Em outubro de 1988 chovia sem parar havia uma semana em Derry, no Maine, extremo nordeste dos EUA. O pequeno George Denbrough (Jackson Robert Scott) saiu para brincar na chuva com um barco de papel encerado feito pelo seu irmão Bill (Jaeden Lieberher). O SS Georgie seguiu viagem flutuando pelas laterais encharcadas das calçadas até cair em um bueiro ainda aberto. Georgie se ajoelhou e espiou. Da superfície áspera da escuridão brotou uma voz um tanto quanto agradável e insólita: “Oi, Georgie“. Seguida por dois olhos amarelos que revelaram a figura de um palhaço. Pennywise (Bill Skarsgård), o Palhaço Dançarino. Com o barquinho de Georgie nas mãos. Oferecendo um balão. Um palhaço no bueiro. Se Georgie fosse dez anos mais velho, não acreditaria no que estava vendo. Correria em um segundo. Não responderia. Mas ele não era dez anos mais velho. Tinha seis anos de idade. E parou. E respondeu. E quis o barquinho de volta. E esticou seu pequeno braço para pegá-lo. E então… flutuou. Para nunca mais ser encontrado com vida.

O reinado de terror da misteriosa entidade de muitos nomes e aparências (sendo a mais comum a de um palhaço) reaparece a cada 27 anos em Derry, umbilicalmente conectado à cidade desde a sua fundação, sempre à espreita nos seus recônditos mais sombrios. Com uma predileção especial pela carne das crianças (o medo infantil adiciona mais sabor a ela), Pennywise é capaz de assumir a forma dos medos mais íntimos de suas vítimas. Para os adultos, um psicopata ronda a cidade, que sempre se vê às voltas com desaparecimentos nunca solucionados a cada geração, em uma média extremamente superior ao que ocorre no resto do país. As histórias e medos sempre se perdem no inconsciente coletivo, esquecidos por todos, enquanto a vida segue. Só que em 1989, meses depois do desaparecimento de Georgie, o seu ciclo de assassinatos será interrompido pela intromissão de sete crianças.

Capítulo 1 | O Clube dos Perdedores

Um inteligente traveling, tradicional em filmes colegiais, com a câmera movendo-se para trás a partir da abertura da porta de uma sala, apresenta o quarteto inicial de “perdedores” (ou otários) formado pelos amigos Bill Denbrough (Jaeden Lieberher), Richie Tozier (Finn Wolfhard), Eddie Kaspbrak (Jack Dylan Grazer) e Stanley Uris (Wyatt Oleff). É o fim do último dia de aula antes das férias de verão. Bill ainda acredita que seu irmão Georgie possa estar vivo no Barrens, onde desemboca todo o esgoto de Derry, e tenta convencer seus melhores amigos a ajudá-lo em uma busca. Em pouco tempo Beverly Mash (Sophia Lillis), Ben Hascon (Jeremy Ray Taylor) e Mike Hanlon (Chosen Jacobs) também irão se unir ao grupo.

Cada um deles é vítima de alguma coisa: preconceito racial, social, xenofobia, bullying de todos os tipos, abusos e indiferenças familiares. Bill é o líder e mais corajoso de todos, mas sofre de uma gagueira de origem psicossomática que o acompanha desde pequeno e vive os últimos meses assombrado pelo desaparecimento do irmão, ao mesmo tempo em que é negligenciado pelos pais. Richie é o mais engraçado e hiperativo do grupo, divertindo a todos com suas vozes, piadas e imitações e nunca levando nada a sério – mesmo quando deveria. Eddie é hipocondríaco, pequeno e fisicamente frágil, com uma mãe extremamente dominadora, que tenta afastá-lo dos seus amigos usando a preocupação com a sua saúde, e a invenção de mil doenças, como uma forma de manipulá-lo a estar sempre do seu lado. Stan é judeu, filho do rabino, sofrendo com a rigidez do pai. Bev é abusada pelo pai e chamada de vadia pelas colegas de escola. Ben é o aluno recém-chegado, inteligente, gentil, gordinho, e sem nenhum amigo. E Mike é possivelmente o único garoto negro da cidade, tendo perdido os pais em um incêndio criminoso provocado por racistas.

