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Capítulo 1: Buddy Baker.
18NÃO RECOMENDADO PARA MENORES DE 18 ANOS
Gêneros: Drama (Tragédia), Ficção, Sobrenatural, Suspense.
Contém: Linguagem Imprópria, Temática Suicida.
HOMEM-ANIMAL: DESCANSE EM PAZ
Capítulo 2 – A Morte
“Ninguém sabe o que é a morte, mas não faz muita diferença porque também nunca sabemos o que é a vida.” – António Lobo Antunes.
1
23 anos atrás.
Possuía um dedo indicador branco e trêmulo, suas unhas cortadas e polidas, incrivelmente limpas e bem-cuidadas. Tocou a campainha da grande residência que se encontrava logo à frente de sua moradia. Buddy Baker estava com seus dezessete anos, no auge de sua vindoura adolescência, bastante perfumado e com o cabelo penteado elegantemente. Seus parcos e finos pelos no rosto estavam aparados e marcas rosadas em suas bochechas e testa revelavam espinhas minuciosas, recentemente espremidas. Trajava um terno preto bastante vistoso e em sua mão direita carregava um lindo buquê de rosas vermelhas, cintilantes e cheirosas.
A porta rangeu ao abrir, e seu coração disparou momentaneamente. Era a senhora Frazier, progenitora de sua ansiosa parceira. Estava de cabelo preso, os pacatos fios esbranquiçados, adquiridos com a idade, começando a aparecer; seu o rosto álgido banhava-se momentaneamente com singelas gostas de suor. Vestia um avental de cozinha relativamente sujo, escancarando que já trabalhara no jantar, ao lado do esposo.
— Ah. Olá, Buddy. A Ellen já está descendo. — Disse, demostrando uma animação pela filha e pelo garoto.
— Tudo bem. Obrigado, senhorita Frazier. — Respondeu ele, com o rosto vermelho, tomado pelo nervosismo.
— Por favor, me chame de Mary. — A mãe de Ellen falou, também envergonhada, mas com um sorriso no rosto. O tímido garoto apenas assentiu.
Um emaranhado de passos curtos foi ouvido, quando rapidamente a linda garota ruiva desceu pelos degraus da escada, logo à frente da porta de entrada da casa. Quase tropeçou, porém manteve a pose.
— Ufa. Desculpa a demora, Buddy — bradou a jovem, um pouco sem fôlego. — Pedi para você vir e ainda nem estava pronta. — Terminou dizendo, olhando para o lado, com as bochechas rosadas, as mãos unidas em torno da bolsa sobre o colo.
— Sem problemas, Ellen. Você está absurdamente linda. — O garoto exprimiu, com os olhos arregalados e maravilhados com tamanha beleza.
A jovem ruiva trajava um lindo e longo vestido cor-de-creme, sua alça entrelaçava o pescoço para seus braços ficarem de fora, enquanto os detalhes de seu tecido apareciam em alto-relevo. Seu curto cabelo situava-se totalmente solto e seus olhos verdes ficavam ainda mais bonitos acompanhados pelas numerosas e maravilhosas sardas que possuía abaixo deles.
— Obrigada, Buddy. — Disse ela, um pouco sem jeito, todavia contente.
— Ah… Isto é para você — o garoto esticou o braço e lhe mostrou o buquê que estava em suas mãos, presenteando-a. — Sei que é louca por flores.
Os olhos da menina se arregalaram ao mesmo tempo em que sua boca caiu, impressionada. Era a primeira vez que ela recebia flores. Brindado por um peculiar sorriso e um gostoso abraço, o pequeno Baker foi contemplado, pela primeira vez, com a felicidade.
— Óh, Buddy, elas são lindas. Eu amei — disse a garota, colocando suas narinas nas pétalas de uma das rosas e inalando seu delicioso cheiro. — Obrigada.
— Você merece, Ellen. Elas são tão lindas quanto você. — Ele falou, colocando uma das mãos na nuca, tentando debilmente esconder a vergonha. Deus, por que diabos eu tinha que ter falado isso? Ela deve estar me achando o maior babaca, pensou, auto-punitivo. Mal sabia ele como aqueles belos vocábulos conseguiram a atingir positivamente.
Ela sorriu e então deixou suas flores em posse da mãe, pedindo-a para que guardasse-as com cautela. Assim que voltasse para casa, arranjaria um lugar bem bonito em seu quarto para colocá-las, expondo-as para quem quisesse ver.
— Comportem-se, hein. E, Buddy, cuide bem da minha menina. — Pronunciou a senhora Frazier, dando um beijo no rosto da filha e despedindo-se do casal.
Aquele era, oficialmente, o primeiro encontro dos dois. Durante todo o ano Buddy almejou criar coragem para enfim chamar a garota dos seus olhos para o baile da escola, e ela sem relutar aceitou o convite. No que precedeu o chamado, ambos apenas fitavam-se, por toda a existência, além de uma troca significativa de palavras e sorrisos diários. Nem um único beijo havia ainda acontecido. Não ainda.
Os jovens caminharam de mãos dadas até a escola, que se encontrava nas proximidades. Não conversaram muito durante o percurso, já que eram igualmente tímidos e estavam envergonhados; uma vergonha inocente e boba, recheada de sentimentos que hora nenhuma escapavam de seus corpos. Com três quarteirões de uma curta caminhada, chegaram ao colégio onde acontecia a grande festa de formatura. As conversas dos alunos eram altas, podiam ser escutadas a metros de distância. O tão esperado baile do terceiro ano lotou o ginásio com faixas comemorativas, acompanhadas por um grandioso palco preenchido por artistas independentes e talentosos da região, que faziam covers de bandas famosas. Espalhados pelo, agora nomeado, salão, estavam várias mesas, com ponches e refrigerantes sobre elas, e alguns salgadinhos caseiros feitos pelos próprios alunos. Cada um dos formandos possuía seu par, mas nenhum deles estava tão contente com a companhia que detinha quanto Buddy Baker. O jovem loiro, que nunca conseguiu ser muito popular, ou extrovertido.
Por mais que fosse uma grandiosa festa, tudo era muito comportado e bem arrumado. Os alunos aproveitavam a noite sem se embebedar ou necessitar de outro artifício externo. Era belo, e as músicas tocadas acompanhavam um hipnotizante arco-íris de cores providos pelo jogo de luz grudado acima de suas cabeças. Entre canções calmas e agitadas, cada um dos pares dançava, sem se preocupar com nada. Eram jovens, livres e felizes, com uma noite mágica esperando-os.
— Isso daqui está melhor do que eu imaginava. — Buddy cochichou no ouvido de Ellen.
— Olha, eu sou muito pessimista com as coisas. Não esperava muito deste baile, mas acho que estou me surpreendendo. — Ela cochichou de volta.
Ambos entreolharam-se. Com grandes sorrisos em seus rostos, mostrando todos os seus belos dentes. A noite calma e repleta de estrelas no céu presenciava ali um marcante evento da natureza. Quando as nuvens pareciam se encontrar e o tempo fechar, de uma forma inexplicável, a banda puxou seus instrumentos e iniciou os mais belos acordes que tocariam naquela noite. Uma música que ficaria marcada para sempre na história daqueles dois jovens.
Participando da dança de casais, eles iniciaram seus movimentos. Ellen esticou seus braços e colocou suas delicadas mãos sobre os ombros de Buddy, aconchegando-se e tentando livrar o parceiro — e a si mesma — do embaraço sentimental. Ele a agarrou pela cintura, colocando suas ásperas palmas pouco acima dos glúteos da garota, encaixando seus corpos com determinação e compromisso. Deveriam perder a vergonha, de uma vez por todas; era agora ou nunca. Começaram a se balançar, de um lado para o outro, de uma forma bem doce e lenta, aproveitando a música que alcançava seus ouvidos, desprovidos de qualquer obrigação maior que não fosse aproveitar com excelência aquela noite. Sem pressa, ou agressividade, muito menos foleiros. Suas testas se encontraram posteriormente e ambos desligaram-se de todo o resto que acontecia ao redor, voltando totalmente suas atenções um para o outro. Sentiram-se sozinhos, donos do mundo.
— Me desculpe pela timidez persistente. — A garota soltou, baixinho, incrivelmente envergonhada, mas ao mesmo tempo segura.
— Não, Ellen. Sou eu quem peço desculpas. — Disse o jovem, tentando fazer sua acompanhante ficar mais confortável.
— Você é perfeito, Buddy. Sabia? — alvejou-o com tais palavras delicadas, repletas de compaixão. — Sei que não nos falamos muito, mas estou gostando desta nossa oportunidade de aproximação.
Ele sorriu sem mostrar os dentes, observando-a com um olhar recheado de brilho.
— Eu tento ser perfeito, Ellen — expressou, ainda cintilante. — Também estou amando esta oportunidade que estamos tendo. Quero que note tudo de especial que posso oferecer.
— Eu já noto. — Ela ricocheteou, instantaneamente.
— Então eu estou fazendo as coisas do jeito certo. — Confessou, reslumbrando alegria.
— Com certeza está. É paciente, educado e tenta constantemente contar piadas bobas para me fazer rir, mesmo que todas as suas falas sejam preenchidas de timidez. Eu observo e reconheço todos os seus esforços. Além disso, seus abraços me parecem muito acolhedores — a garota encostou seu nariz no dele e ambos fecharam os olhos, vagarosamente. Um arrepio percorreu seus corpos. — Acho que estou fazendo a coisa certa.
— Sabe o que eu acho? — Buddy disse, suspirando profundamente. — Acho que estou apaixonado por você.
— Apaixonado? Como chegou a essa conclusão? — Ellen perguntou, tentando esconder o sorriso.
— Eu penso em você a todo instante. Da hora que acordo até a hora que vou dormir. Quer dizer… quando consigo dormir — Buddy respondeu, sem vergonha. — Não sei se deveria estar falando isso, mas não aguento guardar só para mim. Achei que hoje seria um dia ideal para dizer.
