em uma entrevista para a Hollywood Reporter em 2002: “Este é um filme sobre algo que ninguém quer tocar, filmado em duas línguas mortas. Em Los Angeles eles acham que eu sou louco, e possivelmente eu sou.”
No final, Mel Gibson e sua empresa Icon Productions, fundada em 1989, foram os únicos responsáveis pela produção de A Paixão de Cristo, distribuído nos EUA pela Newmarket Films e gravado de forma independente na Itália – nos estúdios da Cinecittà Studios em Roma e na região da Basilicata, em Sassi di Matera, centro histórico da cidade de Matera, classificado como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1993, e em Craco, uma cidade fantasma desde a década de 1980. O filme consumiu estimados US$ 45 milhões de dólares, entre custos de produção e gastos com marketing, totalmente bancados por Gibson, que assumiu as funções de produtor, diretor e roteirista do longa-metragem.
As polêmicas cercaram a A Paixão de Cristo o tempo inteiro – e muitas delas perduram até os dias de hoje. O filme foi proibido no Kuwait e no Bahrein e tentativas judiciais de conseguir a sua retirada dos cinemas se espalharam pelo mundo ocidental – sem sucesso. Anti-semita, fascista, sadomasoquista, fundamentalista: sobraram acusações contra a obra – e também sobre seu autor, costumeiramente chamado de “fundamentalista católico” na grande imprensa –, condenada por vários líderes judaicos, católicos e protestantes, pensadores esquerdistas e jornalistas do mundo inteiro. A Paixão de Cristo polarizou as críticas cinematográficas e era constantemente classificada como “quase pornográfica, excessivamente brutal e violenta e difamatória para com os judeus“.
Em uma sociedade ocidental extremamente secularizada, a cobertura da imprensa, nos EUA e no mundo, ultrapassou em muitas jardas o aspecto informativo e converteu-se em campanha pessoal de destruição e difamação, tanto da obra quanto de Mel Gibson, com ataques sendo feitos até contra a sua família. Tudo isso acabou exercendo um efeito contrário ao que provavelmente era o esperado. Gibson investiu em um marketing de guerrilha, centrando toda a publicidade de A Paixão de Cristo na televisão e aproximando-se ativamente de líderes religiosos da comunidade protestante norte-americana – decisão que mostrou-se um enorme acerto. Esses líderes movimentaram suas comunidades de fiéis, que acorreram em massa para os cinemas, e os ataques diários da imprensa, que sem perceber exercia um marketing gratuito para o diretor, só fizeram ampliar o interesse do grande público pelo filme.
A Paixão de Cristo terminou sendo um fenômeno comercial no mundo inteiro. O orçamento de US$ 45 milhões resultou em uma bilheteria total de US$ 611,899,420 (dos quais US$ 370,782,930 foram arrecadados somente nos EUA, onde o filme detém o recorde de maior bilheteria em língua estrangeira da história, o que torna o feito ainda mais impressionante quando lembramos que os norte-americanos possuem uma enorme resistência a filmes legendados), tornando-se o filme religioso de maior bilheteria mundial de todos os tempos. O filme ainda foi indicado nas categorias de Melhor Fotografia, Melhor Maquiagem e Melhor Trilha Sonora Original no Oscar 2005.
A Paixão de Cristo, um filme de Mel Gibson
A arte é uma espécie de resposta humana à realidade que nos rodeia. É uma forma de comunicação que busca alcançar algo que vá além do mundano. Na história da humanidade, a religião sempre se manifestou de forma simbiótica com a arte, porque trabalha, em muitos aspectos, em uma mesma linha conceitual. A transmissão de uma tradição que é sagrada também necessita de uma forma de comunicação que busque ir além do trivial, e é nesse paralelismo que religião e arte encontram-se de maneira decisiva.
Toda arte conta uma história. Aquela que é visível (ou escutável, compreensível) em um primeiro momento, e aquela que está além do véu, no entendimento mais profundo dos seus símbolos e recursos. A arte provoca e incita sentimentos, convida para um mistério. O retrato da Paixão de Cristo nos quatro evangelhos canônicos ocupa, no máximo, umas duas páginas: a arte completa os espaços que a narrativa não expõe e não alcança, trazendo a história para mais perto da realidade.
