“Um filme verdadeiramente bom é realmente agradável também. Não há nada de complicado nele. Um filme verdadeiramente bom é interessante e fácil de entender.” – Akira Kurosawa

Essa foi uma das milhares de declarações sobre cinema que o lendário diretor japonês deu em uma das muitas entrevistas que concedeu durante a sua vida. A brilhante resposta de Akira Kurosawa reverbera com intensidade quando assistimos a uma de suas mais famosas obras, Yojimbo, um enorme sucesso financeiro quando foi lançado, em 1961 (convertendo-se em um legítimo “blockbuster” nipônico), e um exemplo perfeito, assim como vários dos seus outros grandes filmes, de como construir o mais puro cinema de entretenimento, comercial, lucrativo, divertido e engraçado, sem perder de vista, em nenhum momento, a qualidade cinematográfica.

Yojimbo foi inspirado no romance Colheita Sangrenta (Red Harvest, 1929), do norte-americano Dashiell Hammett (1894-1964), que por sua vez teria sido uma reedição de Arlecchino, Servidor de Dois Amos (Arlecchino servitore di due padroni, 1743), do italiano Carlo Goldoni (1707-1793). O clássico do diretor japonês é um chambara, gênero de ação de temática samurai ambientado na era feudal japonesa, que reflete a influência do western no seu cinema. A história do ronin Sanjuro foi inovadora, revolucionando as convenções dos filmes do gênero e fazendo nascer o chamado cinema samurai de ação, com sua mistura fantástica com a comédia, ao mesmo tempo em que mergulha fundo na psicologia dos seus samurais, retratando-os como pessoas volúveis a seus impulsos e desejos mais pessoais e egoístas – partindo para o oposto do que ele fez em Os Sete Samurais, sua obra-prima, onde o bushido, o “caminho do guerreiro”, o código de honra que os samurais seguem, importava mais do que suas próprias vidas.

No Japão Feudal, durante algum momento do período Edo (1603–1868), um samurai errante (Toshiro Mifune) caminha sem rumo por uma estrada. Diante de uma encruzilhada, lança uma madeira para o alto, e o destino lhe aponta que caminho seguir, levando-o até uma pequena cidade rural (em uma recriação perfeita de uma cidade de Joshu daquele período) que sofre com uma guerra entre dois clãs rivais, liderados por Seibei (Seizaburo Kawazu) e Ushitora (Ryu Sazanke), que disputam o controle dos jogos de apostas. Muito esperto, o matreiro e perspicaz samurai oferece seus serviços de yojimbo (guarda-costas) aos dois lados da batalha, ora associando-se a um grupo, ora associando-se a outro grupo, tentando, de todas as formas, tirar proveito financeiro da situação belicosa do lugar, e também pretendendo livrar a cidade do domínio das inescrupulosas famílias.

A cidade é esquecida no tempo, um vilarejo muito parecido com aqueles tantos dos westerns norte-americanos, e a genialidade de Akira Kurosawa demonstra todo o declínio moral e civilizacional do lugar na fantástica tomada em que Sanjuro observa um cachorro trotando pela rua com uma mão humana na boca. Uma única cena é suficiente para apontar a deterioração do lugar e o tipo de situação que espera o ronin. Sanjuro, a princípio, também não parece muito diferente daquilo tudo: sua aparência é decadente, andando sempre sujo e mal vestido; esfomeado, come fartamente, sempre prometendo pagar depois, e se enche de saquê, enquanto ambiciona dinheiro mais do que qualquer outra coisa – algo que um samurai, no caminho do bushido, jamais faria – e valendo-se de sua inteligência,  caminha na linha tênue do frágil equilíbrio de forças entre os clãs rivais.

O tipo que o carismático Toshiro Mifune constrói é singular. Movendo constantemente as costas, como se quisesse se coçar o tempo inteiro, com os braços por dentro da vestimenta ou a mão no queixo, ele surge como um personagem absolutamente corporal: seus gestos e movimentos dizem muito sobre suas atitudes. Sanjuro é um estranho sem vínculos com nada nem ninguém, sempre à parte, trilhando sua própria trajetória particular: ele não tem história; quando perguntam o seu nome, observa a natureza e autodenomina-se Kuwabatake Sanjuro (“campo de amoras de trinta e três anos“) – na sequência de Yojimbo, Sanjuro (1962), seu nome irá mudar para Tsubaki Sanjuro (“árvore de camélia de trinta e três anos“) depois que o personagem observa uma quantidade enorme de camélias pela janela. Para realçar a sabedoria de Sanjuro, Akira Kurosawa rodeia o seu protagonista de personagens abobalhados, estúpidos e pictóricos (o artesão de caixões, o dono do restaurante, o policial covarde…), submergindo Yojimbo na comédia pura e recusando traços melodramáticos que a história poderia oferecer, optando, em vez disso, por investir no humor como contraponto à violência extrema.

Sanjuro surge no vilarejo como Shane (Alan Ladd), o forasteiro que retoma sua vida de pistoleiro para defender inúmeras famílias contra posseiros de gado que ameaçam expulsá-las de suas terras, no clássico atemporal de George Stevens, Os Brutos Também Amam (1953). Assim como Shane, ou ainda tal qual o xerife Will Kane (Gary Cooper) de Matar ou Morrer (1952), de Fred Zinnemann, Sanjuro sabe que os homens maus são homens maus, e que não podem escapar. Em seu íntimo, o ronin compreende que irá fazer de tudo para extirpar o câncer criminoso que corrói e deteriora a nojenta e insalubre cidade. Em dado momento, seu caráter de samurai que percorreu o caminho do guerreiro, em um dia enterrado no passado, irá emergir e se sobrepor à sua amoralidade; a bondade e a virtude ampliarão espaços e Sanjuro irá arriscar tudo para resgatar Nui (Yoko Tsukasa), prisioneira de Ushitora, a fim de reuni-la de volta com o seu marido (que a “perdeu” em uma aposta) e o filho pequeno.