— Então estava bastante ansioso por hoje? Pelo baile?
— Não. Eu estava bastante ansioso para ver você. Para conseguirmos um tempinho a sós.
— Hum… Então quer dizer que está mesmo apaixonado? — Ela abriu os olhos, no momento que ele fazia o mesmo.
— Sim. Estou. — Buddy respondeu, convicto.
— Sorte sua. — A garota se expressou, rapidamente.
— Por quê? — Ele perguntou, sem se atinar para a resposta que a jovem daria em seguida.
— Porque acho que também estou.
Ambos sorriram, transparecendo uma paixonite sem fim. Ao som daquelas belas notas, os lábios dos jovens se encontraram, involuntariamente, deixando apenas seus sentimentos guiá-los em seguida. Suas línguas se tocaram pela primeira vez e visitaram o interior da boca um do outro, prazerosamente. A mão direita de Buddy se soltou das costas de Ellen e foi lentamente de encontro ao seu rosto, enquanto a jovem repetia os mesmos movimentos. Os dentes recusaram a se baterem e os rostos foram, cada vez mais, apertando-se entre si, ferozmente. Era um beijo plenamente intenso, completamente apaixonado. Seus corações dispararam em seguida e os hormônios se enlouqueceram.
No meio do salão, aquele lindo casal nascia. Com as luzes coloridas incidindo em seus corpos, colocando os dois dentro do arco-íris, e uma áurea de paz e tranquilidade se dissipando pelo ambiente ao redor. Desejos se realizando com plenitude e perfeição. Suas vidas seriam repletas de surpresas, conquistas, amores e, infelizmente, por fim, muitas dores. Mas a jornada toda valeria a pena, já que o percurso seria, para os dois, inesquecível.
2
Dias atuais.
Aquelas temorosas palavras obscuras entraram pelos ouvidos ultra-sensíveis de Buddy e o amedrontaram instantaneamente. Sua sonoridade era peculiar, como se a voz da Morte carregasse uma vida própria. Não via seus lábios mexerem — isso é, se possuísse lábios —, uma vez que nem seu próprio rosto conseguia enxergar. Seus pensamentos ruins e vocabulário impróprio lhe condenaram, levando-o para um caminho sem volta; sempre medonhos e receosos, envolvendo um insaciável desejo por óbito carnal. Tua mente perturbada era desprovida de esperança e teu corpo já não mais parecia ter forças para um confronto — contra vilões menores, a Morte, ou a si próprio. Um homem, que por vezes se mostrou tão sábio e determinado em tomadas de decisões, se encontrava agora perdido, sem saber o que fazer; sem saber até mesmo como continuar vivendo. Mas isso não seria um problema, pensariam os mais inteligentes; a Morte, em pessoa, estava em sua casa, parada à sua frente, observando-o com um penetrante olhar, analisando-o por dentro de sua alma. Veio lhe visitar e entrou em sua vida sem ao menos pedir permissão, teu calor fora roubado e suas expectativas esvaíram-se como pó em uma forte ventania. As pálpebras não conseguiam esconder seus penetrantes e maravilhosos olhos azuis, devido a tamanha formosidade da situação, e seu coração disparava forte como nunca antes em toda sua existência. O Homem-Animal, capaz de fortalecer seu corpo usando características dos mais poderosos seres da fauna planetária, mas incapaz de fortalecer sua mente, deixando a fragilidade mortal de lado. Experimentava agora uma sensação que deixaria tudo ainda mais complicado e confuso; abstendo-se dos aguardos por dias melhores, dando lugar à desesperança. Buddy sentiu medo durante aquele tortuoso e impremeditado momento, como nunca sentira antes. Observava a silhueta da Escuridão Imortal, analisando cada pequeno detalhe, imaginando o que aconteceria em seguida e indagando-se o motivo de tal visita importuna.
— Então… — Buddy começou, tremendo os lábios. — O que você quer?
A Morte o fitou, sem dizer nada. Observava em volta, calmamente, analisando friamente o local, como se fosse em seguida julgar o pobre homem por suas atitudes anti-higiênicas. Olhando em torno, viu os móveis revirados, as garrafas vazias, a sujeira da casa em geral; notou os pequenos animais, praticamente novos moradores, com suas doenças transitando sob seus curtos passos. Examinou cada pequeno detalhe, tirando suas conclusões mais rápido do que imaginava. Sentiu pena, por aquele ser tão débil e desamparado, por fim. A penitência de uma vida repleta de escolhas erradas transbordando de sua compleição física. Estudou posteriormente o próprio homem, dos pés à cabeça, ainda sem deixar que o mesmo percebesse o que andava fazendo; seu grande e virtuoso capuz jamais mostrara seu rosto ou seus olhos, assim como, inicialmente, suas intenções.
— Bernhard Baker, você me chamou. Eu sou quem pergunto o que você quer. — A Morte bradou, cínica, com sua voz grossa e perturbadora, capaz de causar calafrios até nos mais emasculados dos seres.
— Você… Você é a… — fraquejou inicialmente, sua falta de fôlego o incomodando — A Morte? — perguntou, com seu coração acelerado, apontando o dedo trêmulo em sua direção. — Quer dizer… a Morte… de verdade?
Ela pareceu achar graça de tudo aquilo. A audição de Buddy teve a impressão de escutar uma leve risada vinda da escuridão sombria presente no capuz. Os movimentos da imortal criatura foram tão impressionantes e amedrontadores quanto sua aparência: ela fincou sua longa, imponente e pesada espada no chão, com uma força bruta, rachando a cerâmica do solo com uma extrema facilidade; posteriormente colocou ambas as mãos ósseas à mostra, levando-as para os arredores do cabo negro da cruel e pontuda arma branca que portava; levantou seu peito no átimo seguinte, ficando totalmente ereta. Asseguradamente, se existia alguma dúvida de aquele ente poder parecer ainda mais amedrontador, elas foram sanadas no instante seguinte.
— O que você acha? — Proferiu, sentindo o medo se fartar e sobressair o corpo do loiro.
— Eu acho… — começou, tremendo mais ainda — Bem, eu acho que não é. Não pode ser. Você não existe. Não é real. Isso é só mais um de meus pesadelos — disse, colocando suas mãos na cabeça, mexendo-a de um lado para o outro, bagunçando seu longo cabelo fedido. — Isso… isso! Só pode ser mais um de meus pesadelos. Só pode ser.
O temoroso indivíduo não pareceu feliz com aquela recepção. Sua insatisfação foi expressa de uma maneira singela, porém perceptível. Embora tivesse conhecimento que não poderia exigir tanto de um homem tão miseravelmente perturbado quanto aquele.
— Não pareço real pra você?
— Não. Não parece — Buddy articulou, maneando a cabeça — Agora eu vou fechar e abrir os olhos. E você vai desaparecer. — Cobriu as vistas com suas pálpebras brancas e enrugadas, tentando desesperadamente se libertar da situação.
A Morte desapreciou tal comportamento e decidiu mostrar à criatura carnosa a verdade que tanto almejava descobrir. Fez o corpo do homem congelar de tanto frio, imobilizando-o. Buddy sentiu-se petrificado, mais invadido e incapacitado do que nunca. Ficou imóvel, sem escolha ou chances de lutar, e apenas a observou se aproximando, a cada segundo chegando milimetricamente mais perto. A criatura abaixou seu rosto e o deixou na mesma altura das feições do sujeito. Seu cheiro pútrido, como de mil corpos apodrecendo em um só, foi sentido pelas narinas frágeis de Buddy, que ansiou um vômito momentâneo.
— Quer descobrir se sou real ou não? — A voz grave e rouca adentrou seus ouvidos e ele teve a confirmação de que tudo aquilo estava, realmente, acontecendo.
Os olhos hipnotizantes de Buddy começaram a tremer, tentando, sem sucesso, observar o olhar da Escuridão Imortal, a título de curiosidade. Nenhuma outra parte de seu corpo conseguia movimentar-se, como uma paralisia do sono na vida real. A Morte não parecia nem um pouco com a velha amiga que os contos descreviam.
— Você… — ele disse, quase chorando. — Você veio me buscar?
Ela o olhou fixamente, analisando friamente seu perfeito e misericordioso rosto branco. Agora, mais pálido do que nunca.
— Eu reconheço um cortejador meu quando vejo um — bradou, ainda olhando firmemente em suas vistas, que davam caminho para a análise de teu espectro. — E você, Bernhard Baker… você anda pensando demais em mim.
O loiro engoliu seco. Sabia que era verdade, seus pensamentos e lembranças florescendo de imediato em seu cérebro.
— Pode me explicar todas esses seus clamores e anseios? — ela disse, afastando de seu rosto e voltando ao lugar que residia anteriormente — Eu estava aqui ontem, Bernhard. Eu te vi, no chão, chorando. Ouvi quando me chamou. Ouvi todas as vezes que pediu pela minha presença durante esses últimos tempos — por um breve momento, observou uma lágrima solitária escorrer pelo rosto do homem. — Eu lhe via, só você que não podia me enxergar. Agora pode. E, agora, eu estou aqui.
O medo presente em suas vistas foi substituído pelo arrependimento. O loiro sabia que tudo aquilo era verdade, que sua ânsia gananciosa por uma morte próxima lhe trouxe, naquele fatídico momento, resultados.
— Eu sou quem lhe pergunta… — a Morte continuou, firme. — Você quer que eu te leve?
O controle da criatura se esvaiu do corpo do homem, libertando-o do encarceramento gélido. Tua carne foi de encontro ao chão, recuperando assim seu controle, todavia ferindo-se minimamente. Suas forças, por vez, essas poderiam nunca mais se recuperar.
— Eu não sei — iniciou, olhando para o chão sujo e podre, pensativo. — Meu corpo quer lutar… mas meu coração não.
