Duas das criações mais espetaculares da dupla Stan Lee e Jack Kirby, Galactus e o Surfista Prateado surgiram pela primeira vez em março de 1966, na revista Quarteto Fantástico #48, e o primeiro arco envolvendo os personagens terminou em Quarteto Fantástico #50, em maio do mesmo ano. Esse ciclo de histórias da revista mensal da família de super-heróis da Marvel – o primeiro super-grupo da editora, criados cinco anos antes – viria a ser conhecido no futuro como “A Trilogia de Galactus“, uma das mais clássicas e influentes histórias das comics norte-americanas.

A intenção de Lee era introduzir uma ameaça à altura do supergrupo cuja revista aproximava-se do comemorativo número 50. Seguindo o famoso “método Marvel”, que consistia em entregar um argumento ao desenhista, que deveria transformá-lo em uma história ritmada e com apelo visual (colaborando ele próprio com ideias narrativas: subtramas e até mesmo personagens) que depois retornaria para que ele escrevesse os diálogos, Lee pensou em Galactus – mas não no Surfista Prateado – e passou a história para que Kirby desenhasse ao seu modo.

Quando os desenhos de Kirby voltaram, havia uma figura que não constava na história original: um alien prateado. Questionado por Lee, Kirby argumentou que Galactus necessitava de um arauto, alguém que pudesse ir à frente e conferir se o planeta valia a pena ou não ser consumido. E acrescentou: “cansei de desenhar nave, então coloquei ele em uma prancha.” Lee aprovou a ideia e, fascinado com a postura nobre que o personagem emitia, passou a desenvolvê-lo nesse sentido. Nasciam dois dos personagens mais icônicos dos quadrinhos. Galactus, o Devorador de Mundos, e o Surfista Prateado, o navegante dos mares galácticos.

Galactus é uma forma imemorial, livre das paixões humanas e da inconstância das emoções, que necessita da energia dos planetas para sobreviver, alimentando-se da morte sem, entretanto, deleitar-se nela. Longe de ser um vilão, Galactus é um antagonista, uma ameaça. Sempre há mistérios da criação do universo envoltos em suas atitudes. Suas ações não são motivadas pela vilania, mas sim por sua fome eterna, maldição de sua existência. Ele é amoral, não no sentido de subverter os preceitos morais, mas sim por estar além de tais julgamentos. Galactus não é bom nem mau, ele simplesmente é.

Diante da iminente destruição de seu planeta, Zenn-La, o idealista Norrin Radd sacrificou-se para salvá-lo, oferecendo-se para ser o arauto de Galactus, seu anjo da morte, o batedor que iria à frente rastreando os caminhos estelares, sondando o cosmos infinito em busca de planetas para seu mestre. Nascia o Surfista Prateado. Um personagem espiritual, misterioso e idílico, com um senso de nobreza latente e profundo e um fervor religioso em suas atitudes e condutas irrepreensíveis, que diferenciou-se dos demais super-heróis por seu estilo, pelo tom filosófico de suas histórias, o lirismo de seus diálogos, e a tristeza evocada por sua figura solitária, singrando a vastidão do espaço acompanhado de uma prancha simbiótica à sua figura, em cor e espectro.

“A Chegada de Galactus!”

A recente introdução dos Inumanos (que apareceram pela primeira vez em Quarteto Fantástico #45, de dezembro de 1965) deixou nítido o quanto o Universo Marvel iniciaria a sua expansão para todos os pedaços do cosmos. Uma grande ópera espacial começou a ser estabelecida, com uma edição desembocando em outra e novos e antigos personagens aparecendo a todo instante.