Ao longo de vinte séculos, na liturgia católica romana e ortodoxa, no sacrifício da cruz atualizado na Santa Missa, na via dolorosa, nos cânticos sacros, nas obras de arte dos grandes mestres da pintura e da escultura, nos escritos profundos e místicos dos santos, nas mãos e pés dos estigmatizados e nas orações devocionais das pessoas mais simples, as chagas de Jesus, as dores de Sua Paixão, foram adoradas, contempladas, meditadas, estudadas, revisitadas e representadas. Mas nunca no cinema. Por mais que inúmeros filmes já houvessem mostrado a Paixão de Cristo anteriormente, nenhum deles preocupou-se em se aprofundar na representação do sofrimento. Ninguém filmou com crueza as doze horas de tormento desumano que Jesus vivenciou. Ninguém quis ser como Tomé e colocar o dedo nas chagas, para ver de perto a extensão das feridas. Ninguém, até Mel Gibson.
Filho de irlandeses, nascido em Nova York, EUA, e criado na Austrália desde os doze anos, Mel Gibson despontou para o sucesso como ator de filmes de ação na década de 1980. No início da década de 1990 expandiu seus trabalhos para a produção e a direção, conquistando sucesso artístico ainda maior. Sua filmografia é pequena, mas de extrema qualidade e genuinamente autoral. Com um estilo facilmente reconhecível em todos os cinco filmes que dirigiu, Gibson explora ao máximo os seus recursos prediletos como diretor em A Paixão de Cristo: representação gráfica extremamente detalhada da violência, planos e composições impactantes, a câmera próxima dos atores, uma capacidade ímpar de sugar o espectador para dentro da história que está sendo narrada e o uso constante do slow motion.
Anatomia do tempo
Um segundo de um filme compõe-se de 24 quadros desde a invenção do cinema sonoro. Quanto mais quadros por segundo forem utilizados, mais lenta será a exibição da imagem na tela. Mel Gibson optou por rodar A Paixão de Cristo por inteiro – mesmo as cenas com diálogos – em uma velocidade diferente do normal. A grande maioria das tomadas foram feitas a 28 ou 30 quadros por segundos e algumas a 40. Isso criou uma sensação constante de “câmera lenta” mesmo quando o recurso não é claramente utilizado. Gibson esticou o tempo de cada cena – e um simples quadro pode mudar todo o ritmo de uma sequência e até mesmo alterar a percepção do espectador –, fazendo de A Paixão de Cristo uma espécie de pintura em movimento, graciosa e lírica, com um quê de sobrenatural, que move-se em um ritmo fluído e ritmado, imprimindo suavidade e peso emocional a cada movimento: olhares, piscadelas, gestos, agressões e quedas.
“As pinturas de Caravaggio não têm legendas, mas as pessoas recebem a mensagem. (…) Acho que a imagem vai superar a barreira do idioma. Essa é a minha esperança“, disse Mel Gibson em 2002, em entrevista ao Zenit. Como se não bastasse a ousadia de produzir o filme nos idiomas falados na época de Jesus, buscando o máximo possível de realismo, Gibson ainda pretendia lançar A Paixão de Cristo sem legendas, com a intenção de simular a experiência de fazer parte daquela época. Obviamente a ideia não foi adiante, mas seus ecos podem ser sentidos na direção e na montagem. Da predileção de Gibson por filmar composições de impacto, o montador John Wright tentou usar ao máximo aquelas que explicassem visualmente o que se passava, sem que as palavras fossem necessárias para o pleno entendimento. O filme adentra com talento na tradição do cinema clássico norte-americano, contando boa parte de sua história através das imagens, revelando-se por inteiro naquilo que não é dito.
Cinematografia renascentista, reconstrução histórica e trilha sonora
A fotografia de Caleb Deschanel é um dos pontos altos em um filme repleto de destaques. Deschanel e Gibson mergulharam fundo na iconografia cristã e nos seus quase dois mil anos de história, em especial no período renascentista, caracterizado por uma excelência na forma e na técnica, com obras realistas e idealizadas. O estilo renascentista de Michelangelo, El Greco e Fra Angelico, o barroco de Caravaggio e o academicismo de Bouguereau são as inspirações mais notórias. A longa cena de Jesus morto nos braços de Sua Mãe, Maria, bebe diretamente da famosa escultura da Pietà de Michelangelo e o plano seguinte, em que o olhar entristecido de Maria encontra-se diretamente com a câmera, foi inspirado no impressivo quadro da Pietá de Bouguereau.