A Morte voltou a sentir pena do rapaz. Como poderia alguém tão poderoso, antigamente cheio de vivacidade e paz interior, se encontrar naquele atual estado? Sua misericórdia pareceu um bom caminho. Podia, quem sabe, não merecer tais sentimentos, mas o miserável precisava de ajuda.
— Eu ando sentindo… muita… dor — o rapaz expressou, levando uma de suas mãos ao peito, como se segurasse seu próprio coração. — Aqui. Uma angustiante e interminável dor.
— Dor é a primeira e mais forte sensação que um ser vivo pode sentir neste mundo, Bernhard Baker — disse a Morte. — Quando um lobo come uma ovelha, ele não geme de prazer, mas a ovelha berra de dor por estar sendo devorada.
Ele a olhou novamente, clamando por misericórdia e pedidos de ajuda intrínsecos.
— O que eu quero dizer é que a dor faz parte da vida, meu rapaz. Sem a dor, a vida não existiria.
Mesmo que fosse seu trabalho, a Escuridão Imortal sabia que aquela não era a hora de sua partida. Sabia que, não deveria levá-lo consigo. Não agora. Ela observou o ambiente, uma última vez.
— Tudo aqui está fora de ordem. Sujo, mal cuidado, desesperançoso — retirou uma de suas mãos de ossos à mostra da espada e a movimentou como uma onda. — Sabe o que isso me lembra, Bernhard?
— O quê? — o açoitado homem perguntou bem baixo, no fundo, sem querer saber da resposta. Não ligava. Não ligava mais para nada.
— A sua vida.
Ele respirou. Levantou seu queixo e fitou a criatura trevosa mais uma vez; agora, sem medos ou receios. Refletiu, considerando cada pequena atitude sua, repercutindo se deveria ou não entregar seu corpo e ser, finalmente, levado dessa cruel vida. Seus pensamentos e reflexões não saíram de sua cabeça, e o loiro recusou-se proferir uma única palavra. A Escuridão o observou, ainda misericordiosa.
— O que acha de sairmos para conversar? — Ofertou a Morte, esperando por uma resposta satisfatória.
— E se eu falar não? — Buddy perguntou, trêmulo e nervoso. — E se… e se eu quiser que me leve, de uma vez por todas? Sem rodeios ou procrastinações?
— Eu insisto — ela disse, encostando sua mão direita no ombro do rapaz, pela primeira vez, como uma grande amiga. — Se, ao final de tudo, ainda quiser vir comigo, então respeitarei o seu desejo.
Buddy analisou tudo, mais uma vez, muito racionalmente. Talvez tivesse muito medo da morte, embora, no fundo, também tivesse muito medo de continuar vivendo.
— Sobre o que exatamente quer falar? — Baker perguntou, investido na oferta.
— Sobre você, Bernhard Baker. Sobre você e sua família.
Ele arregalou os olhos e sentiu um interminável frio na barriga. Então a Morte sabia. Ela já sabia de tudo.
3
A luz do sol incidia sobre a dupla, que caminhava pelas ruas de San Diego. De forma avessa ao habitual, ela simplesmente os atravessava, de forma que, enquanto gesticulavam, não havia sombra nem escuridão que os envolvesse ou rodeasse. E há motivo para tal: Buddy fora tocado pela Morte, pela mais pura das trevas, e recebera sua bênção para peregrinar ao seu lado. Enquanto ela parecia expulsar a luz e a esperança, o Homem-Animal assemelhava-se mais à típica noção mundana de um fantasma.
Ele já não sentia as pernas bambearem, mesmo que o medo permanecesse em sua mente. Com ela, observava friamente o mundo, com olhar absorto, cada ser, cada ato, cada relação. Andaram como espectadores, inexistentes. A vida de cada pessoa era como um filme, ao qual poderiam assistir, como atrevidos e intrometidos espectadores.
— Por que você quis me dar uma nova chance? — Buddy ousou perguntar, após uma era calado. — Você… não pode dar atenção especial a todos os aspirantes a suicidas, não é?
A Morte era dona de perturbadores e vagarosos silêncios, certas horas. Demorava a dar suas respostas, o que fazia o coração de Buddy acelerar. De alguma forma, ele sentia que ela sabia o medo que causava com tal demora, e que se divertia com ele.
— Você não é uma pessoa qualquer, Bernhard. Por mais que esteja mentalmente perdido agora… já ajudou muitas pessoas. Fez muitas delas nascerem de novo. Eu não me incomodo quando me impedem de executar meu trabalho — ela pronunciou a última palavra de forma tão mecânica que o fez tremer. Como se seu trabalho não fosse diferente do de um operário braçal; como se, ao ceifar vidas, não fizesse mais que uma costureira fabril. — Muitas vezes, alguns de meus serviços me causam angústia e insatisfação; outros trazem tédio. Há ainda aqueles que me proporcionam o mais profundo dos prazeres. Mas o seu caso… o seu caso é especial, senhor Baker. Há vários motivos para eu não ter te levado quando me chamou — ela parou de caminhar, observando algo. — Você ainda tem muitas pessoas para salvar.
— Ninguém mais vai querer ser salvo por mim — suspirou Buddy, descrente — As pessoas temem a minha presença. Tremem quando eu chego. Eu já… eu já não sei mais o que fazer. — encontrou-se cabisbaixo, por fim.
A Morte o olhou com uma amálgama de martírio e superioridade — para ele, porém, era difícil decifrar tais sentimentos. Sem uma face, era um desafio relacionar-se com a interlocutora.
— Sabe, Bernhard… a Humanidade tem um conceito que chama de Destino; algo que seria imutável, definindo tudo o que vocês são e serão — ela falava isso enquanto observava um garoto a caminhar, brincando com seu cão. Não devia ter mais que oito anos — Eu posso falar sobre o Destino melhor do que qualquer um da tua espécie. Porque, para mim, o tempo nada mais é do que algo palpável. O passado pode ser tão visível quanto um cânion; o futuro, nada mais que uma montanha. Eu não sou capaz de transitar pelo tempo como se não houvessem barreiras, mas eu posso ver. Posso ver todos os possíveis destinos de cada um de vocês — ela, por um momento, pareceu respirar — Veja bem: possíveis. No final, tudo depende das suas escolhas, e, talvez, da aleatoriedade do mundo. Não há nada definido. Não há um destino fixo e imutável: há apenas futuros possíveis.
— O que quer dizer com tudo isso? — Questionou o rapaz, interessado.
— Quero dizer que, quando eu olho para aquele garoto — apontou para a carnosa criança acompanhada de seu cão —, eu posso ver o que há de bom e ruim nele. Quero dizer que, quando olho para ele, e para qualquer ser vivo, posso saber sobre quando e como nossos caminhos se cruzarão novamente. Eu posso ver de quantas possíveis maneiras aquele menino pode morrer, das mais serenas às mais horrendas. Posso ver quais decisões podem levá-lo a cada uma delas, e quais as probabilidades de que cada uma ocorra.
Buddy passou alguns momentos digerindo a informação. A existência da Morte parecia complexa demais para o entendimento humano, embora sua raça presenciasse diariamente a existência e interferência de deuses.
— O que vê quando olha para mim?
A Morte lhe deu uma olhadela rápida, como se dissesse: agora está fazendo as perguntas certas.
— Eu já vi sua morte mais de mil vezes. Eu já até te matei, Bernhard, muito embora eu saiba que você não se lembra de alguns dos nossos encontros. É como se tivesse se esquecido de sua vida passada, mesmo que pertencesse a esse mesmo corpo, e essa mesma identidade — novamente a Morte tentou fitá-lo diretamente nos olhos, criando uma conexão excêntrica, porém o loiro não correspondeu, continuando a olhar para frente, com vistas perdidas — Eu vi como poderia ter morrido ao cair do berço quando era apenas um bebê; ao enfrentar Darkseid; ao pegar a faca da cozinha e colocá-la em seu pescoço; ao mergulhar no lago não querendo retornar à superfície; ao se jogar dos céus quando voltava para casa tarde passada… — ele enfim se virou para ela, e, agora, sentia que a Morte estava realmente confusa. Sentiu que era ela quem buscava as respostas — Mas, há algum tempo, quando eu olho para você, eu não vejo… nada. Apenas trevas, ódio, arrependimento e medo. Quando me concentro, consigo ver lapsos constantes de possíveis futuros, mas não com a claridade habitual. Como se uma cortina de fumaça estivesse sobre meus olhos, e algo maior estivesse traçando uma redefinição constante de seu destino. E, por isso, hoje, eu vim até você. Para compreender o motivo disso, e entender: por que você me clama tanto pela minha chegada?
Buddy olhou-a, pensativo. Em seguida, tornou a desviar as vistas, novamente fitando o garoto.
— Eu… eu comecei a nutrir um ódio por mim mesmo, entende? — suspirou, também um pouco confuso — Sou punido diariamente pela minha própria consciência. Eu não… — ele olhou para a Morte, uma vez mais, buscando respostas. — Acha que é possível conviver com alguém que tanto odeia? Quer dizer… mesmo… mesmo sabendo que essa pessoa é você próprio?
A Morte parou, absorta. Achava cada vez mais aquela estranha e frágil criatura um dos seres mais interessantes e peculiares com quem já havia proseado.
— E por que exatamente você sente esse ódio, Bernhard?
— Você sabe… — as palavras simplesmente saltaram de seus lábios. Já tomava a Morte como um ser onisciente sobre seus feitos. Seu coração acelerou por um instante, quando as memórias melancólicas começaram a invadi-lo. — Ellen, minha mulher, e Cliff e Maxine, meus dois filhos.
