Detroit. 23 de julho de 1967. Uma operação policial não autorizada invade um bar sem licença na esquina das ruas 12 e Claremont, onde quase uma centena de pessoas celebrava o retorno de dois soldados negros da Guerra do Vietnã. Todos são presos e uma multidão revoltada se forma do lado de fora, começando a saquear e incendiar estabelecimentos nas proximidades. A polícia reage com força. O conflito racial dá origem a uma rebelião mortífera e devastadora, e um motim civil toma conta de vários distritos da cidade ao longo de cinco dias. Depredações, saques e todo tipo de vandalismo espalham-se rapidamente. A Guarda Nacional e o Exército são acionados pelo governador de Michigan. Enquanto bairros inteiros são engolidos em chamas, tanques de guerra patrulham as ruas residenciais de Detroit, envolta em nuvens de fumaça. Ao final daquela semana que transformou a cidade em uma zona de guerra, dezenas de pessoas foram mortas e milhares foram detidas e feridas. Um dos incidentes mais nevrálgicos desse cenário ocorreu na noite entre os dias 25 e 26 de julho, no motel Algiers, envolvendo oficiais da polícia de Detroit, membros da Guarda Nacional, a polícia do Estado de Michigan, um guarda privado, sete jovens negros e duas jovens brancas. O saldo final: três dos nove jovens assassinados à queima-roupa e todos os outros seis espancados, torturados e humilhados.
Os últimos dois filmes da cineasta Kathryn Bigelow também foram dramas baseados em fatos reais, ambos ocorridos em meio à guerra: Guerra ao Terror (2008), sobre a invasão norte-americana no Iraque, e A Hora Mais Escura (2012), sobre a caçada a Osama Bin Laden no Oriente Médio. Em Detroit em Rebelião, Bigelow não volta o seu olhar documental para uma guerra declarada e nominada como fez em 2008 e 2012, mas pode-se afirmar com absoluta certeza que a batalha devastadora que eclodiu em solo americano naquela semana de julho de 1967 foi comparável a de uma situação de guerra. Uma guerra interna que expôs as veias cortadas da América. Uma guerra na qual não existiam Aliados ou o Eixo. Não havia um inimigo declarado. Um alvo. Mas sim pessoas comuns, civis e policiais, guerreando entre si, e uma chaga racial que deixou como legado um dos momentos mais sombrios da história dos EUA.
Melvin Dismukes (John Boyega) é um segurança negro, designado para proteger uma mercearia nos arredores do motel Algiers. Philip Krauss (Will Poulter) é um policial racista e psicótico que fere mortalmente um saqueador de loja com um tiro de espingarda nas costas em plena luz do dia, ainda assim recebendo permissão dos seus superiores para continuar em serviço enquanto não é formalmente acusado. The Dramatics, um grupo musical negro de rhythm and blues, tem a esperança de conseguir um contrato de gravação com a Motown Records. Instantes antes da apresentação de suas vidas em um teatro, o local é evacuado pela polícia por causa dos confrontos que acontecem na região. Durante a evacuação, Larry Reed (Algee Smith) e Fred Temple (Jacob Latimore) separam-se dos demais integrantes do grupo e alugam um quarto no Algiers, onde conhecem Julie Ann (Hannah Murray) e Karen (Kaitlyn Dever), duas garotas brancas que os apresentam a Carl Cooper (Jason Mitchell), Aubrey (Nathan Davis Jr.) e outros amigos. Uma brincadeira estúpida de Carl envolvendo uma pistola usada para dar largadas em corridas perturba as garotas, que acabam no quarto de Greene (Anthony Mackie), veterano da Guerra do Vietnã – enquanto os dois músicos voltam ao quarto que alugaram. A posterior decisão – extremamente inconsequente – de Carl de atirar com a pistola na direção de soldados da Guarda Nacional para assustá-los é o estopim de uma tragédia anunciada quando Krauss invade o motel acompanhado pelos oficiais Demens (Jack Reynor) e Flynn (Ben O’Toole), em busca do atirador. Melvin também vai ao local, tentando apaziguar a situação, mas sem sucesso – e acaba tornando-se partícipe dos eventos, lado a lado dos policiais.