Mas, diferentemente dos arquétipos clássicos dos cowboys heroicos do western norte-americano, o interesse primordial de Sanjuro é o dinheiro, mesmo que ainda existam resquícios de honra em suas atitudes; no fim das contas, seus ganhos pessoais parecem estar acima das demais coisas. Com esse personagem, o mais icônico samurai da história do cinema, Akira Kurosawa não só revirou o chambara de ponta-cabeça, como também foi responsável pelo ponto de inflexão que toda a produção mundial de western viveu a partir dos anos 1960, com o alvorecer de tipos cínicos (no lugar dos honrados homens do oeste de John Wayne e Henry Fonda), dos quais não é possível conhecer suas motivações exatas ou divisar traços de bondade que os diferenciem dos seus antagonistas, especialmente a partir do lançamento de Por Um Punhado de Dólares, clássico spaghetti western do italiano Sergio Leone, uma refilmagem descarada de YojimboWalter Hill, com o seu filme policial O Último Matador (1996), e John Broderick, com a sua ficção científica O Guerreiro e a Espada (1984) também refilmaram a obra.

O lendário Toshiro Mifune, parceiro recorrente de Akira Kurosawa em dezenas de filmes, era expert em aikidô e kendô. Sua agilidade física impressiona nas sequências de ação, com seus movimentos de espada cortando adversários em menos de um segundo – e as múltiplas câmeras de Kurosawa capturam a ação de um modo intenso e acelerado, fazendo Mifune parecer ainda mais veloz do que já era. A câmera do diretor passeia pela larga rua principal do vilarejo enquadrando telhados e tudo mais, e investindo nos closes que evidenciam o gestual sarcástico e malandro de Sanjuro diante das situações que enfrenta – ou que inventa. Tudo que acontece é mostrado sob a sua ótica (a extraordinária sequência de “quase” combate entre dezenas de samurais, que o samurai errante acompanha do alto de uma torre, é emblemática), como se estivéssemos vendo o que ele vê, e o desenlace de seus planos mirabolantes, que se aproveitam do despreparo estratégico dos clãs rivais, evidenciado com muita sátira e trapalhadas, é feito aos poucos pelo silencioso roteiro, escrito pelo próprio diretor em parceria com Ryuzo Kikushima., Uma narrativa lotada de reviravoltas, que inclusive quase acabam muito mal para o ronin.

A brilhante fotografia de Kazuo Miyagawa, com seu contraste entre luz e sombra, é explorada à perfeição na dança das prostitutas e na sequência em que Sanjuro, extremamente ferido, rasteja sob o chão do vilarejo, compondo belíssimas cenas noturnas. Os figurinos do filme foram desenhados pelo próprio Akira Kurosawa, que também editou o filme. Vento e poeira sopram o tempo inteiro na cidade, e quando a água começa a cair do céu, temos sequências primorosas: ninguém no cinema jamais conseguiu capturar cenas chuvosas como o lendário diretor nipônico. A trilha sonora de Masaru Sato é selvagem e violenta, evocativa dos westerns, e ao mesmo tempo satírica e dotada de uma veia intensamente cômica – o tema de abertura já diz tudo sobre o estilo bonachão e dissimulado de Sanjuro. E o primoroso trabalho sonoro de Ichiro Minawa inovou ao ser o primeiro filme a usar sonoplastia para o som da carne humana sendo cortada por espadas, criando sons que são usados até hoje por produções cinematográficas do mundo inteiro.

Yojimbo é uma das inúmeras obras-primas de Akira Kurosawa, revolucionária do cinema samurai no Japão e influenciadora do western ao redor do mundo. Um entretenimento de primeira categoria, extremamente divertido e simples, com sequências de ação coreografadas em uma plasticidade estonteante, mas também um filme complexo e multifacetado (como tudo que o diretor fazia, na sua dança perfeita entre fácil compreensão e detalhismo subjetivo). No duelo final, entre Sanjuro e o pistoleiro Unosuke (Tatsuya Nakadai), confrontam-se não apenas espada e pistola, mas, metaforicamente, também um período da história japonesa que se encaminha inexoravelmente para o seu crepúsculo, diante do advento das armas de fogo que praticamente extinguiriam o caminho dos samurais. Depois de tudo terminado, Sanjuro parte. Da sutil coçada na cabeça que abre a película, ao som do incrível tema de Masaru Sato, até a despedida do ronin, câmera parada com o foco em suas costas, em uma partida tão repentina quanto havia sido a sua chegada, a incrível jornada desse samurai errante (brilhantemente personificado por Toshiro Mifune) encanta e impressiona. Como o artesão de caixões e o dono do bar, permanecemos parados observando a sua caminhada; coçando a cabeça ficamos nós, espectadores, diante do perfeccionismo de Kurosawa e de sua equipe, que produziram uma obra-prima singular que, além de ser um filme extraordinariamente bom, é uma verdadeira aula de cinema.

Yojimbo (Yojimbo) – Japão, 1961, p&b, 110 minutos.
Direção: Akira Kurosawa. Roteiro: Akira Kurosawa e Ryuzo Kikushima. Música: Masaru Sato. Cinematografia: Kazuo Miyagawa. Edição: Akira Kurosawa. Elenco: Toshiro Mifune, Tatsuya Nakadai, Yoko Tsukasa, Isuzu Yamada, Daisuke Kato, Takashi Shimura, Hiroshi Tachikawa, Yosuke Natsuki, Eijiro Tono, Kamatari Fujiwara, Ikio Sawamura, Susumu Fujita e Kyu Sazanka.

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.