A Escuridão fez o que fazia desde o momento que se encontraram naquele dia: o observou, com pena. Sabia que a memória do homem estava comprometida e seu senso debilitado. Em sua consciência, tinha a certeza que nunca mais poderia desfazer seus antigos feitos. E, embora, no fundo, a Morte soubesse que era verdade, acreditava que seu conhecimento sobre o futuro deveria ser, de alguma maneira, mudado. Talvez ela, como um ser realmente superior, conseguisse convencer o pobre mortal a dar mais uma chance a si mesmo.
— Sim, eu sei. Eu via a morte de Ellen pelas tuas mãos, mais de uma vez — tais palavras acertaram Buddy como um golpe. Seu coração repentinamente passou a pesar toneladas. — Se eles voltassem neste instante, Bernhard, de nada adiantaria. Você tornaria a beber, tornaria a agredi-la, e vocês se separariam novamente. Dessa vez, porém, talvez um de vocês fosse embora comigo, e não com a polícia.
— Eu jamais…
— Jamais tornaria a agredi-la? Sinto em discordar, Bernhard. Você ainda nutre ódio em teu coração, e sua situação com ela e as crianças é só um dos motivos — Buddy calou-se. — Você ainda sente ódio pelo seu pai, pelas atitudes dele, e pela forma como ele deixou vocês. Sente ódio de si mesmo por ainda amá-lo, apesar de tudo, e por perceber que é parecido demais com ele. Por perceber que, no fundo, ele pode ter sido aquele a moldar uma parte significativa de você. No fundo, você teme que o que ele disse esteja certo: que você seja apenas um maricas. Quando bebe, fica decidido a provar o contrário.
Ela fez uma pausa longa. Buddy assimilou aquilo, compreendendo que a Morte podia ver seu interior com mais clareza do que ele mesmo. Acima de tudo, percebeu que Grande Amiga estava presente em muitos momentos de sua vida, em especial nas malditas caçadas, e nas agressões; ela levava cada um dos animais abatidos, e presenciava cada uma das situações de quase-morte — além disso, percebeu que ela se lembrava, e isso era mais assustador ainda: o ser que viria a levá-lo conhecia a maioria dos seus piores erros.
— Apesar disso, todos nós merecemos uma segunda chance, senhor Baker. Você tem algo que seu pai já não tinha: a oportunidade de redenção. Eu acredito que exista um herói dentro de cada um de vocês, humanos. Que lhes mantém honestos, que lhes dá força e os enobrece — encostou, pela segunda vez naquele dia, sua mão sobre o ombro do rapaz, indulgente. — Portanto, seja o anjo deles, Bernhard. Seja um herói. Seja um monumento.
O loiro a fitava, com seu lábio inferior avantajado. Sua tristeza era imensurável, e suas forças tão esvaídas que qualquer tentativa em se reerguer poderiam facilmente serem impedidas por suas reflexões auto-punitivas e descrentes.
— Seja o que for que eles precisem que você seja. Ou não seja nada disso. Não precisa de suas companhias ou compaixões para seguir em frente com sua vida. Pode, a qualquer momento, fazer o que muitos seres de sua raça fazem, diariamente: recomeçar.
— Mas Ellen e as crianças… — o indivíduo de cabelos amarelos se desfez em lágrimas. — São a minha vida!
— Vida? — a Morte pareceu achar graça, mais uma vez. — O que você entende sobre a Vida, rapaz?
Buddy calou-se, embora sua cabeça se encontrasse inquieta. Decidiu não responder, torcendo para que a Morte continuasse seu discurso.
— Vida não é apenas o que lhe faz querer continuar aqui. Seus sentimentos ou prazeres — os olhos azuis do jovem estavam completamente vidrados em seu capuz negro — Vida é tudo que permeia o planeta e o faz continuar vivendo. Sua flora… e sua fauna. — Disse essa última palavra com um tom diferente, como se dirigisse ela diretamente a Buddy.
— Veja… — ela apontou para um casal feliz que apareceu em suas caminhadas. Estavam conversando em uma mesa de restaurante, exalando amores e benevolência reciprocamente. Buddy os contemplou, e, através do vidro fosco e das saudades, viu como eles se assemelhavam a ele e Ellen, há muito tempo — Olhe só para eles. Estão apaixonados. Dominados por um amor intenso e profundo — embora, muito bem, pudesse não entender absolutamente nada sobre sentimentos, a Morte estava bastante segura em suas palavras. — É tudo o que você queria novamente, não é, Bernhard?
O loiro assentiu, ainda vidrado no jovem casal. Suas lembranças e raciocínio o condenariam mesmo que tentasse mentir para a Escuridão Imortal.
— O Homem-Animal… — ela voltou a dizer. — Movido inteiramente por seus instintos, em especial os reprodutivos. Nascido para ser selvagem!
— O que disse? — Buddy bradou, libertando-se do devaneio.
— Vocês, mortais, são uma raça engraçada. Gostam mais de falar sobre seus gostos em geral e sexo, do que refletir sobre suas origens ou seus futuros… — pareceu dar outra leve risada — Você não é o único Homem-Animal, senhor Baker. Todos vocês, humanos, são. Animais. — Mais uma vez, ela fez uma pausa. Um suposto brilho provido por seu reflexo dental parecer exalar-se. — Os homens-animais, que usam sentimentos, como o amor, para justificar a satisfação de seus impulsos, e dificilmente olham, conversam ou se referem ao parceiro oposto com outra intenção que não seja o sexo.
— Isso é mentira! — Contrapôs Buddy, inconformado.
— Não venha tentar parecer mais esperto do que eu, meu rapaz, porque você não é — Baker sentiu a voz da Morte parecer mais grossa e trevosa, como no minuto em que se encontraram mais cedo — Isso move vocês, homens-animais: o sexo. O amor nada mais é do que uma ilusão do seu cérebro, uma peça que ele prega em si mesmo, a fim de garantir a sua reprodução. Assim como a felicidade, o amor é apenas um estímulo para obrigar vocês, seres ligeiramente racionais, a seguir seus instintos e fazer aquilo que devem fazer — ansiou, por um momento. — Apaixonar-se é uma loucura. É uma forma de insanidade socialmente aceitável.
— E quanto às amizades? — Buddy perguntou, tentando confundir e tornar o que a Morte dizia incoerente.
— Amizades? — ela suspirou, ainda que não tivesse pulmões. — Elas nada mais são do que um amor que leva ao prazer de uma boa convivência social. O que eu quero dizer é… Vocês, mortais, precisam uns dos outros para se sentirem especiais e amados, embora isso não seja a definição exata de Vida. São animais grupais, e precisam de outros para se sentirem completos.
O rapaz não rebateu dessa vez.
— Você não é um homem com muitos amigos, não é, Bernhard? — Ela perguntou, tentando não parecer muito indiscreta.
— Não mais — teu rosto novamente entristeceu-se — Todos se foram, aos poucos, com medo, vergonha ou simples desprezo de minha pessoa. — Retorquiu por fim, envergonhado.
— Hum — bradou bem baixo a criatura, reflexiva. — Eu acredito que consigo lhe entender. Entendo mais suas motivações a cada minuto que passa.
— Então admite que compreende minha ânsia por sua chegada? — Buddy começou a arregalar os olhos, ansioso.
— Sim, embora ainda não concorde com ela — deu indícios fortes de uma opinião praticamente imutável — A sua relação com Ellen, que justifica ser sua vida, nada mais é que um instinto, como lhe falei. Aquilo que, em sua cabeça, lhe fará voltar ao normal; encontrar a felicidade outra vez. Porém, bancando o ser desprovido de emoções que me tornei, alerto a você que não precisa propriamente de Ellen para satisfazer seus sentimentos. Qualquer outra, ou outro, mortal pode fazer esse papel — Buddy a mirava apático, concluindo que a Morte poderia ser uma psicóloga mais eficiente que o próprio Dr. Carmine. — Por isso, Bernhard Baker, deve recomeçar. Buscar construir uma nova vida. Tem que esquecer tudo o que aconteceu no passado. Tudo o que aconteceu entre você e sua antiga esposa; pois, embora você ache que tudo isso seja o fim, o divórcio não é.
Ele, conquanto estivesse com pensamentos conflituosos quanto ao que ouvira da Morte, sentiu, pela primeira vez, que tinha uma nova chance de ser feliz, tendo esperança por dias e situações melhores, e relações que poderiam muito bem ajudá-lo a superar todas as dificuldades que enfrentava momentaneamente.
— Disse que ela e seus filhos eram sua vida, mas, se continuar com esses pensamentos e atitudes impróprios, clamando recorrentemente por minha presença, poderá causará sua morte.
Buddy se perdeu em pensamentos mais uma vez. Agora, indagando-se como poderia um ser completamente desprovido de sentimentos, construtos de uma alma, poder saber tanto sobre tais assuntos, embora voltados para o lado racional.
— Morte… — iniciou, recobrando suas cordas vocais — Você acabou de me dizer que aprendeu a não ter emoções — ele lambeu os beiços, curioso — Você já amou antes? — Deixou a indagação escapar, quase involuntariamente. Por um segundo, seu corpo sacudiu tomado por um medo momentâneo, promovido pela dúvida em relação à emulação da pergunta. Era certo, ou melhor, seguro, interpelar a Morte com tal demanda?
— Eu acredito que amar não seja a palavra correta, minha criança. Mas, sim, eu já me envolvi no passado — ela respondeu, concisa e direta, acalmando o duvidoso cidadão. — Embora não queira me aprofundar nisso agora.
— Tudo bem — o rapaz suspirou, impressionado com tal resposta; e completamente medroso em insistir por continuar o assunto — Acredito que agora entenda o porquê dessa tamanha racionalidade em relação à temática que discutimos — ele sugou o ar pelo nariz ligeiramente, como se tuas narinas começassem a possuir uma certa congestão. — Você é sábia. Mais humana que eu poderia imaginar.
— E ainda assim, tu continua a me temer. — Ela retrucou.
