Uma equipe espacial do século XXXI oriunda de uma realidade paralela, os Guardiões da Galáxia foram criados por Arnold Drake e Gene Colan em janeiro de 1969 na revista Marvel Super-Heroes #18. Ao longo das décadas jamais gozaram de um prestígio sequer similar ao das inúmeras equipes de super-heróis da Marvel Comics. Coadjuvantes esquecidos por muito tempo, foram reformulados em 2008 por Dan Abnett e Andy Lanning para a saga Aniquilação: Conquista, que estabeleceu uma nova formação com a junção de alguns personagens recorrentes nas grandes sagas cósmicas da editora, como Drax, o Destruidor, Adam Warlock, Quasar e Gamora, e outras criações obscuras na sua cartela infinita de personagens, como Senhor das Estrelas, Rocket Raccoon e Groot.

Dos quadrinhos para os cinemas, Guardiões da Galáxia foi anunciado oficialmente em 2012 – com a possibilidade de um filme do grupo tendo sido aventada por Kevin Feige ainda em 2010. O décimo filme do universo cinematográfico da Marvel era uma aposta arriscada, que dependia de um marketing eficiente e de uma mistura ajustada que conquistasse o espectador. O resultado não poderia ser melhor: sucesso comercial, de público e de crítica, Guardiões da Galáxia entregou como resultado final uma divertida space opera oitentista ambientada em um universo multicolorido abundante de planetas e raças, bebendo diretamente em elementos de filmes como Star Wars e Indiana Jones. A direção competente de James Gunn, o roteiro bem amarrado, os ótimos efeitos especiais, os personagens carismáticos, a combinação entre humor e ação e a espetacular trilha sonora com canções dos anos 1960 e 1970 alçaram o bando de desajustados formado pelo anti-herói engraçadinho, a guerreira durona e perigosa, o brutamontes que entende tudo de maneira literal, o guaxinim falante cínico e sarcástico e a árvore humanoide que diz apenas três palavras a fenômenos da cultura pop.

O enredo de Guardiões da Galáxia Vol. 2 é extremamente simples e transcorre poucos meses após os eventos de Guardiões da Galáxia. O grupo, ainda formado por Senhor das Estrelas (Chris Pratt), Gamora (Zoe Saldana), Drax (Dave Bautista), Rocket (Bradley Cooper) e Baby Groot (Vin Diesel), é contratado pelos Soberanos, uma raça de criaturas douradas, presunçosas e geneticamente perfeitas lideradas pela sacerdote suprema Ayesha (Elizabeth Debicki), para proteger um conjunto de baterias extremamente valiosas do ataque de uma criatura interdimensional que parece saída de um conto de H. P. Lovecraft. A missão é cumprida sem maiores problemas e o grupo recebe o seu pagamento: a custódia de Nebulosa (Karen Gillan), irmã de Gamora. Mas Rocket – sempre ele – rouba parte das baterias. Os Soberanos não perdoam a traição e colocam uma frota estelar no encalço da equipe através de vários quadrantes do universo até Ego (Kurt Russell), uma poderosa criatura que já viveu por milhões de anos, e sua fiel escudeira Mantis (Pom Klementieff) surgirem no meio do caminho e levarem a narrativa para um outro rumo.

Uma cena no Missouri dos anos 1980 abre o filme, mostrando Ego e Meredith Quill (Laura Haddock) ainda jovens e apaixonados – e aqui a Marvel Studios repete o que fez com Michael Douglas em Homem-Formiga (2015) e Robert Downey Jr. em Guerra Civil (2016) e rejuvenesce Kurt Russell de um modo espetacular. Corta para o presente: o combate contra a criatura interdimensional é um dos mais incríveis já vistos em filmes de super-heróis e dita o tom de todo o resto do filme. James Gunn constrói um inventivo e extremamente bem coreografado plano-sequência que subverte a ação e o seu foco, destinando a câmera a perseguir um inocente e extremamente distraído Baby Groot, que esquece da vida por longos minutos enquanto passeia dançando pelo cenário em um quase número musical ao som de Mr. Blue Sky, da Electric Light Orchestra. Peter Quill, Drax, Gamora e Rocket enfrentam o monstro ao fundo preocupados com o risco do pequeno gravetinho se machucar durante a feroz batalha e há espaço inclusive para uma hilária referência à cena pós-créditos entre Drax e Baby Groot no fim do primeiro Guardiões da Galáxia.