A aventura envolvendo os Inumanos termina com o Quarteto Fantástico e a Família Real inumana frustrando os planos de Maximus para extinguir a humanidade. Quando retorna para a Terra, o Quarteto Fantástico testemunha o horizonte inteiro engolido por chamas e a população de Nova York desesperada – desespero que só aumenta quando o Tocha Humana resolve usar seus poderes para ver o que estava acontecendo e acaba sendo identificado pelas pessoas como o responsável por aquela ameaça. Reed Richards encerra-se em seu laboratório no Edifício Baxter na vã tentativa de compreender o que está ocorrendo, ao mesmo tempo em que as chamas desaparecem do céu, dando lugar a um vasto campo de detritos espaciais.

Enquanto isso a narrativa move-se para outro ponto do universo: “Em algum lugar da profunda imensidão do espaço, uma incrível figura atravessa velozmente o universo. Um ser que chamaremos de Surfista Prateado, na falta de um nome melhor.” A estranha figura move-se velozmente pela galáxia de Andrômeda e chama a atenção dos Skrulls (raça alienígena transmorfa que fez sua estreia em Quarteto Fantástico #2, de janeiro de 1962), que dizem que onde quer que o Surfista Prateado apareça, seu mestre Galactus, também aparecerá. A poderosa raça, aterrorizada, faz de tudo para esconder seu mundo dos olhos do arauto prateado.

Uatu, o Vigia (que apareceu pela primeira vez em Quarteto Fantástico #13, de abril de 1963), surge no laboratório de Reed e explica ser o responsável pelos distúrbios atmosféricos, produzidos com o seu mobilizador de matérias. Os Vigias são uma raça cuja missão é observar o cosmos e registrar todos os eventos que ocorrem no universo sem jamais interferir neles. Uatu explica a Reed que o Surfista Prateado é o batedor de Galactus, uma poderosa criatura cósmica que se alimenta da energia de mundos inteiros. Diante da possibilidade de extinção da Terra, ele quebra o seu juramento e tenta ocultá-la. Sem sucesso.

“O dia do Juízo Final!”

O Surfista Prateado investiga o campo de detritos e descobre a Terra escondida logo abaixo. Pousando no telhado do Edifício Baxter, ele envia um sinal cósmico para Galactus antes de ser derrubado do prédio com um golpe do Coisa. Ao mesmo tempo, a espaçonave de Galactus pousa na Terra, e o Devorador de Mundos prepara-se para consumir o planeta inteiro. O Vigia tenta apelar à consciência de Galactus para que ele poupe a Terra, mas não é atendido.

O Surfista Prateado, que havia caído inconsciente, acorda no apartamento de Alicia Masters, a namorada cega do Coisa. A conversa que se segue entre os dois toca Norrin Radd de um modo único. Nunca antes o fiel arauto ousara desafiar seu mestre. Mas a nobreza pertinaz diante da morte certa, a recusa em ser tombado e o espírito aguerrido dos humanos fazem com que Norrin Radd se lembre de tudo que fez para salvar Zenn-La e retome a sua consciência.

Reed, Sue e Coisa atacam o dispositivo de transmutação de matéria de Galactus, e o Devorador de Mundos envia seu robô Punidor para mantê-los ocupados enquanto restaura o seu equipamento. Aproveitando-se dessa distração, o Vigia envia o Tocha Humana através de uma dobra espaço-temporal para o planeta de Galactus com a missão de recuperar a única arma capaz de derrotar o incrível adversário.

“A surpreendente saga do Surfista Prateado!”

Enquanto o Surfista Prateado ataca inutilmente o seu antigo mestre, o Tocha Humana retorna com o Nulificador Total. Quando Reed ameaça usá-lo, Galactus concorda em poupar a Terra e partir, desde que a sua arma seja devolvida. A palavra de Galactus é a expressão da verdade, e a criatura cósmica cumpre a sua promessa, mas antes de ir embora aprisiona o seu ex-arauto na Terra. Ao salvador, o exílio. Ao readquirir sua consciência, o Surfista Prateado perde o direito às estrelas.