— Sim — admitiu, vexado. — Mas, se me permite a pergunta… Quem, exatamente, é você? — Seu coração disparou, sentindo-se temeroso em indagá-la, adentrando em sua nebulosa intimidade, mais uma vez.
A Morte virou-se para ele, verdadeiramente surpresa com o questionamento. Mirou-o por alguns segundos, até, enfim, devolver com outra pergunta:
— E por que eu deveria respondê-lo, Bernhard?
Ele refletiu por alguns segundos, sem desviar o olhar.
— O meu psicólogo, o Dr. Carmine, diz que nós tememos o que não conhecemos. E, ainda que eu esteja começando a achar que você é um melhor psicólogo que ele, eu acho que isso pode me ajudar a deixar de temer sua presença. Pode me ajudar a… recomeçar, sem ter medo do que eu vou deixar para trás, entende?
A Escuridão vislumbrou a curiosidade admirável do loiro, e, tecendo sua parte ao construir uma forte ligação com o miserável e fraco homem, decidiu dar a ele as respostas que buscava, embora soubesse que deveria esconder certas partes, impróprias para o discurso.
— Quem eu sou, você pergunta. Bem… Existe um lugar, repleto de um frescor sem igual e cheio de esperanças, virtuoso e repleto de vida, clemente pela paz e reciprocidade divina. Este lugar, vocês humanos, chamam carinhosamente de Céu. Segundo suas crenças, ele advém de uma filosofia ímpar de respeito e serenidade, formando uma utopia, uma nirvana astral. O famoso lugar da morada de Deus, onde vemos seu filho, Jesus, como ele é; local de glória e alegria jamais experimentado pelo homem. Eu venho de lá: do Reino do Amanhã.
— Você… veio do Céu? — O jovem perguntou, boquiaberto e impressionado.
— Sim. — exprimiu a Morte, nostálgica. Em sua mente suavizaram belas lembranças, que a levaram até um fatídico fim.
— Há muito, muito tempo… — ela começou, articulando sua ossamenta manual — Eu era um anjo. Um querido anjo. Respondia diretamente a Deus, o Senhor Altíssimo, governante do Paraíso. Minha pequena e serena alma era um dos símbolos daquele lugar, e minha jornada era missionar todos os pobres espectros levados para o mau caminho aqui na Terra. Durante eras realizei minhas missões, sendo aclamada por todos no Reino dos Céus, alvejada sempre por belas palavras do Bom Senhor. Eu vi situações inimagináveis e que ficaram marcadas na História Gloriosa, durante minha estadia por lá. Observei Lúcifer cair e se voltar contra Nosso Pai, e sobrevivi à sua fúria incontrolável que devastou grande parte de vosso Lar.
Buddy escutava a tudo atento, calado e ansioso pelo prosseguir do conto.
— Enxerguei o arrependimento em nosso Todo-Poderoso, por confiar tanto a vida dos mortais, quanto a nossa, naquele ser patético. O vi expulsá-lo pessoalmente de nosso Reino, transbordando poder e descontentamento, porém, ao mesmo tempo, misericórdia — ela parecia perdida em seus passos lentos, quase parando ao relembrar de tais eventos. — Deus, mesmo inconformado, ainda teve pena de seu antigo ajudante. Ele criou, abaixo da Terra, um lugar para Lúcifer viver, sem interferência com o Paraíso. Queria o ajudar e o amparar, acima de tudo. Mas o Anjo Caído era teimoso. Com o passar do tempo, ansiou em mostrar ao Onicriador o quanto seus atos benevolentes eram desprezíveis para sua índole; o quanto sua misericórdia era igualmente patética a seus olhos. Ele continuou a confrontá-lo, criando sua própria ordem, com serviçais alimentados pelo Medo e pelo Ódio, providos pelo sentimento de cada indivíduo aqui do seu mundo, criando um exército de criaturas tão maléficas quanto ele, até conseguir terminar seus feitos, alvorecendo assim uma nova religião — sua religião — e incorporando todas as almas penosas de seu planeta que o admirassem ao seu novo Astral nomeado de Inferno.
O rapaz transparecia confusão, embora tivesse a consciência que sua pergunta ainda seria respondida.
— Você é… um dos ajudantes do Diabo, então? — Questionou Buddy, inquieto.
— O quê? Lúcifer? Eu nada tenho a ver com ele, embora faça contantes serviços para tua carne.
— E onde você entra em tudo isso, Morte? Qual o teu propósito em me contar a jornada do Diabo? — Inquiriu novamente o rapaz, investido.
— Lúcifer foi o começo de tudo. Ele abriu espaço para a fuga de novos seres que serviam a Deus — continuou, voltando a caminhar de uma maneira mais acelerada. — Ele deu lugar à existência dos novos Anjos Caídos.
Buddy assustou-se. Seu coração disparou, quando aquelas palavras foram de encontro a seus ouvidos. Possuía um certo medo de tocar naqueles assuntos, já que eram completamente desconhecidos por sua raça mortal, embora a curiosidade fizesse, cada vez mais, parte de seu intelecto. E, então, ele continuou a escutar, mais atento do que nunca.
— Posteriormente partiram Yekun, primeiro seguidor de Lúcifer, que ficou responsável por seduzir e desencaminhar os anjos, portador de uma extrema inteligência; Kesabel, segundo anjo seguidor do Diabo, que convenceu todos os outros de que os homens eram inferiores; Leviatã, que veio a se tornar um dos governantes do Inferno, considerado o Príncipe dos Demônios e a encarnação do mal absoluto, dominado pelo orgulho e a heresia, com uma forma feminina que habita atualmente as profundezas do mar; Abaddon, conhecido hoje como o Demônio Destruidor, o Anjo Obscuro da Clemência, invocado por Moisés para arrasar o Egito; Azazyel, a entidade conhecida por apresentar as armas ao homem, ensinando-os a fazer espadas, facas e armaduras para se defenderem, com intuito de ostentar a guerra com foco em mortes; aquele que, segundo a profecia desafiará Miguel e Gabriel durante o Apocalipse; Samyaza, atualmente líder de um exército com cem entidades de demônios, se tornou o anjo que convenceu os demais a vir à Terra atrás de mulheres que achavam belas, fazendo assim surgirem as primeiras relações entre entidades e mortais; seguidos por eles vieram Gadrel, Penemue, e finalmente eu, Kasyade: o décimo Anjo Caído, que ensinou aos homens sobre os espíritos, explicando sobre a vida após a morte, e mostrando que eles podiam ser tão importantes quanto seu Senhor.
— Então significa que você é um dos anjos que partiram do Céu? — sua boca tremia consideravelmente. — Significa… que, em algum momento, se contrapôs ao próprio Deus?
— Correto, minha criança — revelou, fitando-o novamente. — Eu o confrontei por achar que vocês, humanos, deveriam obter maiores conhecimentos sobre nossa raça, os verdadeiros deuses. Sempre soube que minhas intenções eram nobres, embora nunca concordassem comigo. Apenas dois seres poderosos, até hoje, consentiram com minhas condutas, sendo um deles, atualmente, meu Senhor.
— Então você tem um mestre? — Buddy questionou a Morte, intrigado.
— Todos nós temos, Bernhard. Resta saber se nossos mestres nos fazem sermos realizados em nossos anseios. — Ela respondeu, direta.
— E quem ele seria? Um demônio também? — O curioso rapaz deixou escapar.
Ela calou-se, e ele sentiu que ela mais uma vez sorria.
— Foi um dos teus que uma vez disse: ”Há muito mais entre o Céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia.” — ela olhou para cima, de alguma forma, mas o capuz permaneceu inerte — Nem tudo se resume a anjos e demônios, Deus e Lúcifer. Você sabe disso: já lutou ao lado daquilo que chamam de Deuses. Os Velhos e Novos, não é? A verdade é que há muitas criaturas, de imenso poder, que se colocam dentre as lacunas de hierarquia e poderio entre Deus, anjos e mortais. São erroneamente denominados deuses por infindáveis culturas e povos. O meu mestre… — repentinamente, a Morte encerrou sua fala, entrando em quietude por um longo período. — Eu não devo tocar em tais assuntos com você, mortal. Peço perdão.
O jovem homem perdeu-se em pensamentos ainda mais confusos quanto à sua naturalidade ou missão aqui no pobre planeta Terra. Em meio a alienígenas, raças viajantes interplanetárias superiores, ainda tinha um pequeno espaço para Deuses e Demônios, que desafiavam a ciência Terrestre e a crença em divindades palpáveis.
— Qual, exatamente, é a sua tarefa aqui em nossa realidade, recrutando tantas almas? Para onde as leva? — Buddy sabia que poderia abusar demais da bondade e coleguismo da Escuridão Imortal, embora seu zelo por respostas fosse maior do que qualquer receio. Sabia que ela não responderia sobre o mestre: fora clara quanto a isso. Mas havia muitas perguntas que tinha para fazer antes de sanar seu medo.
— Eu apenas faço o trabalho que meu mestre se cansou de fazer. Eu levo as entidades de volta a seus lares. Os que merecem, caminham de volta aos Céus, e os ordinários rumam à pátria de Lúcifer, para arderem e pagarem suas penitências sobre sua estadia aqui na Terra — ela inquietou-se quanto à qualquer mistério. — Eu vago por aqui, pelo Purgatório, em busca de auxiliar a todos vocês pelo caminho que deverão seguir até chegarem em seu destino.
O loiro pareceu não entender muito bem. Virou-se para a criatura tão rápido que seu pescoço quase estralou.
— O Purgatório? — Dissertou, preocupado, com as vistas esbugalhadas.