Toda a anarquia que caracterizou o filme de 2014 está de volta. James Gunn pegou tudo que deu certo e duplicou. Triplicou. Quadruplicou. O escopo de Guardiões da Galáxia Vol. 2 é outro: tem mais humor, mais ação, mais provocações, mais brigas, mais cores, mais planetas, mais alienígenas, mais loucuras, mais bagunça, mais surtos, mais troça, mais tudo. O estilo peculiar de Gunn se faz presente ainda mais exagerado e estilizado, em uma mistura frenética de cores, elementos trashs, drama e humor. Sua direção é competente, com belos planos, slow motion pontual e um senso de posicionamento na filmagem da ação que permite ao espectador compreender tudo que acontece nas composições, por mais que existam tantos elementos em tela o tempo inteiro. A fotografia de Henry Braham é a mais deslumbrante de todos os filmes da Marvel Studios: tudo é muito vívido e variado e o trabalho da direção de arte, dos efeitos visuais e da maquiagem é impecável – Guardiões da Galáxia Vol. 2 tem tudo para repetir o êxito do primeiro e competir em premiações nos dois últimos quesitos. Todos os cenários e novas raças são criados com um detalhismo absurdo, garantindo características únicas para cada coisa que é mostrada em cena (mesmo que tal coisa apareça por míseros segundos) tornando crível a expansão desse universo para galáxias mais distantes e configurando-se em um deleite para os olhos dos espectadores.

Cada cena parece uma mistura de uma HQ dos anos 1960 e 1970 com um filme “B” de ficção científica ou terror da década de 1980: tudo é caricato, berrante e espalhafatoso. Aliás, Guardiões da Galáxia Vol. 2 parece um filme “B” produzido com grande orçamento, por mais contraditória que essa sentença possa parecer – e acredite, esse é o maior elogio que se pode fazer ao filme. No caldeirão de referências pops de James Gunn há espaço para um insano combate espacial que parece uma versão cinematográfica de Space Invaders, armas gigantescas, um Pac-Man sensacional e uma inserção hilária que referencia Mary Poppins (1964) em um momento crucial da narrativa. E o filme tem cena pré-créditos, pós-créditos, paralela aos créditos, e os próprios créditos são repletos de referências e easter eggs dos anos 1980 e do universo cinematográfico da Marvel – yma cena curta envolvendo Stan Lee, que aparece no meio do filme e reaparece ampliada na última das cinco cenas extras, introduz a raça dos Vigias e traz ainda mais possibilidades para o futuro cósmico do UCM. De um bordel intergaláctico, em um planeta gelado para a louca viagem interdimensional que Yondu, Rocket, Baby Groot e Kraglin (Sean Gunn) vivenciam, com seus rostos e corpos distorcendo-se no tecido da realidade que vai sendo esticado, passando por uma sequência na terra que é uma belíssima homenagem a dois clássicos do terror trash, A Bolha Assassina (1988) e A Coisa (1985), há de tudo no caldeirão surrealista de Guardiões da Galáxia Vol. 2.

A trilha sonora está ainda mais encaixada na narrativa, de um modo inteiramente orgânico – e os temas originais de Tyler Bates funcionam muito bem. O Awesome Mix Vol. 2 é mais uma miscelânea que o primeiro: tem mais ritmo, mais balanço, mais emoção – My Sweet Lord, de George Harrison é a “cara” do filme. Ego e Peter Quill chegam a dialogar sobre a letra de Brandy (You’re A Fine Girl), do Looking Glass durante a história, e Peter Quill e Baby Groot dividem os fones de ouvido ao som de Father and Son de Cat Stevens em um momento familiar. O grande diferencial do Vol. 2 em relação ao primeiro filme é o seu centro emocional, ainda mais evidente e explorado. O humor excessivo é um verniz para uma história que se apresenta surpreendentemente emocional e por vezes até mesmo melancólica. As relações familiares e espelhadas entre os personagens são desenvolvidas com talento – e sem a necessidade de introduzir cada um dos personagens e estabelecer uma narrativa que os conduzisse a formarem um grupo (eles já são mais do que um grupo, são uma família), James Gunn, diretor e roteirista, encontra-se livre para aproveitar cada minuto do longa-metragem.