O legado e a influência nas histórias em quadrinhos

Tudo o que girava em torno da consciência coletiva em 1966, possivelmente influenciou o modo como essas três histórias foram criadas. Aquilo que Lee e Kirby começaram a introduzir nas histórias do Quarteto Fantástico trazia a sensação de que algo novo estava por vir, algo que até então nunca havia sido coisa de histórias em quadrinhos de super-heróis. O Quarteto Fantástico estava indefeso, tanto quanto os demais habitantes da Terra, diante de Galactus, Vigia e o Surfista Prateado. Os super-heróis foram relegados à margem e nada representavam, ou podiam fazer, diante das forças cataclísmicas que testemunhavam.

Dois anos antes de 2001: Uma Odisseia no Espaço, o Tocha Humana, na revolucionária arte de Kirby, rompia a própria estrutura da realidade, viajando pelo subespaço em um espécie de epifania psicodélica sobre os segredos do universo, retornando em choque, com o Nulificador Total (metáfora mais do que evidente para a bomba atômica) em mãos: “Eu viajei por mundos… tão grandes… tão imensos… eu não sei o que dizer… não… não há palavras! Nós somos como formigas… simples formigas!“.

Ao colocarem os atos de Galactus – cujo conceito foi provavelmente inspirado no filme Kronos, o Monstro do Espaço, de 1957, que conta a história de um gigantesco mecanismo alienígena enviado à Terra para absorver toda a sua energia – como consequências diretas da sua necessidade por sobrevivência enquanto criatura imemorial e livre dos aspectos morais da humanidade, Lee e Kirby elevam o personagem para além do escopo clichê e padrão da vilania nos quadrinhos.

O estilo de Lee já começara a sutilmente abrir caminhos para narrativas distintas daquelas tradicionais da Era de Prata dos quadrinhos, e em A Trilogia de Galactus ele escreve uma história que flerta claramente com uma série de elementos filosóficos, morais e comportamentais, além de metáforas políticas e sociais – de um modo que iria afetar diretamente todo o universo Marvel e DC a partir da década de 1970. A arte de Kirby, com seus mundos multicolores, mobilizadores de matéria, conversores de energia, contrastes estéticos entre personagens (do visual “anjo” do Vigia ao aspecto “divindade sobrenatural” de Galactus) e seu estilo único de representação visual dos ambientes espaciais, como os detalhes da nave-planeta de Galactus e a insana viagem pelo “universo desconhecido”, seguem sendo referência primeira para o que dezenas de artistas fizeram e ainda fazem hoje nas histórias em quadrinhos.

A rebelião do Surfista Prateado contra seu mestre permanece na cultura pop como um dos momentos mais conhecidos da história dos quadrinhos. As últimas palavras de Galactus antes de ir embora deixam um aviso e uma sensação de que a vitória não foi completa: “O jogo terminou, humanos! Por fim, eu percebo um tênue brilho de glória em sua raça, e me vejo obrigado a lhes dizer: considerem seus ideais e façam jus ao enorme potencial em suas almas, pois essa força será capaz de levá-los às estrelas ou afundá-los sob as ruínas da guerra.”

A Trilogia de Galactus representa uma espécie de perda de inocência nos quadrinhos, antevendo em praticamente duas décadas a onda de histórias adultas que tomaria conta da indústria nos anos 1980. Infelizmente mais conhecida do que propriamente lida – como acontece com a maioria dos clássicos –, é uma obra-prima de Stan Lee e Jack Kirby que precisa ser descoberta e redescoberta por todos os fãs de quadrinhos.

Quarteto Fantástico #48, #49, #50 (The Fantastic Four #48, #49, #50 – EUA – Março, Abril e Maio de 1966, Marvel Comics)
Roteiro: Stan Lee Arte: Jack Kirby Arte-Final e cores: Joe Sinnott Letras: Art Simek e Sam Rosen

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Sobre o Autor

Católico. Desenvolvedor de eBooks. Um apaixonado por cinema – em especial por western – e literatura. Fã do Surfista Prateado e aficionado pelas obras de Akira Kurosawa, G. K. Chesterton, John Ford, John Wayne e Joseph Ratzinger.