“[o cinema] não surgiu [como] uma linguagem autenticamente nova até que os cineastas começassem a cortar o filme em cenas, até o nascimento da montagem, da edição. Foi aí, na relação invisível de uma cena com a outra, que o cinema realmente gerou uma nova linguagem. No ardor de sua implementação, essa técnica aparentemente simples criou um vocabulário e uma gramática de incrível variedade. Nenhuma outra mídia ostenta um processo como esse.” – Jean-Claude-Carrière
Para todos nós que nascemos com o cinema consolidado como uma linguagem artística, de relevância mundial e que se faz presente em nosso cotidiano (seja propriamente no escuro da sala com a grande tela, ou em casa, nas televisões, computadores e telas minúsculas de tablets e smartphones), a técnica da edição parece extremamente simples. Nós nem a percebemos, para falar a verdade. Muitas vezes nem conseguimos enxergá-la como uma técnica realmente. Simplesmente vemos a sucessão de cenas e compreendemos o que ocorre, na maior parte do tempo.
Uma tomada mostra um homem em um parque público olhando para a direita e sorrindo, e em seguida surge outra imagem, outra tomada, sucedendo a primeira, que mostra uma mulher no mesmo parque, olhando para a esquerda e sorrindo. A simples justaposição dessas duas imagens, nessa ordem, revela, sem que necessitemos mais do raciocínio (tão acostumados que estamos com a linguagem cinematográfica), que o homem olhou para a mulher caminhando ao seu lado e sorriu, e que a mulher, ao olhar para o homem caminhando ao seu lado e receber o seu sorriso, também sorriu.
Essa justaposição de cenas em movimento pode fazer qualquer coisa: a segunda cena pode anular a primeira, ao sucedê-la, ou podemos ter ainda uma terceira que interrompa o que acontecia na segunda, ainda que não guarde aparente relação alguma com a primeira, de modo que apenas muito à frente na narrativa teremos percebido a importância daquele elemento estranho, ou mesmo um corte que remeta a uma lembrança visual de outro momento da história.
Em seu livro A linguagem secreta do cinema, Jean-Claude-Carrière diz que um crítico americano, que via a câmera como um engenho capaz de converter o espaço em tempo e vice-versa, se referia sobriamente ao cinema como “a maior surpresa filosófica desde Kant“. O cinema germinou como uma linguagem verdadeiramente nova, e do silêncio dos seus primórdios para uma incessante efervescência técnica que é sua marca registrada, talvez nada tenha evoluído tão rápido quanto a montagem.
Há uma máxima que diz que um filme nasce apenas na sala de montagem. E ela é uma verdade absoluta. Até ser devidamente recortado e editado, o que foi feito no estúdio, ou fora dele, não passa de um enorme apanhado de material filmado. No silêncio da sala de montagem é que aquele conteúdo irá ser trabalhado e retrabalhado até emergir do seu casulo e se revelar aos espectadores como um filme. E ninguém vê esse trabalho. Somente quando ele for mal-feito é que as pessoas o perceberão. E se ele for muito bem-feito, mesmo que as pessoas não o notem enquanto uma técnica essencial da linguagem cinematográfica, será esse trabalho, junto das outras engrenagens que constituem um filme, um dos grandes responsáveis por elas gostarem tanto daquela obra. É o caso de Columbus.
Jin (John Cho) é um bem-sucedido tradutor do inglês para o coreano. Tem 40 e poucos anos e uma relação distante com o pai, um renomado arquiteto sul-coreano. Quando o seu pai adoece repentinamente e entra em coma durante uma turnê de palestras nos EUA, Jin é obrigado a partir de Seul, na Coreia do Sul, para a pequena Columbus, onde irá acompanhar o seu estado de saúde. Hospedado em um hotel, enquanto precisa cumprir prazos de trabalho com a sua editora, Jin reencontra Eleanor (Parker Posey), assistente pessoal e anjo da guarda do seu pai, sua grande amiga desde a juventude, e por quem nutre uma paixão platônica.