— Sim, Bernhard Baker. O Purgatório. Por isso seu mundo é tão cruel. Pessoas passando as outras para trás, tentando se dar bem; o sofrimento das relações interpessoais e de seus míseros corpos físicos; a fome, a violência… — sua fala começou a fazer o rapaz ligar os pontos e iniciar mais uma longa reflexão. — Os que daqui partem, ou morrem, como gostam de falar, reconquistam seu lugar no Reino de Deus, ou pagam severamente por suas atitudes de uma vez, passando muito calor lá em baixo. Nosso Senhor sempre disse que várias almas escolhem seguir a Lúcifer, e para não sofrer com um maior número de desertações, prefere testar cada uma delas aqui.
— Então tudo isso… — bradou Buddy, transtornado — Tudo isso é só um teste? Uma vida de mentira?!
— Na verdade, rapaz… Tudo isso é apenas uma jornada de auto-conhecimento. O começo do aprendizado carnal e espiritual, que evoluirá ainda mais quando atingir seu estado espectral — ela alvejou-o com palavras fortes. — Hoje eu vim até você para, além de tentar lhe entender e convencer a não vir comigo, lhe alertar para os caminhos que todos os suicidas percorrem. Enfrentam muitas dificuldades, e todos, sem exceção, se arrependem de tais atos.
Baker a encarava embasbacado, simplesmente sem palavras. Suas forças esvaíram de teu corpo de tal maneira que seu maxilar parecia dormente.
— Repense suas atitudes, Bernhard. Recomece, conquiste seu lugar nos Céus. Não queira acabar como seu pai, ardendo pelas terras de Lúcifer.
— Meu pai… — Impressionou-se.
— Me lembro de quando o levei — suas palavras carregavam uma certa aflição. — Pobre homem. Mentalmente fraco demais. Sinto em dizer, mas ele mereceu ser levado para o lugar que reside hoje. E, sinceramente, Bernhard, espero que ouça meu apelo, ou pode sofrer do mesmo destino que ele quando eu o levar. Por enquanto, porém, eu não creio que mereça algo do tipo.
O rapaz suspirou, relembrou de seus punhos ácidos, do que seu velho pai fazia contigo, com seu irmão e, principalmente, com sua querida e indefesa mãe. No fundo, concordava com cada palavra que a Morte dissera sobre seu progenitor, podendo até implementar muitos outros adjetivos perversos que o definiriam, e opiniões igualmente ratificantes sobre seu destino; no fundo também, via que sua figura atual assemelhava-se demais com a de seu velho, podendo futuramente trilhar o mesmo caminho que ele, exatamente como a Grande Amiga avia alertado. A Morte despediu-se pouco tempo depois, já que seu fatídico serviço lhe chamava. Era alguém bastante ocupada, e já havia passado tempo demais sobre seu encalço. Quem sabe poderiam se encontrar novamente, antes de sua partida. No fim, todo aquele medo inicial perante à criatura pareceu bobo, e uma singela admiração por sua figura começou a crescer, fagulhando uma pequena saudade de sua companhia.
4
Seus lindos e formidáveis olhos azuis se abriram, embora sua vista permanecesse vaga, distante e sem vida. Acompanhava, pela segunda vez naquela semana, o ciclo sem fim do ventilador de teto, agora um pouco empoeirado, enquanto o calor e a escuridão apoderavam-se do cômodo. A fagulha de luz atravessando a janela incomodava-o cada vez mais, como se quisesse, a todo momento, abrir a cortina e banhar de sol todos os livros desusados sobre as estantes e os móveis estáticos grudados ao chão. O famigerado consultório do Dr. Carmine, também conhecido com a sua casa de desabafo.
— Olha, Buddy… Esse sonho foi diferente — manifestou o psicólogo, retirando seu óculos da face e olhando sem barreiras para o debilitado homem — Você… se encontrando com a própria Morte? — começou a amaciar o queixo, lentamente, bem pensativo. — Isso é novo. Ninguém nunca relatou tal experiência para mim, antes.
— Foi apenas mais um sonho, doutor. — Disse Buddy, enganando-o, ainda olhando para cima.
O loiro sabia que tudo aquilo havia, de fato, acontecido. Que tudo aquilo fora real. Mas decidiu abster aquele que o ajudava de tais informações, com medo da Morte — ou de seu citado mestre — repreender suas atitudes. Escondeu do conselheiro também certos momentos, como a história da criatura e a verdade sobre as almas que peregrinam aqui na Terra; contou o necessário: sua vinda, e sua tentativa por desencorajá-lo do suicídio. Estava ali em busca de ajuda, mais uma vez, e usaria algumas informações novas para tentar entender, sob um outro ponto de vista, tal aparição que recebera.
— Sim, sim. Claro — argumentou o médico — Eu sei disso. Mas mesmo assim… é, deveras, engraçado — Carmine começou a analisar as fichas do paciente, foleando-as de cabo a rabo em sua mediana prancheta. — Todos os sonhos que vem me relatado se relacionam, de alguma maneira, com a morte. Envolvem cemitérios, cadáveres, assassinatos, túmulos, caixões… e agora isso. Talvez esse possa ser o ápice de tudo. O encontro de todos os devaneios. Finalmente encontrou com aquilo que ocasiona todas essas coisas: a própria Morte.
— Sim. Eu finalmente me encontrei com a Morte. Mas, por incrível que pareça, não morri — o rapaz sorriu, involuntariamente — O sonho teve um ar de redescobrimento e tranquilidade — suspirou por fim, acreditando piamente em suas próprias palavras. — Como pode isso acontecer?
O doutor encarou seu paciente, tentando analisar a força com que as palavras saíam de sua boca, para que pudesse tecer uma opinião mais clara do que Buddy havia achado, realmente, da visita importuna.
— Não faço ideia — maneou a cabeça, enquanto balançava a caneta em sua mão repetidamente. — Talvez aquele seu constante anseio misturado com medo da morte tenha ocasionado esse sonho, Buddy. Por mais que você estivesse depressivo, achando que essa fosse a solução para todos os problemas, lá no fundo sabia que não era. Sente muito medo de partir, como a maioria das pessoas — interrompeu os movimentos repetitivos em sua mão, deixando a caneta estática. — Ela veio apenas para abrir os seus olhos a respeito de tudo isso. Auxiliá-lo, de alguma forma, mostrando o caminho certo. É estranho pensar isso, mas é a única conclusão na qual que consegui chegar.
— Depois do que passei, sim. Acho que finalmente entendo essa confusão que estava me matando, certas horas — suspirou bem fundo, filosófico. — Mas e aquela criatura, metade homem, metade cão, que insiste em me perseguir, todas as vezes? O que seria ela?
Carmine permaneceu em quietude por um momento. Tudo o que se ouviu foi o constante clic da caneta, e o rodar do ventilador, enquanto ele refletia.
— Eu acredito que possa estar relacionado a algum medo de infância, mas… ainda me parece um terreno nebuloso. — O doutor coçou a cabeça por mais alguns instantes, seus neurônios fritavam sua mente com diversas hipóteses; mas logo deixou tudo isso de lado, e prosseguiu. — Acredita mesmo no que ela te falou? Que somos animais, e que nossos prazeres não precisam de alguém em específico para serem realizados?
— Eu não sei — a confusão novamente adentrando sua mente, como na conversa com a Velha Amiga — Ao mesmo tempo que acredito nisso, não acredito. Não sei explicar. Eu ainda amo demais a Ellen. Não me vejo com outra mulher, assim como não consigo vê-la compartilhando seus sentimentos com outro homem — seu coração acelerou só de pensar na ruiva, demonstrando fortes indícios de uma paixão ainda vivente dentro de si, que provavelmente nunca acabaria. — Eu confesso que não sei de mais nada. Só que ainda quero viver; e que realmente não deveria cessar minha vida nesse momento.
Teu olhar glauco atingiu o rosto pálido e inquieto do doutor, que ouvia tudo aquilo vislumbrado e alarmado.
— A Morte aconselhando alguém a não se suicidar… Isso é interessante. Muito, muito interessante — expressou, com um sorriso pequeno em seu rosto, impressionado — Se isso não fosse um sonho, eu até diria que ela poderia estar te manipulando para alguma coisa — riu um pouco, descompromissado. — Como se realmente precisasse de você vivo, para algo maior que viria a seguir.
— Você acha? — questionou o rapaz, estudando as possibilidades novas que seu conselheiro havia apresentado. — Acha mesmo que ela poderia estar me manipulando?
— Eu acho que tudo é possível. Ela é a Morte, ora essa — ainda ria, tentando divertir-se com a situação. — Como negaria levar uma alma? Esse é… o serviço dela, não?
Buddy não ria. Diferente do doutor, sabia muito bem que, se tudo aquilo de fato acontecera, poderia mesmo estar sendo enganado pela Escuridão Imortal.
— Ela me falava que não era a hora de eu partir. Não agora. Que a vida ainda reservava algo para mim — enunciou Buddy, respirando profundamente, sentindo lentamente o ar chegar a seus pulmões e serem expulsos em seguida. Seu corpo funcionando com maestria, sem dificuldades, examinando cada detalhe que a vida reservava a uma existência mundana. — Em sua fala, ela parecia querer transmitir uma mensagem de importância, entende? Como se a minha vida possuísse um certo prestígio, de alguma maneira.
Carmine o encarava, calado. Aproveitava-se de Buddy querendo se abrir cada vez mais, e, em sua cabeça, não faria nada para interrompê-lo.
— Acha mesmo que, se esse sonho tiver algum significado, poderia ela estar me enganando, de uma certa forma? — Pronunciou o loiro, ainda inquieto com as novas possibilidades.
— Olha, Buddy, como eu disse: tudo é possível! — enunciou o psicólogo — Afinal de contas, você é um cara que voa! Convivemos com meta-humanos divinos e extraterrestres a nossa volta, então, não posso duvidar de mais nada — deu mais uma risada gostosa. — Mas… por que se preocuparia com isso?