A problemática de suas vidas encontra seu primeiro abrigo na amizade que surge a partir da perseguição empreendida pelo valentão do colégio Henry Bowers (Nicholas Hamilton) e sua gangue contra todos eles. Enquanto descobrem e aprofundam a amizade, e percebem que juntos são poderosos e inquebrantáveis (destaque para a fantástica – e hilária – guerra de pedras dos Perdedores contra Henry e sua gangue), os sete amigos se verão obrigados a confrontar um mal que eles não podem compreender totalmente, mas contra o qual devem lutar com todas as suas forças.

It: A Coisa é a primeira adaptação cinematográfica (It – Uma Obra Prima do Medo foi um telefilme produzido em 1990) daquela que é, possivelmente, a melhor obra literária do escritor norte-americano Stephen King, publicada pela primeira vez em 1986 – clique aqui e confira a crítica do livro –, quatro anos depois de o “mestre do terror” ter escrito o conto O Corpo, publicado na coletânea As Quatro Estações, e adaptado para o cinema em 1986 por Rob Reiner no clássico oitentista Conta Comigo. E It: A Coisa, o livro, reverbera como uma evolução de O Corpo. King pegou a mesma estrutura (um grupo de amigos que vivem uma aventura inesquecível em um verão e nunca mais são tão amigos quanto foram naquele período, bem como nunca mais voltam a ser crianças, um tema clássico do cinema americano), ampliou o seu escopo e acrescentou o elemento do horror insondável e indefinível. E o melhor do segundo longa-metragem dirigido pelo argentino Andrés Muschietti está justamente nessa espinha dorsal formada pelas sete crianças.

O roteiro – escrito por Gary Dauberman, Cary Fukunaga e Chase Palmera – percebe ser impossível transpôr para as telas todos os eventos que aconteceram com o Clube dos Perdedores nas mais de mil páginas do calhamaço escrito por Stephen King. Momentos icônicos do livro (como a construção da barragem no Barrens, as sessões de cinema, a confecção da bala de prata, as histórias contadas pelo pai de Mike, a “geladeira secreta” de Patrick Hockstetter e explicações mais detalhadas sobre o que é a Coisa) precisam ser deixados de lados, substituídos ou condensados em outros, em prol do desenvolvimento narrativo necessário para uma metragem de cinema. Desse modo, a narrativa se livra eficientemente de inúmeras situações, acontecimentos, tramas e personagens, sem esquecer, em nenhum instante, do coração da obra de King. Muito mais do que um simples conto de horror sobre um palhaço assassino, o centro emocional de It: A Coisa é a força de uma amizade que germina a partir dos traumas da infância e floresce diante do medo irracional e inominável de uma criatura que se alimenta de crianças. A Coisa pode dar o seu nome à obra, mas o protagonismo é todo dos perdedores. E o filme não se esquece disso.

A edição de Jason Ballantine faz um excelente trabalho alternando os arcos de cada personagem com a crescente tensão pelo surgimento da Coisa sem deixar o ritmo perder o compasso. A habilidade que a Coisa possui de se transformar em qualquer um dos medos de suas vítimas é bem explorada em variados jump scares nos quais vemos figuras como o leproso decomposto quase como um zumbi, a pintura deformada de uma mulher que sai de um quadro, pessoas queimadas em um incêndio e palhaços de todos os tipos (com uma referência sutil ao Pennywise de Tim Curry, e também a Carrie, a Estranha, em outro momento). O melhor do horror, obviamente, encontra-se no soberbo Pennywise de Bill Skarsgård, que captura o deboche, a caricatura, os olhares e os trejeitos cômicos, zombeteiros e macabros do personagem com muito talento. E consegue arrancar reações de verdadeiro pavor das crianças.