Casey (Haley Lu Richardson) é uma jovem de 19 ou 20 anos aficionada por arquitetura. Enquanto todos os seus amigos deixaram a cidade rumo às universidades dos grandes centros, Casey permanece presa em Columbus, trabalhando em uma biblioteca, onde tem como amigo seu colega de trabalho Gabriel (Rory Culkin), um doutorando em biblioteconomia. Não permitindo muitas perspectivas futuras a si própria, Casey se preocupa, ama profundamente, e cuida de sua mãe Maria (Michelle Forbes), uma ex-usuária de drogas que se ressente por pouco ou nada ter acompanhado do crescimento da filha (que em nenhum momento a julga por causa disso) e atualmente trabalha meio-período em uma fábrica.
Casey pretendia assistir uma palestra do pai de Jin e o acaso – acompanhado por um maço de cigarros – fez com que os dois se conhecessem – em um plano-sequência primoroso que vai recuando gradativamente a câmera enquanto acompanha a conversa dos dois personagens, cada um de um dos lados do muro baixo e florido do hotel, fumando seus cigarros, até se encontrarem na entrada. Poderia ter sido apenas esse encontro – e se dependesse de Jin, provavelmente seria – mas a insistência de Casey (“Jin! Ei, Jin! Jin com “n”!) faz com que os dois se reencontrem outras vezes na pequena cidade. Uma relação mágica entre eles logo começa a brotar.
Inspirado em Era uma Vez em Tóquio (1953), um dos maiores filme de todos os tempos, de um dos maiores diretores de todos os tempos, Yasujirô Ozu, o “cineasta do cotidiano“, Columbus marca a estreia – arrebatadora – de Kogonada como diretor de longa-metragens. Conhecido por seus vídeos-ensaios sobre cinema para a web, além de colaborar com ensaios visuais para a prestigiosa revista britânica de cinema Sight & Sound, o cineasta sul-coreano radicado nos EUA é um exímio montador que produz análises minuciosas sobre os estilos de filmagem de vários diretores consagrados. Com um olhar aguçado, Kogonada disseca a estrutura dos planos dos filmes estudados, identificando padrões recorrentes que revelam as particularidades das filmografias dos cineastas escolhidos.
A arquitetura surge como pano de fundo para um filme poético sobre cotidiano, relações familiares e existência, e a pequena Columbus é praticamente o terceiro vértice da história que Kogonada quer contar, entrelaçando-se com a trajetória dos protagonistas. Com pouco mais de 40 mil habitantes, a humilde cidade localizada em Indiana, no meio-oeste norte-americano, é conhecida como “a Atenas da padraria“. Desde a década de 1950, arquitetos de renome internacional, como Eliel e Eero Saarinen, Harry Weese e Deborah Berke, começaram a desenvolver projetos na cidade com uma regularidade assombrosa. Todo o núcleo da vida civil de Columbus (igrejas, pontes, torres, bancos, escolas e até mesmo prédios de escritórios) é constituído por obras-primas arquitetônicas, que transformaram a cidade em uma improvável “Meca” mundial da arquitetura modernista, atraindo milhares de visitantes do mundo inteiro todos os anos.
A curiosa combinação entre o charme de uma cidade pequena, interiorana em muitos aspectos, de uma tranquilidade incomum e excessivamente vazia e silenciosa, com a sofisticação de suas inúmeras construções mundialmente famosas, é explorada ao máximo pela estupenda fotografia de cores frias de Elisha Christian e pelos posicionamentos de Kogonada, com a câmera quase sempre parada, de um modo que cada cena parece uma arte fotográfica de uma revista – só parece haver movimento quando algo chacoalha as vidas dos dois. As composições de cenas invariavelmente são feitas com planos abertos e demorados, a câmera posicionada a uma certa distância dos atores, que aproximam-se aos poucos do foco, exigindo mais de suas atuações, que são acompanhadas por inteiro e não apenas em closes de rostos.
A arquitetura notável dos edifícios ajuda, mas cada plano de Columbus parece pensado com o rigor de um projeto arquitetônico. Os ângulos assimétricos das construções modernistas são colocados em paralelo com a simetria dos quartos de hotéis e dos escritórios de trabalhos em um desenho de cena soberbo, e cada enquadramento (no mais estrito sentido da palavra) do filme evidencia qualquer coisa, por mínima que seja, relacionada à arquitetura: um plano, um corte, uma profundidade, um posicionamento, uma perspectiva. Kogonada imerge o espectador no universo da arquitetura – e não é preciso ser um especialista para compreender os seus passos. Para além dos objetos e cenários, até mesmo o posicionamento dos personagens em cena é planejado, com Jin e Casey surgindo invariavelmente alinhados e simétricos – como no espetacular diálogo entre os dois com as cabeças apoiadas sobre os braços em cima do carro de Casey, cada um deles em um extremo do quadro.