A Morte aparecer em sua própria porta abriu inúmeros caminhos para seu auto-conhecimento. Depois de escutar suas palavras sábias, e de caminhar durante um bom tempo ao seu lado, observando por um panorama novo a sociedade ao seu redor, o Homem-Animal descobriu que a morte não era bem o que queria para si, embora ainda tentasse adivinhar o que a vida guardava para sua pessoa.
— Então… podemos classificar esse como nosso décimo oitavo pesadelo, não é? — Conjecturou Carmine, tentando quebrar o silêncio ensurdecedor que Buddy proporcionou após proferir suas últimas palavras até então.
— Acho que não, visto toda a carga boa que esse sonho carregou — retrucou Baker, no segundo seguinte — Porém, pouco antes de sonhar com a visita da Morte, vislumbrei meu pai em uma floresta — ele ainda era capaz de sentir arrepios só de lembrar do pai. — Uma ilusão, eu acho. Ele matava um cervo, brutalmente. E, depois, atirava em mim. Estava muito… nervoso, e decepcionado comigo.
O doutor quase estalou os dedos, levantando sua coluna na cadeira, expondo uma postura perfeita. Agora sim vamos começar a entender melhor isso tudo, pensou. Posteriormente colocou os cotovelos sobre os joelhos, e as mãos foram de encontro ao queixo, apoiando-se sobre elas.
— Eis aqui nosso décimo oitavo pesadelo! — rugiu, quase feliz pelo que Buddy narrara. — Vamos… er… quer dizer… conte-me mais. — Inquiriu, reassumindo a postura fria que conservara até pouco antes.
E, naquele momento de reflexão, Buddy lembrou-se das palavras da Morte não só a respeito do pai, como também, a respeito dele. Palavras as quais havia ocultado de Carmine, mas que, agora, lutavam para sair por sua garganta, em busca de uma segunda opinião. Precisava, desesperadamente, saber se aquilo era verdade — ainda que, no fundo, já tivesse essa certeza.
— Acho que era uma memória de algo que realmente aconteceu, mas um pouco alterada — as palavras pareciam escapar por seus lábios sem que tivesse consciência, mas, conforme vinham, ele descobria que eram, de fato, verdadeiras. — É claro, ele nunca chegou a atirar em mim.
— O que, detalhadamente, ele fazia no sonho? — Perguntou o médico, com a curiosidade trasbordando de sua mente.
— Estava me ensinando a caçar — proferiu — Mas eu… eu não conseguia puxar o gatilho — e, de repente, turbilhões de memórias do pai, antes enterradas, ressurgiram, abalroando-o com sua força sobrenatural. — Ele me chamava de “maricas”, ou qualquer coisa do tipo. Depois, me matava.
Carmine anotava tudo rapidamente, a mão fazendo traçados velozes. Por um segundo, fez o herói lembrar-se de um médium. A ideia o divertiu, e o fez sorrir por um momento.
— Bem… — murmurou o psicólogo, após algum tempo. — E na realidade? Como era o relacionamento com seu pai na infância?
— Não muito bom — se ouviu dizer, quase imediatamente após a pergunta. — Ele era… agressivo. Mesmo quando não estava bêbado.
— E como você se sentia em relação a ele? — O médico levantou uma de suas sobrancelhas, curioso e estimulado com o caminho que a conversa tomara.
— Eu… sentia ódio. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia deixar de amá-lo. O desgraçado era meu pai, acima de tudo. — Disse, olhando para frente, devaneando antigas e cruéis memórias.
— Agressões físicas eram frequentes?
Por um momento, as memórias se tornaram tão vívidas que Buddy pensou estar tendo uma alucinação. Viu o punho do pai, vívido como nunca, aproximando-se loucamente, duas, três, seis vezes. Viu a mãe chorar, o irmão o enfrentar.
Tudo isso num átimo.
— Não — a mentira saiu de forma quase natural. Era recorrente durante a infância: toda a família negava as agressões de seu patriarca, ainda que não fosse necessária confirmação. Percebendo o que fizera com espanto, Buddy encarou Carmine, franzindo a testa. — Quer dizer… sim. Ele nos batia com frequência. Em mim, na mamãe, no Brian. Corretivos, era como ele chamava. Quando a gente fazia bobagem, quando quebrávamos alguma coisa, ou quando… esquecíamos quem mandava. Ele pegava o cinto, ou usava os punhos, quando estava nervoso e ocupado demais pra pegá-lo.
Carmine anotou isso de forma surpreendentemente rápida.
— E você relaciona as agressões e humilhações com o seu comportamento atual?
E, com isso, o herói calou-se. Simplesmente voltou a fitar o ventilador, pensativo, mas ainda sem forças para admitir tais relações entre suas ações e sua gênese. Fechou os punhos, e também os olhos, lembrando-se da face do pai, do ódio e da ira, e, sem espanto, mas com medo, percebeu que era exatamente o mesmo que sentia nos momentos que antecediam os surtos.
Uma lágrima lutou para sair. Ele a segurou.
— Sabe, Buddy… Eu sei que nunca quis me contar. Nunca quis entrar nesse assunto. Mas eu vi nos noticiários. Eu sei o que aconteceu. — Carmine não aguentou, expondo exatamente onde queria chegar com tudo aquilo.
Buddy ainda olhava para o alto, sua cabeça distante, porém ainda ligada nas palavras do psicólogo. Não parecia nem um pouco querer se abrir para tais fatos, todavia não impedira o médico de tocá-los.
— Quando Freud desenvolveu a psicanálise, ele a definiu como um campo clínico da psiquê humana. Entre seus estudos nesse âmbito, os mais relevantes foram a respeito dos mecanismos de defesa e repressão psicológica do nosso subconsciente; em especial, de como as ações e acontecimentos da infância influenciam em nosso desenvolvimento psíquico e condutas na vida adulta — esboçou o doutor, sabiamente, expondo alguns de seus conhecimentos adquiridos na faculdade; e loiro continuou sem abrir teus lábios para se pronunciar. Parecia filosófico e auto-punitivo em sua própria mente. — Você tem visto seus filhos?
Tuas pupilas dilataram-se e, no meio de tanta imundície nadando entre seus neurônios, uma paz reinou. Ele se lembrou dos bons momentos que passara com Cliff e Maxine, exercendo de uma maneira satisfatória a função de pai.
— Não — ele deixou escapar, baixinho. — Ellen me proibiu. Ela não me vê como uma boa influência para eles.
— Olha, Buddy… não querendo ir contra você, mas eu concordo com ela, relativamente — expressou-se Carmine, conciso. — Tudo o que aconteceu entre vocês dois, pode, de alguma maneira, ter traumatizado muito o Cliff e a Maxine, assim como seu pai te traumatizou na infância. É o que Freud tentou expressar em sua teoria.
As atenções do loiro voltaram-se à face pálida do psicólogo, analisando-o com olhos marejados.
— Eu sei que você não é como ele, mas a bebida desperta essa ira reclusa aí dentro. É a sua kryptonita, o que faz você perder as forças que te controlam, tornando-o uma outra pessoa. Alguém que você não é.
— E como eu posso mudar isso, doutor? Como posso convencê-los a não serem como eu; a apenas se inspirarem nas partes boas de minha personalidade? — Buddy inquiriu, emocionado e duvidoso. — Ellen não me deixa visitá-los, de maneira alguma. Nem ela e nem a justiça! Tenho, por lei, que ficar a uma distância de 500 metros deles.
Carmine voltou a erguer teu corpo, posteriormente acomodando sua coluna retilínea no encosto de sua poltrona confortável. Respirava fundo, suas consultas com Buddy sempre sugavam suas energias — e ideias. Mas ele gostava, acima de tudo. Adorava poder ajudar, sempre que possível. Acudi-lo, quando Buddy deixava.
— Então fique! — expressou o psicólogo, pouco depois, transparecendo certeza e autoridade em teus vocábulos. — Vigie-os. Mate a saudade, nem que seja de vista. Você é o Homem-Animal, ora essa. Voe por aí. Acompanhe parte de suas rotinas, mas não deixe que eles o vejam. Arranjaria um problema grande, caso contrário.
— Acha que isso pode me ajudar? Aproximar, sem, de fato, aproximar? — O rapaz questionou, esperançoso.
— Acho que isso é parte do caminho que terá que seguir. O começo de uma reaproximação.
Buddy assentiu, tomado novamente por pensamentos bons e promissores. Poderia, realmente, ser uma boa alternativa, pelo menos por enquanto. Carmine sabe das coisas, é um bom profissional, ele pensou, reflexivo, analisando as possibilidades de tudo voltar a dar certo, sua vida caminhando novamente aos trilhos. Voltou a fitar o ventilador de telo em movimento, subsequentemente; teu giro pareceu perder a força, diminuindo-se aos poucos. As hélices logo encurtaram suas larguras e aumentaram seus comprimentos. Tornaram-se ponteiros compridos, ainda mais vagarosos aos seus olhos.
5
O relógio marcava exatamente cinco e meia da tarde, enquanto seu ponteiro dos segundos começava um novo ciclo, o grande sinal da Escola Municipal ecoava por entre os corredores. As portas de cada uma das salas de estudos abriam com força, fazendo os longos passadiços ficaram repletos de alunos ansiosos para voltar às suas residências. Um empurra-empurra tomava conta do local e pela porta central passavam inúmeras crianças e adolescentes por segundo, descendo as escadas com uma rapidez ímpar. Dos céus, Buddy Baker pairava logo acima do lugar estudantil, observava os jovens correrem rumos aos carros que os aguardava e outros ficarem, esperando pela busca de seus pais; haviam aqueles que esperariam o ônibus escolar, e os que simplesmente não precisavam de nenhum meio mecânico para partir, já que, responsavelmente, iam andando para casa. O Homem-Animal trajava roupas comuns, estava sem seu engraçado e conhecível uniforme, apenas escondendo-se entre as nuvens para que ninguém o visse — ninguém, de fato, já que seus filhos eram quem ele almejava ver, embora não quisesse igualmente ser admirado.