A luz é dinâmica e bonita e a fotografia estabelece a realidade emocional de todos os atos do filme. Na sequência inicial, no Getsêmani, o cenário é todo mergulhado em um tom azulado, remetendo ao divino, sendo manchado pela luminosidade dourada das tochas daqueles que vieram prender Jesus, em um fantástico jogo de luz e sombra. A partir da condenação, as cores mergulham em uma atmosfera antiga, de aspecto empoeirado e salpicada de vermelhidão, dialogando com a extrema violência vivenciada pelo protagonista, para tornar-se mais clara ao final, metaforizando visualmente a fala de Jesus na discussão com os fariseus (“Eu sou a luz do mundo“, Jo 8, 12). Uma fotografia desse nível jamais funcionaria completamente se os demais elementos técnicos não estivessem à altura. E eles estão. O design de produção de Francesco Frigeri, a direção de arte de Pierfranco Luscri, Daniela Pareschi e Nazzareno Piana, o trabalho de figurino de Maurizio Millenotti, a trilha sonora de John Debney e as equipes de maquiagem e efeitos visuais – lideradas por Keith Vanderlaan – e mixagem e edição de som fizeram um trabalho de reconstrução histórica impressionante.
As cidades da região da Basilicata usadas nas cenas externas possuem mais de dois mil anos de idade e suas construções, vielas e morros são muito parecidas com a região da Judeia. Nos sets construídos no Cinecittà Studios, aproveitando-se do material que sobrou de Gangues de Nova York (2002), de Martin Scorsese, Francesco Frigeri desenhou cenários grandiosos que evocam diretamente a antiga Jerusalém, como o imponente Pretório. Os elaborados figurinos são belos e detalhistas, envelhecidos e com aspecto de produção manual. Os efeitos visuais são todos práticos, com o uso do chroma key apenas quando necessário (como na cena do terremoto ou quando a mão de Jesus é pregada na cruz), mas sem nenhuma utilização de CGI – tudo foi captado pelas câmeras. Uma nova técnica de maquiagem foi desenvolvida especificamente para o filme, utilizando tatuagem temporária, e também um novo tipo de sangue falso – todo o trabalho de maquiagem é visualmente impressionante, talvez o que mais choca o espectador, devido ao seu alto grau de realismo. Um boneco animatrônico de Jim Caviezel com pulmões mecânicos foi construído para alguns takes da crucifixão. A evocativa trilha sonora é repleta de experimentação sonora, com instrumentos étnicos do mundo inteiro que conferem à sonoridade um aspecto universal, com características de várias culturas. Em vez de trazer Jesus para o presente, o esmero técnico da produção do filme transportou o público para o passado, convertendo cada espectador em uma espécie de observador invisível dos acontecimentos de dois mil anos atrás.
Roteiro: as estações do caminho da cruz
A via sacra ou via-crúcis (do latim via crucis, “caminho da cruz“) é um exercício espiritual católico que consiste em percorrer mentalmente todo o trajeto seguido por Jesus desde a condenação por Pilatos no Pretório até a sua crucifixão no Calvário e posterior sepultamento, meditando, nesse ínterim, a Sua Paixão. São quatorze estações, ou etapas, em que cada uma apresenta uma cena da Paixão. Essa tradição remonta a época das Cruzadas, quando os fiéis percorriam na Terra Santa os lugares sagrados por onde Jesus passou e tem um lugar de destaque no tempo da Quaresma, na liturgia da Semana Santa.
O roteiro escrito por Mel Gibson e Benedict Fitzgerald acompanha as doze horas finais de Jesus com alguns acréscimos anteriores (a agonia no Horto das Oliveiras e Jesus preso na casa do príncipe dos sacerdotes) e flashbacks pelo meio do caminho – o sermão da montanha [Lc, 5-7], a profecia da negação de Pedro feita por Jesus [Mt 26, 33-35], Pedro negando Jesus por três vezes [Lc 22, 54-47], Jesus lavando os pés dos Apóstolos [Jo 13, 1-17], a entrada de Jesus em Jerusalém montando um jumento [Lc 19, 41], a mulher adúltera identificada como Maria Madalena [Jo 8, 1-11], a última Ceia [Mc 14, 17-31], além de inserções de Jesus na infância e na juventude em situações cotidianas com a Sua Mãe. Os quatro evangelhos canônicos são a base estrutural da história, sobre a qual os dois roteiristas acrescentaram os elementos da via sacra, estruturando a narrativa em cima das suas estações, reflexões bíblicas do Gênesis e do Apocalipse, enxertos da tradição cristã (como o véu de Verônica) e as visões místicas da freira agostiniana alemã Anne Catherine Emerich (1774-1824), beatificada por São João Paulo II em 2004, que são narradas no livro A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e descrevem com uma impressionante riqueza de detalhes os sofrimentos, as dores, as torturas, os açoites, as humilhações e a crucifixão a que Jesus Cristo foi submetido.