Kogonada dirige como um arquiteto, desenhando e organizando nos mínimos detalhes os elementos de todas as composições, fazendo jus ao famoso ensaísta que é. E o seu evidente apuro visual e técnico não é vazio de significado, mas usado a favor da construção narrativa. Em um dos seus primeiros encontros, Casey apresenta, pelo lado de fora, um dos muitos edifícios de Columbus para Jin, listando os fatos de sua construção como se fosse uma guia turística. Jin pergunta por que ela gosta daquela construção, e a jovem começa a listar os fatos de sua fundação. Jin a interrompe: “Você gosta desse prédio por causa dos fatos? Não, você gosta por alguma outra coisa. Diga-me: o que te emociona na arquitetura?” E quando voltamos para Casey, dessa vez a câmera está dentro da edificação, por trás do vidro e não ouvimos mais som algum, nada do que é dito por ela: em vez disso a tela é preenchida pelo brilho nos olhos de Haley Lu Richardson, pelo movimento de seus lábios e de suas mãos, por seus gestos e seus sorrisos, e entende-se, sem a necessidade de uma única palavra, o que a emociona. Em outra sequência sublime, um longo diálogo entre Jin e Eleanor, permeado por desejos represados e lembranças do passado, ambos sentados em um sofá de uma sala, é inteiramente capturado através do reflexo em um espelho situado sobre uma estante.
O ritmo de Columbus é contemplativo e a narrativa é desenvolvida com lentidão – muitas são as lacunas que devem ser preenchidas pelo nosso raciocínio. Kogonada arquiteta a sua montagem com astuta habilidade, silenciando quando necessário, controlando o que deve ser dito e não dito, cortando e avançando de maneira não-convencional em determinadas passagens (como o “depois” da catártica dança de Casey diante dos faróis do carro; Jin dormindo no banco do carona), ou mesmo circundando imagens ao longo da obra – como o corredor do quarto de hotel onde Jin, de algum modo, se conecta com seu pai, que esteve hospedado ali antes do coma, e se repete estaticamente em inúmeros cortes. Enquanto isso, a trilha sonora do duo musical Hammock (Marc Byrd e Andrew Thompson) emerge quase sempre incidental, discreta (toques sutis de piano e sobreposições musicais), com a mesma naturalidade e convergência de todos os demais elementos do filme.
A genialidade dos diálogos cotidianos e corriqueiros de Kogonada enriquecem Columbus ao mesmo tempo em que antecipam temas a serem trabalhados nos atos seguintes. A conversa em que Gabriel explica uma tese do pai de Jin para Casey é um primor, uma das melhores que o cinema produziu em muito tempo: versando sobre interesse e concentração, traz a história do pai que ama livros, sendo capaz de passar horas absorto neles, mas não resiste a trinta minutos de videogame, e por isso não compreende como o filho, capaz de passar horas absorto no jogo, não consegue resistir a poucos minutos na leitura de um livro. Não é que o pai não seja capaz de se concentrar no jogo ou que o filho não seja capaz de se concentrar no livro; é questão de interesse. Interesse que mantém (ou desmorona) nossa concentração. Essa falta de entendimento e compreensão entre gerações (e os caminhos para os seus ajustes) termina por materializar-se no relacionamento de Casey e Jin, que a cada nova conversa veem abrir-se um mundo novo de perspectivas e pontos de vistas. A arquitetura da cidade é o pano de fundo da espontânea amizade, dos dilemas existenciais e também dos novos caminhos que ambos encontram em suas vidas.