Do alto viu Maxine, sua filha mais nova, balançando seus longos cabelos loiros ao vento, conversando com suas coleguinhas de turma — de quem, na época que moravam juntos, não parava de falar para o papai. Também fitou Cliff, dois anos mais velho que a filha, com seu mullet ruivo à mostra, e suas sardas que tomavam praticamente conta de todo o seu rosto esbranquiçado. Era acompanhado também de alguns colegas, esses, como Buddy sempre suspeitou, más influências. Ao que parecia, rendiam um garoto mais novo próximo à lateral do colégio, pareciam querer demonstrar medo ao rapaz, quando o mesmo retirou notas amassadas do bolso e entregou a um dos amigos de Cliff. Buddy enfureceu-se durante um espasmo temporal, mas recobrou a consciência, já que, notavelmente, não poderia interferir na situação. O pequeno garoto correu posteriormente, a patota de delinquentes juvenis riram alto, sem parecer que tal acontecimento deveria ser encoberto, retirando assim as suspeitas dos superiores comandantes da Escola. Enquanto Maxine ainda dialogava com suas amigas, rindo bem baixo, o grupinho admirava alguns meninos visivelmente populares; suas ações remetiam-se a querer chamar atenção dos tais rapazes, quem sabe na tentativa de um início de romance; a garota loira, detentora do sangue Baker, parecia ser a mais desatenta e desligada do bando, como se simplesmente não desse muita atenção a garotos — em geral. Talvez aflorasse em sua mente um certo trauma de ter um semelhante dentro de casa que só caçava confusão, e um pai distante violento. Buddy observava com calma e friez, controlando-se para não descer até lá e trocar míseras palavras com alguma de suas crias.
Voltando novamente seus olhares para Cliff, Baker notou uma pequena rixa dividindo a equipe de marginais. Quando um dos garotos pareceu confrontar seu filho, o pequeno mancebo o socou com força no rosto; nenhum outro integrante pareceu querer intrometer na situação, como se possuíssem um certo medo de Cliff, disfarçado de respeito. O ruivo posteriormente chutou o colega, ao chão, dando inúmeros ponta-pés em sua barriga. O jovem apenas remexia-se, sem gritar ou esforçar-se a dar algum alarde. Cliff em seguida levantou os braços e foi ovacionado pelos malfeitores à sua volta, como se fosse uma espécie de Grão-Mestre, um sábio, igualmente invulnerável. Dono de uma personalidade forte e visivelmente facínora. Buddy, lá do céu, repreendeu tais atitudes, não acreditando no que via. Já que ninguém parecia querer impedi-lo, tal tarefa deveria ser concluída pelo próprio pai, embora o mesmo não estivesse em uma posição legal satisfatória. Buddy rasgou as nuvens, descendo rapidamente até o solo. Pousou com tranquilidade, porém imponente para assustar os garotos — e deu certo. Todos os que cercavam Cliff correram de medo, mas o pequeno Baker perpetuou no lugar que estava, sem mover um músculo sequer.
— Você não deveria estar aqui, seu cuzão — proferiu o garoto, pensando estar no controle da situação. — Eu vou contar pra mamãe. E ela vai acabar com a sua raça!
— Ei, Cliff… — Buddy esticou seu braço, indo de encontro aos ombros do garoto, quando seu filho moveu suas pernas tentando sair do local. — Por favor, espere.
— O que você quer? — bradou o jovem, com um tom de voz elevado, de personalidade visivelmente alterada. — A mamãe disse que é pra você ficar longe da gente. E pra gente ficar longe de você.
— Como seu pai, eu tive que interferir — o loiro deixou escapar. — Você bateu naqueles dois garotos, como se fosse um marginal.
— É, eu bati, porra. O que você tem a ver com isso? — Disse, olhando furiosamente nos olhos de seu pai.
— Eu não acho certo — expressou, maneando a cabeça. — Meu filho… O que está acontecendo com você?
— O que está acontecendo comigo, pai? — inquiriu o garoto, transtornado, balançando seus braços pálidos de pequenos pelos vermelhos. — Eu estou ficando igual a você!
Buddy calou-se. Inevitavelmente o assunto surgiria, não tinha escapatória. Apenas fitou seu filho novamente nos olhos, analisando seus belos e charmosos olhos azuis, herdados de sua pessoa. Teu olhar era vago e repleto de angústias, como de alguém que precisava imediatamente se provar; mostrar aos outros o quanto era emasculado e cruel, para obter controle sobre os mais fracos. Na natureza, ele seria um animal que pensava estar acima de todos os outros, como um forte e impiedoso carnívoro no topo da cadeia alimentar.
— Eu pensei que você era diferente, Cliff. Que protegeria sua mãe e Maxine. Elas precisam de você.
— E o que você acha que estou fazendo, caralho? — protestou o ruivo, com uma pequena lágrima envolvendo sua pálpebra — É o que faço. Dia após dia. É o que faço desde quando virei o homem da casa — teus lábios começaram a tremer um pouco, e sua boca encheu-se de palavras de orgulho. — Eu arrumei um emprego, ajudo com as contas, cuido da mamãe e da Max… Eu faço o que você deveria estar fazendo, seu babaca!
— Cliff, meu filho… Eu juro, queria poder fazer tudo isso — Buddy disse, relutante — Ajudá-lo, assim como pretendia estar ajudando sua mãe e a Maxine — fraquejou por um momento. — Mas não posso. Você sabe que não posso.
— PORQUE VOCÊ É A PORRA DE UM CUZÃO! — Repreendeu o jovem, com a vermelhidão se apoderando do rosto.
— Mas isso, meu filho… Bater nos seus colegas, tentar ser um valentão machucando as pessoas… — Buddy expressou-se, querendo chorar junto com o filho. — Isso não faz parte de quem você é.
— Será mesmo que não faz, pai? — disse o garoto, elétrico. — Será que esse não é a porra do meu carma? Ser igual a você?
— Isso, Cliff. Você está indo bem. Desabafe. — Articulou Buddy, bancando uma espécie de psicólogo paterno, tentando ajudar.
Posteriormente tentou colocar uma de suas mãos no ombro do garoto, em uma tentativa desesperada de aproximação.
— Tira essa mão de mim! — Bradou Cliff, batendo no braço de seu pai, tirando-o de perto.
— Me desculpe, filho… Eu só estou querendo ajudar. — Buddy disse, cabisbaixo.
— Quer saber de uma coisa? — o menino ruivo começou — Quando você for embora, eu vou parar de demonstrar essa minha fragilidade — rangeu os dentes. — Quando for embora… Vou voltar a ser o valentão da escola e o homem lá de casa. Porque é isso que eu sou.
— Ajudar sua mãe e a Max, tudo bem… mas ser esse garoto revoltado e vazio de sentimentos, não. Esse não é você, Cliff! — enunciou Baker, descontente — Você tem que ser o que nunca consegui me tornar — uma pequena lágrima escorreu por seu rosto branco e descuidado. — Um herói.
— É um pouco difícil não ser você, sabe… — o garoto engoliu o choro e firmou-se novamente. — Eu tive um belo exemplo dentro de casa. De como tratar as pessoas.
— Você sabe muito bem que eu nem sempre fui assim. — Buddy tentou argumentar.
— Cala a sua boca. Você sempre foi assim. Sempre que bebeu ficou alterado e violento — o garoto se aproximou, colocando seu rosto muito próximo ao do pai, encarando-o friamente. — Mas nunca percebeu. No outro dia, acordava de ressaca e, na sua cabeça, nada tinha acontecido.
— Isso não é verdade… — Usou suas últimas forças.
— Você sabe muito bem que é. Com o tempo, descobri que meu pai era outra pessoa. Um cara agressivo, maldoso, sem escrúpulos — o garoto começou a se afastar. — Muito diferente daquele super-herói que eu construí na minha mente.
Maxine, perto dali, observou os dois discutindo. Indagava-se o porquê de seu pai estar presente, sendo que não podia, de fato, se aproximar deles. A garota correu em suas direções, sem nem se atinar — ou fazer uma despedida — para as colegas. Sua mochila rosa balançando nas costas, segurando vários livros de ciência e matemática, pregados ao tórax.
— Cliff… — a garota exprimiu, rapidamente. — Sai já daí!
— Maxine… — Buddy a viu chegando, e seus olhos ficaram ainda mais marejados.
— Dá o fora daqui, otário — ouviu por fim as palavras saírem da boca de Cliff. — A gente tá bem sem você.
Buddy levantou-se, começou a dar pequenos passos em direção à filha, no intuito de se aproximar e trocar carinhosas palavras. Falar sobre suas saudades e tentar reconquistá-la, em um último ato de esperança.
— Você está surdo agora, pai? — Cliff o empurrou com força, fazendo-o se afastar imediatamente — Eu mandei você dar o fora daqui!
O loiro fitou seu filho nervoso, posteriormente recolocando seus olhares no rumo de Maxine. Racionalmente decidiu ir embora, já que possuía a certeza que uma reaproximação naquele momento, aproveitando-se dos atuais frágeis estados de convivência, seria impossível. Virou teu corpo e caminhou rapidamente na direção oposta dos corpos do garoto e da garota, afastando-se o mais rápido, humanamente, que podia. Em intervalos de poucos segundos, recolocava sua visão em suas direções, querendo analisá-los por algumas vezes mais. Seu coração palpitava loucamente, e quanto mais o tempo passava, mais o arrependimento tomava conta de sua mente. Estava torcendo para que os garotos não contassem a Ellen sobre a visita importuna, pois se ela descobrisse, estaria mais encrencado ainda — se é que isso fosse possível.
Continua…
Roteiro escrito por Victor Dourado e Lucas Calil.
Inspirado nos personagens da DC Comics/Vertigo.
Homem-Animal foi criado por Dave Wood e Carmine Infantino.