A tradução do roteiro para o aramaico e o latim (e alguns trechos para o hebraico) foi feita pelo padre jesuíta William J. Fulco e a consultoria teológica foi dada pelo padre legionário John Bartunek. Apesar de não possuir mais falantes nativos, o latim é o ancestral das línguas latinas, influenciou várias línguas modernas, foi fonte para a ciência, a filosofia e o direito e ainda é empregado pela Igreja Católica em ritos litúrgicos e na burocracia. Já o aramaico, língua semítica surgida na Síria e idioma de vários textos do Antigo Testamento, não viajou através dos séculos, perdendo-se no tempo. Ninguém sabe ao certo como era o aramaico falado na época de Jesus. Fulco reconstruiu a língua a partir da literatura existente em aramaico antigo, produzindo uma representação plausível e que os atores articularam nas gravações a partir de um hercúleo treinamento fonético, no qual precisavam aprender exatamente o que estavam dizendo em cada sílaba e palavra, para que não pronunciassem o idioma com seus sotaques nativos.
Católico tradicionalista, filho de Hutton Gibson, um famoso sedevacantista (aquele que acredita que a “Sé [o papado]está vacante [vazio]”), Mel Gibson participa apenas da Missa na Forma Extraordinária do Rito Romano, celebrada desde o Concílio de Trento (1545-1563), que unificou a liturgia na Igreja do Ocidente, mas gradativamente foi sendo esquecida após a criação da atual Forma Ordinária do Rito Romano no Concílio Vaticano II (1962-1965). A imagem e a linguagem de A Paixão de Cristo fluem diretamente dessa experiência pessoal de Gibson com um rito litúrgico extremamente atmosférico e imersivo, no qual a não compreensão do seu idioma, o latim, não é empecilho para absorver a sua mensagem – o ritual transcende a linguagem.
O catolicismo é facilmente reconhecível em todos os aspectos do filme, como no papel destacado de Maria, na representação de Satanás e no foco no sofrimento humano de Jesus, que é um tema central da teologia católica pelos séculos dos séculos. A conexão estabelecida entre a Última Ceia, a crucifixão e a Missa é evidente – na doutrina católica, o sacrifício da Missa, Pão e Vinho transmutados em Corpo e Sangue durante a consagração, é o mesmo sacrifício de Cristo na cruz. Não é uma representação ou uma memória, mas a mesma morte do Calvário rompendo o espaço-tempo e se realizando misticamente, de maneira incruenta (sem derramamento de sangue) em todos os altares da Terra. Para completar, a narrativa é pontuada e marcada pelas estações da via sacra, deixando de mostrar apenas dois passos, o VIII e o XIV: I. Jesus é condenado à morte; II. Jesus toma a Sua Cruz; III. Jesus cai pela primeira vez; IV. Jesus encontra Sua Mãe Santíssima; V. Simão Cirineu ajuda Jesus a levar a Cruz; VI. Uma piedosa mulher enxuga a face de Jesus; VII. Jesus cai pela segunda vez; VIII. Jesus consola as filhas de Jerusalém; IX. Jesus cai pela terceira vez; X. Jesus é despojado das Suas vestes; XI. Jesus é pregado na Cruz; XII. Jesus morre na Cruz; XIII. Jesus é descido da Cruz e entregue à Sua Mãe; XIV. Jesus é colocado no sepulcro.
Jesus Cristo e Jim Caviezel
Aos 33 anos de idade quando foi chamado para o papel, Jim Caviezel foi a escolha de Mel Gibson desde o início. Para o diretor, se havia um norte-americano que poderia interpretar Jesus, era Caviezel. Uma estrela em ascensão em Hollywood antes de 2004, sua capacidade de transparecer a dor física e psicológica que Jesus sofreu durante o Seu Calvário impressiona, a ponto de em muitos momentos ser possível imaginar que ele estava realmente sofrendo um martírio – e sua jornada no set foi exatamente essa.