Yondu (Michael Rooker) é o elo entre o passado e o futuro dos Guardiões da Galáxia, o personagem que mais ganha contornos e novas dimensões, vivendo uma comovente e bem estruturada jornada de redenção que dialoga – e auxilia – no desenvolvimento narrativo de Peter Quill, seu filho adotivo, de Rocket, que descobre ser mais parecido com o líder dos Saqueadores do que imaginava, e até mesmo de Kraglin, seu leal soldado – Sylvester Stallone tem uma participação pequena mas importante na história de Yondu e sua cena ao lado de Ving Rhames, Michelle Yeoh e Michael Rosenbaum abre novas e incríveis possibilidades para o futuro do universo cósmico da Marvel; Nebulosa e Gamora possuem contas a acertar que parecem nunca acabar, sempre brigando, sempre se odiando, sempre competindo, mas no fundo incapazes de deixarem o orgulho de lado e se aceitarem como irmãs que são e que sempre quiseram ser, mas nunca conseguiram por terem sido criadas por um pai que é Thanos, o Titã Louco; Mantis e Drax encontram-se na estranheza e no humor – e o timing cômico de Dave Bautista está ainda mais afiado, com o ex-lutador de WWE provando-se definitivamente um achado de James Gunn. Drax lamenta suas perdas familiares e sem querer ofende a todo instante a doce e aérea Mantis, que apesar de ser uma empata (e seus poderes são bem explorados pela narrativa, tanto em sequências cômicas quanto em cenas emocionais), é incapaz de perceber as intenções por trás de qualquer coisa que lhe digam; Rocket é o mais chato e odiado da equipe, o rebelde sem causa que na dinâmica com Yondu é forçado a perceber o quanto esconde seus sentimentos sob essa capa de indiferença, e que no fim só quer mesmo é ser amado; Baby Groot é o alívio cômico e o bebê adorável de quem toda a família cuida em meio ao caos das incessantes sequências de ação e Peter Quill finalmente encontra o seu pai (Kurt Russell rouba a cena sempre que aparece) e precisa lidar com o passado e todos os traumas e vazios que a ausência da figura paterna deixou em sua vida, enquanto seu relacionamento com Ego flui de maneira natural – natural até demais.

Guardiões da Galáxia Vol. 2 subverte a “fórmula Marvel” e se apresenta como uma espécie de ópera-bufa do início ao fim, funcionando de maneira independente tanto do universo cinematográfico da Marvel quanto do seu próprio filme antecessor. A montagem incessante de Fred Raskin e Craig Wood lança cena após cena como se estivéssemos diante de uma HQ em movimento passando página por página, intimista e simples na essência e grandiosa e louca no visual. Mas não se engane: há um coração pulsante em meio a tanto humor e galhofa. James Gunn construiu um drama familiar – que faz as engrenagens da trama moverem-se em todos os atos – travestido de comédia, transitando com organicidade entre os dois estilos (algo para poucos), sensível, comovente e sem vergonha de ser o que é em todas as suas dimensões: insano, colorido, divertido, escrachado e emocional. Para além da loucura dos personagens de quadrinhos, do humor, da ação e dos efeitos visuais primorosos, o grande acerto de Guardiões da Galáxia Vol. 2 encontra-se nos dramas universais das interações humanas e fraternais de seus personagens absurdos mas dotados de almas profundamente humanas e sensíveis.

obs: esse texto foi escrito ao som da Awesome Mix Vol. 2 – repetida inúmeras vezes.

Guardiões da Galáxia Vol. 2 (Guardians of the Galaxy Vol. 2) – EUA, 2017, cor, 137 minutos.
Direção: James Gunn. Roteiro: James Gunn. Música: Tyler Bates. Cinematografia: Henry Braham. Edição: Fred Raskin e Craig Wood. Elenco: Chris Pratt, Zoe Saldana, Dave Bautista, Vin Diesel, Bradley Cooper, Michael Rooker, Karen Gillan, Pom Klementieff, Kurt Russell, Elizabeth Debicki, Sean Gunn, Sylvester Stallone, Michael Rosenbaum, Chris Sullivan, Miley Cyrus, Tommy Flanagan, Ving Rhames, Michelle Yeoh.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.