O elenco infantil prova-se uma escolha de casting extremamente acertada. Era essencial que o roteiro soubesse introduzir seus personagens principais (sete!) em pouco tempo, de maneira concisa e precisa, mas nada disso teria um bom resultado final sem que os atores entregassem atuações sólidas. E todos entregam, cada um deles passeando com talento pelas características marcantes de seus personagens, mesmo que alguns, como Mike, Stan e Ben, tenham seus arcos pessoais um pouco diminuídos pelo roteiro. Carismáticas ao extremo, todas as sete crianças convencem imediatamente como amigos, entregam sequências simplesmente hilárias nessa caminhada, do começo ao fim, mas também se mostram talentosos nas cenas de drama e terror – com destaque especial para a encantadora Sophia Lillis, que tem seu arco dramático muito bem explorado pelo roteiro, e para o excelente Finn Wolfhard, simplesmente perfeito no papel do mais inquieto e engraçado dos perdedores.

A trilha sonora de Benjamin Wallfisch é competente e se destaca bastante na abertura do filme, a clássica sequência do bueiro, com o piano tocando uma espécie de canção de ninar, de sonoridade doce, enquanto acompanha a conversa entre Georgie e Bill e a brincadeira da criança pelas ruas encharcadas até chegar em Pennywise, e aos poucos vai adquirindo um ar desesperador e tenso conforme as expressões do palhaço vão mudando e o medo começa a brotar na face de Georgie, terminando com um som sibilante como de uma cobra e a brutalidade do braço do garoto sendo arrancado. O trabalho artístico e cenográfico é de primeira, capturado com beleza e nostalgia pela fotografia de Chung-hoon Chung e pelos enquadramentos precisos do Andrés Muschietti. A casa abandonada na rua Neibolt, onde os perdedores enfrentam Pennywise juntos pela primeira vez, impressiona, tanto por dentro, com a podridão ocasionada pelo tempo, pelo abandono e pelo mal escorrendo por cada parede, quanto por fora, com sua fachada lúgubre e galhos retorcidos. Do poço secular presente na casa está a entrada para uma galeria de esgotos labiríntica e claustrofóbica, devidamente suja, nojenta e pegajosa, que desemboca no fantástico covil da criatura, com seu circo macabro e seu halo infernal onde todos flutuam.

Enquanto terror, It: A Coisa é mais um filme como tantos outros do gênero: com seus sustos e figuras horrendas e amedrontadoras em sequências triviais e bem dirigidas. O que o torna diferente é a atmosfera única que nasce do rito de passagem da infância para a vida adulta que aquelas férias de verão representam na vida daqueles seis garotos e daquela única garota, o clima mágico e solar da amizade que se fortalece entre todos eles. Em meio ao crescente horror psicológico que a Coisa estabelece em suas vidas, as sete crianças vivem uma aventura fantástica recheada de muito humor e diversão e variados momentos de leveza e delicadeza – destaque para a paixão de Ben por Bev, percebida em uma única cara de bobo feita por Jeremy Ray Taylor diante dela, para o beijo dado por ele em Sophia Lillis, que acaba substituindo, de um modo bem criativo e doce, uma sequência polêmica e desnecessária do livro e também para o confronto final com Pennywise, que amalgama terror, ação, drama, humor e diversão de um modo muito interessante. It: A Coisa tem um Pennywise extraordinário e aterrorizante, mas também sete atores mirins incríveis, carismáticos e talentosos em uma história de primeiras amizades, crescimento pessoal e cumplicidade absolutamente envolvente. Ao final, o que mais queremos ver dessa ótima experiência cinematográfica é um outro último verão com Bill, Richie, Eddie, Stan, Bev, Ben e Mike e toda a magia que o final da infância nos traz.

It: A Coisa (It) – EUA, 2017, cor, 135 minutos.
Direção: Andrés Muschietti. Roteiro: Gary Dauberman, Cary Fukunaga e Chase Palmer. Música: Benjamin Wallfisch. Cinematografia: Chung-hoon Chung. Edição: Jason Ballantine. Elenco: Bill Skarsgård, Jaeden Lieberher, Jeremy Ray Taylor, Sophia Lillis, Finn Wolfhard, Wyatt Oleff, Chosen Jacobs, Jack Dylan Grazer, Nicholas Hamilton, Owen Teague, Logan Thompson, Jake Sim e Jackson Robert Scot.

Compartilhe

Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.