A maquiagem levava oito horas para ser aplicada e o ator ficava curvado a maior parte do tempo. Em algumas ocasiões foi obrigado a dormir maquiado. Só podia ver com um dos olhos por causa da maquiagem fechando o outro, e isso gerou dores de cabeça contínuas. A coroa de espinhos afetava a sua respiração. No monte em que a crucifixão foi rodada, ventava forte e fazia frio, e ele permaneceu por horas pendurado no alto da cruz apenas com a virilha coberta. Na sequência do flagelo foi atingido duas vezes pelos ganchos, ficando com um enorme corte nas costas. No decorrer das filmagens, Jim Caviezel teve hipotermia, infecção no pulmão, pneumonia, infecções na pele, uma enxaqueca persistente, dores nas costas, nas mãos, nos braços, um ombro deslocado, a cruz caiu sobre sua cabeça fazendo-o cuspir sangue, e chegou a ser atingido por um raio.
Sua expressão doce e bondosa em cena, acompanhada de uma voz suave e baixa, impressionam ainda mais quando sabemos desses vários tormentos e provações reais pelos quais o ator passou. Ele se colocou no papel de Cristo – e sofreu. Católico romano, assim como Mel Gibson, Jim Caviezel comungava todos os dias antes das gravações, na Santa Missa no Rito Extraordinário (também conhecida como Missa Antiga, Missa de Sempre ou Rito Gregoriano, obrigatoriamente rezada em latim e com canto gregoriano) que o diretor conseguiu que fosse celebrada no set pelo padre canadense Stephen Somerville.
Logo depois de ter interpretado Cristo, as portas da indústria foram se fechando uma atrás da outra para Jim Caviezel. Antes de sua contratação, Mel Gibson o advertiu das consequências negativas que o papel poderia trazer para a sua carreira, mas ele aceitou assim mesmo. Abraçou a sua cruz. Ser Jesus Cristo no cinema arruinou sua carreira, mas ele não se arrepende: afirma que ter interpretado o Filho de Deus transformou sua vida, fortaleceu a sua fé e o jogou nos braços de Deus.
As testemunhas do Calvário
Shaila Rubin, histórica diretora de casting, foi a responsável pela construção do elenco extremamente multicultural de A Paixão de Cristo. Mel Gibson não queria estrelas na produção (Monica Bellucci foi a exceção) para que o público os visse como personagens e embarcasse em uma outra realidade sem impedimentos. Além disso, a utilização do aramaico e do latim fez com que a obrigatoriedade de um ator que falasse inglês fosse inexistente. Em um elenco majoritariamente formado por italianos, somaram-se atores romenos, búlgaros, suíços, poloneses e tunisianos.
A romena Maia Morgenstern interpreta Maria, a mãe de Jesus. Seu papel é pequeno, silencioso – dentre outros títulos, Maria é também a Virgem do Silêncio na tradição cristã –, mas essencial e forte. Permanentemente ao lado do seu Filho, nas Escrituras e na tradição cristã, a Virgem das Dores é a mãe enlutada que suporta o sofrimento insuportável. Cônscia daquilo que está ocorrendo diante dos seus olhos – o necessário e inevitável sacrifício do seu Filho único –, sua dor é ainda maior do que qualquer dor que uma mãe pudesse sentir e seu desespero é diferente – e mesmo assim ela é capaz de consolar Pedro e Maria Madalena. Mel Gibson dá um tratamento especial à Mãe do Redentor ao longo da história, com a piedade católica esperada, e Maia Morgenstern (grávida durante as filmagens) entrega uma atuação sensível, que capta todas as nuances do sofrimento da Virgem, protagonizando algumas das cenas mais belas e comoventes de A Paixão de Cristo, como a sequência em que vê Jesus caindo pela segunda vez sob o peso da cruz e se lembra dele menino, tropeçando nos degraus de pedra da humilde casa em Nazaré. A mãe no passado corre para pegar o menino em seus braços, a cena se misturando com a mãe no presente que corre para acudir seu Filho na cruz.
Rosalinda Celentano interpreta o mal encarnado, uma figura andrógena que surge em vários momentos da via dolorosa de Jesus. Com um rosto simétrico, sobrancelhas raspadas e uma aparência desnutrida e emaciada, não é possível saber se é um homem ou uma mulher – ainda mais com a sua voz sendo manipulada digitalmente. Durante a flagelação, caminha atrás dos sumos sacerdotes e dos soldados romanos carregando uma criança deformada – maléfico, distorcendo o que é belo e sagrado na tradição cristã e disfarçando-se como algo puro. Monica Bellucci e Hristo Jivkov não possuem muitas falas como Maria Madalena e João Evangelista, segurando suas interpretações na expressividade de seus rostos. Hristo Shopov apresenta um Pôncio Pilatos massacrado internamente pela certeza de estar condenando um homem inocente e todos os demais personagens, como Simão Cirineu, Pedro, Judas, Verônica, Herodes, Caifás, Dimas e Gestas, mesmo em curtas participações conseguem ter seus momentos de brilho.