Jin, o filho que (aparentemente) odeia arquitetura porque o pai, arquiteto, sempre esteve distante de casa por causa dela, logo é envolvido pelo entusiasmo de Casey, a jovem que adora arquitetura e encontra na contemplação dos edifícios um refúgio para as suas angústias – e para a vontade de escapar de tudo que nunca é dito às claras. Enquanto exploram os principais pontos da cidade (seguindo a lista de construções prediletas de Casey), as conversas sobre arquitetura, absolutamente deliciosas, vão sendo preenchidas, pouco a pouco, com digressões sobre desejos pessoais, anseios, sonhos e relações familiares. Enquanto a amizade vai sendo erguida sobre bases fortes, as afinidades entre os dois desabrocham e a intimidade se desenvolve, ao mesmo tempo em que notam-se as divergências, o desentendimento entre gerações. O vínculo de ambos com seus pais é o elemento que os aproxima, mas também aquilo que os separa.
Jin tenta fazer o que é esperado dele como um filho. Mais ainda de um filho coreano. De um povo apegado às tradições, onde dizem que se você não está por perto quando um familiar morre, o espírito dele fica vagando e vira um fantasma. Jin não acredita nisso, quer retornar urgentemente para Seul, para a sua rotina, mas ainda assim não consegue evitar permanecer em Columbus e cumprir o seu papel. Sofrendo em silêncio por ter sido privado a vida inteira do amor paterno, acaba sendo no amor de Casey pela arquitetura (que a moça despeja com alegria e entusiasmo sobre ele) que Jin encontra um ponto de conexão com esse passado – e, quem sabe, também com o perdão. Casey permanece sempre ao lado da mãe. Tendo sido privada do amor materno durante toda a infância, ela agora não quer estar longe, sacrificando seu crescimento profissional para não correr o risco de ver a mãe afundar novamente no vício. Mas nas conversas com Jin ela encontra um modo de se expressar abertamente – e, quem sabe, também mais coragem para buscar os seus próprios sonhos. Duas pessoas tão diferentes, em idades, nacionalidades, vivências e realidades, que acabam se enxergando em suas emoções conflitantes como reflexos em um espelho.
A sutileza marca o desenvolvimento da relação de profunda amizade que surge entre Jin e Casey, e Kogonada é econômico em muitos momentos, silenciando aquilo que o roteiro não precisa dizer, e efetuando cortes não-convencionais que avançam a história e deixam para o espectador a missão de preencher os seus espaços vazios. As performances brilhantes de John Cho e Haley Lu Richardson elevam todos esses aspectos e imprimem uma alma profunda e convincente em Columbus – ampliada pelas excelentes atuações do trio de apoio: Parker Posey, Rory Culkin e Michelle Forbes. Enquanto Cho interpreta com talento um personagem com uma carga pessoal forte, cravejado por dilemas e fragilidades escondidas sob o verniz de homem bem-sucedido – que o ator sutilmente vai descortinando –, Richardson hipnotiza os espectadores no papel de uma garota essencialmente comum, mas ao mesmo tempo madura além da sua idade, cativante, brilhante, e que transborda sentimentos. Ambos parecem pessoas reais, não personagens ficcionais interpretados por atores, e ter alcançado tal resultado é um grande trunfo do filme.
Simetricamente poético, profundamente lírico, com atuações destacadas, eivado de sutilezas estéticas, técnicas e narrativas, triste e alegre em iguais medidas de um modo estranhamente único, Columbus emerge como uma longa conversa sobre o cotidiano que se desenrola com vagar e absorve profundamente o espectador em seu seio. Kogonada disse em uma entrevista que para ele “toda separação é um tipo de morte“. A inevitabilidade da ausência que a separação provoca, sempre na corda-bamba dos pensamentos divididos entre as memórias (boas ou ruins) do passado e a imprevisibilidade (e os sonhos, realizáveis ou não) do futuro, é o ponto nevrálgico de uma obra terna, delicada e melancólica, pertencente àquele grupo raro de filmes capazes de fazer com que o espectador seja impulsionado a enxergar sua própria vida de uma outra forma.
Columbus (Columbus) – EUA, 2017, cor, 104 minutos.
Direção: Kogonada. Roteiro: Kogonada. Música: Hammock. Cinematografia: Elisha Christian. Edição: Kogonada. Elenco: John Cho, Haley Lu Richardson, Parker Posey, Rory Culkin, Michelle Forbes, Jim Dougherty e Erin Allegretti.