Detroit em Rebelião é inteiramente erguido sobre tensões – e Kathryn Bigelow já provou que sabe controlar tal sentimento como poucos cineastas são capazes de fazer. Da tensão racial que dá origem aos conflitos, sua câmera de mão, documental e tremulante, sempre à meia-altura, em planos médios ou curtos, começa a capturar detalhes das ações e compôr o quadro geral que se desenrola na cidade: objetos disparados na direção da polícia, saques e depredações de todo tipo, incêndios criminosos, confrontamentos entre civis e forças de segurança, abordagens policiais extremamente violentas e atiradores no alto dos prédios – com direito a sequências chocantes, como o erro grotesco de um soldado que confunde uma garotinha espiando na janela com um atirador. A fotografia de Barry Ackroyd contribui na imersão total que o filme proporciona, entregando um visual característico de filmes políticos clássicos da década de 1970, além de obter um registro noturno e intimista da vida dos hóspedes do motel.
Em alguns momentos, a diretora mescla a encenação ficcional com imagens reais de arquivo das TVs da época. O barril de pólvora no qual Detroit se converte é devidamente manuseado pela edição competente de William Goldenberg, indo e vindo nos inúmeros núcleos do roteiro escrito por Mark Boal, que introduz aos poucos os variados vértices narrativos que irão se encontrar no desfecho do motel Algiers ou que terão papel crucial em sua construção, contextualizando com maestria toda a situação conflitante da cidade antes de se concentrar no incidente principal.
O primeiro e o segundo ato amalgamam-se em uma atmosfera crescente de inquietude que culmina no elemento focal da obra. Há a tensão da espera, do confrontamento inevitável, a apreensão dos gritos desferidos e das armas apontadas que sabemos que uma hora irão disparar, e a certeza das mortes estúpidas que irão acontecer. O terceiro ato é dedicado às consequências do evento. Os policiais não comunicaram as mortes – e só libertaram alguns dos jovens com a promessa de que ficassem calados. Quando tudo veio à tona, os oficiais alegaram que as mortes haviam ocorrido durante confronto armado, versão que foi propagada pela imprensa da época. Uma nova história só foi emergir depois que o jornal Detroit Free Press escutou testemunhas da operação. Uma sensação de injustiça e impunidade perpassa todas as sequências do filme, mesmo com tudo indo parar no tribunal. Quando parece que os responsáveis serão punidos por suas ações criminosas, o juiz considera inadmissíveis as confissões de culpa de Demens e Flynn, e o júri inocenta os três policiais das acusações de agressão e assassinato.
Detroit em Rebelião é imersivo e visceral. O ponto central de sua história é inteiramente rodado em um espaço ínfimo e sufocante, de corredor, parede e quartos, que pouco a pouco vai ampliando a sensação de desconforto no espectador diante das torturas físicas e psicológicas cometidas pelos policiais contra aquelas pessoas. Antes de submergir na claustrofobia, Kathryn Bigelow se permite criar composições de rara beleza melancólica, como a sequência em que Algee Smith canta para um teatro vazio – e o cantor ficaria eternamente marcado pelo incidente, jamais retornando ao The Dramatics, que existe até hoje, preferindo dedicar sua vida a cantar em corais de igrejas. Além da ótima atuação de Smith, Will Poulter e John Boyega destacam-se no elenco. O primeiro no papel de um racista homicida que faz qualquer coisa, inclusive forjar cenas, para seguir torturando e assassinando aquelas pessoas e escapar livre de tudo no fim das contas, e o segundo com uma atuação sólida como um segurança negro que se vê em meio ao dilema de tentar impedir uma tragédia e evitar acabar tornando-se parte dela. O excelente trabalho técnico em todos os setores do longa-metragem compõe um filme potente com uma forte crítica social, repleto de nuances políticas e profundamente amargurado, angustiante e reflexivo. E quando Bigelow encosta os seus dedos nas chagas expostas da América, é como na canção Nowhere to Run, de Martha and the Vandellas, cantada antes da apresentação que não acontece dos The Dramatics: “Não há nenhum lugar para fugir, baby. Não há onde se esconder“.
Detroit em Rebelião (Detroit) – EUA, 2017, cor, 143 minutos.
Direção: Kathryn Bigelow. Roteiro: Mark Boal. Música: James Newton Howard. Cinematografia: Barry Ackroyd. Edição: William Goldenberg. Elenco: John Boyega, Will Poulter, Algee Smith, Jacob Latimore, Jason Mitchell, Hannah Murray, Kaitlyn Dever, Jack Reynor, Ben O’Toole, John Krasinski e Anthony Mackie.