Muitos membros do elenco e da equipe de filmagem converteram-se ao catolicismo após a conclusão do filme. Um caso especial é o do ator Pietro Sarubbi, que interpretou Barrabás, o assassino que o povo escolhe libertar no lugar de Jesus. Ele converteu-se na gravação da cena em que desce as escadas do Pretório e o seu olhar se cruza com o de Jesus.
“Por Suas chagas fomos curados.”
A Paixão de Cristo foi o projeto mais pessoal de Mel Gibson. O diretor colocou toda a sua vontade e dedicação em conseguir tirar do papel o filme que ele queria fazer, o filme que ele queria ver. Não atuou, mas se colocou em cena: as mãos que pregam Cristo na cruz são suas (“Fui eu quem o colocou na cruz. Foram os meus pecados.”), são seus os braços que amarram a corda para o suicídio de Judas e é sua a voz que é ouvida chorosa e aos gritos na sequência final.
O filme é extraordinário em todos os sentidos. A alma de sua produção é religiosa, refletindo as crenças pessoais do seu idealizador, mas nada disso gestaria um espetáculo final de qualidade se não existisse imenso talento artístico envolvido em todas as etapas da produção – do mesmo modo que tantas obras de arte religiosas permaneceram na história não apenas por causa daquilo que significam no espectro da devoção cristã, mas por conta do capacidade de seus realizadores. O realismo com que a violência é retratada, o elenco, a caracterização dos cenários e personagens, o uso do aramaico e do latim nos diálogos… Mel Gibson e companhia externaram um profundo ethos religioso em A Paixão de Cristo, mas também criaram uma verdadeira obra de arte, um filme grandioso e um retrato da Paixão que dificilmente virá a ser superado no cinema.
Não é um filme fácil de assistir – e por que deveria ser? A crucifixão foi um método de execução muito utilizado na Antiguidade e um dos mais cruéis já registrados. O suplício dos condenados durava horas, com a morte chegando normalmente por exaustão ou asfixia. O que Mel Gibson basicamente fez foi reproduzir essa longa sessão de tortura através de um impressionante registro visual. Alguns consideram a sua visão exagerada, mas na realidade a crucifixão era muito mais grotesca e inumana do que aquilo que o diretor conseguiu transportar para a tela.
A mensagem da Paixão é universal. Para quem é cristão, tudo aquilo teve um significado mais profundo, mais amplo, que vai além da compreensão humana e adentra na seara do mistério divino: Cristo morreu para nos salvar, Seu sangue nos redimiu e nos trouxe a vida eterna. Para quem não é cristão, destaca-se o registro histórico: o martírio de um homem que estabeleceu um antes e um depois no mundo, a sua determinação mesmo sob os mais atrozes sofrimentos, sua capacidade de perdoar seus torturadores e a lembrança de como a humanidade pode ser cruel. É mister reconhecer a grandeza de Jesus, Deus feito Homem para uns, figura histórica para outros. Impossível é permanecer indiferente a Ele.
A Paixão de Cristo (The Passion of the Christ) – EUA, 2004, cor, 126 minutos.
Direção: Mel Gibson. Roteiro: Mel Gibson e Benedict Fiztgerald. Traduzido para aramaico, hebraico e latim pelo padre jesuíta William Fulco. Música: John Debney. Cinematografia: Caleb Deschanel. Edição: John Wright. Produção: Bruce Davey, Mel Gibson, Stephen McEveety e Enzo Sisti. Elenco: Jim Caviezel, Maia Morgenstern, Hristo Zhivkov, Monica Bellucci, Francesco De Vito, Mattia Sbragia, Toni Bertorelli, Luca Lionello, Hristo Shopov, Rosalinda Celentano, Claudia Gerini, Fabio Sartor, Luca De Dominicis, Chokri Ben Zagden, Jarreth Merz, Sergio Rubini, Francesco Cabras, Giovanni Capalbo, Roberto Bestazoni, Sabrina Impacciatore, Pietro Sarubbi, Matt Patresi, Ted Rusoff.